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CURA-TE A TI MESMO: ENFERMIDADES E CUIDADOS DE SAÚDE DO CLERO*

17/12/2025

Eliseu Wisniewski*

* Presbítero da Congregação da Missão (padres vicentinos) Província do Sul, mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR).

Eis o artigo:

O livro Cura-te a ti mesmo: enfermidades e cuidados de saúde do clero (Paulus, 2025, 376 p.), de autoria de José Carlos Pereira, constitui um estudo sociológico de grande envergadura sobre a saúde física e mental do clero católico no Brasil e seus desdobramentos institucionais e sociais. O autor possui sólida formação acadêmica interdisciplinar, com pós-doutorado em Antropologia Social, doutorado em Sociologia, mestrado em Ciência da Religião, bacharelado em Teologia e licenciatura plena em Filosofia, o que se reflete diretamente na amplitude teórica e metodológica da obra.

O trabalho tem como objetivo identificar, classificar e analisar as condições de saúde do padre brasileiro, compreendendo-as não apenas como uma questão interna à Igreja Católica, mas como um fenômeno social mais amplo, que reverbera na sociedade brasileira, ainda majoritariamente identificada como católica (64,6%, segundo o IBGE, 2010). A partir de um questionário aplicado on-line a cerca de dois mil padres e de mais de cem entrevistas presenciais realizadas com membros do clero secular e regular, o autor constrói um amplo retrato empírico, raramente alcançado em pesquisas sobre essa categoria social.

A obra demonstra que a saúde física e psíquica dos padres diz respeito não apenas à instituição eclesial, mas também ao tecido social no qual ela se insere. As enfermidades do clero, especialmente as de ordem psíquica, tendem a repercutir na vida religiosa e cotidiana dos fiéis, evidenciando que problemas individuais assumem, nesse contexto, uma dimensão coletiva e institucional. Assim, a saúde do clero é apresentada como um indicador relevante da saúde da própria sociedade.

A análise desenvolve-se a partir do binômio saúde/enfermidade, mobilizando referenciais teóricos que permitem intervenções tanto no âmbito eclesial quanto no social, com o auxílio de diferentes campos do saber. Embora o foco não seja o exame direto de outras instituições sociais como política, educação ou família, o autor oferece importantes indicadores que podem subsidiar investigações futuras nessas áreas. A Igreja Católica é compreendida como parte constitutiva de um corpo social mais amplo, no qual ainda exerce papel significativo na coesão social e na manutenção de determinadas estruturas simbólicas e normativas.

A pesquisa articula metodologicamente uma análise sociológica ancorada em referenciais funcionalistas e estruturalistas, sem renunciar a uma leitura atenta, interpretativa e crítica da realidade analisada. O autor dialoga com referenciais clássicos e contemporâneos, com destaque para o sociólogo francês Pierre Bourdieu (1930-2002), além de recorrer a contribuições da antropologia, da psicologia, das ciências biomédicas, incluindo a psiquiatria, bem como da filosofia e da teologia, áreas fundamentais na formação presbiteral. Tal articulação interdisciplinar permite compreender a relevância dos padres enquanto “gerenciadores do sagrado” e sua influência na configuração da Igreja Católica no Brasil como instituição social.

A obra também evidencia a complexidade de se analisar criticamente o funcionamento da Igreja Católica em uma sociedade marcada simultaneamente pelo pluralismo religioso e pela secularização. O autor chama atenção para a estrutura burocrática e hierárquica da instituição, metaforicamente descrita pelo sociólogo alemão Max Weber (1864-1920) como uma “jaula de ferro”, que dificulta tanto o acesso aos seus membros quanto a expressão pública de sofrimentos e fragilidades. Esse aspecto contribui para a invisibilidade de grande parte das dores vivenciadas pelo clero, reforçando o caráter inédito da pesquisa, viabilizada pela inserção prolongada do autor no campo e pelo acesso a informantes privilegiados.

Inspirado na concepção organicista de sociedade desenvolvida pelo sociólogo francês Auguste Comte (1798-1857) e sistematizada pelo sociólogo francês Émile Durkheim (1858-1917), o autor propõe compreender a Igreja como um organismo vivo, composto por indivíduos que envelhecem, adoecem, sofrem e enfrentam limites humanos. Ao desconstruir a imagem idealizada do padre como figura imune às fragilidades humanas, o livro evidencia que os membros do clero são pessoas comuns que buscam sustentar uma vida percebida socialmente como excepcional. Nesse sentido, a pesquisa ajuda a desfazer visões idealizadas e simplificadas sobre os padres, ao mostrar que eles não formam um grupo homogêneo nem vivem uma realidade marcada apenas por equilíbrio espiritual e realização pessoal. Os dados revelam, por exemplo, que, embora muitos se apresentem como satisfeitos e motivados em questionários formais, nas entrevistas presenciais emergem experiências de solidão, cansaço emocional, sobrecarga de trabalho e dificuldades nas relações fraternas. A figura do padre sempre disponível, forte e espiritualmente estável é relativizada quando aparecem relatos de desgaste psíquico, práticas pastorais realizadas de modo automático e desafios na vivência do celibato e da amizade. Ao trazer à tona essas situações concretas, a pesquisa evidencia que os padres são sujeitos atravessados por limites, fragilidades e contradições, semelhantes às de outros atores sociais, contribuindo para uma compreensão mais realista e humana do ministério presbiteral.

No percurso analítico, o autor examina temas centrais relacionados à saúde do clero: a compreensão do Papa Francisco (1936-2025) acerca das enfermidades da Igreja (p. 31-76); o sedentarismo e suas consequências (p. 77-95); os cuidados médicos (p. 97-135) e alimentares (p. 137-164); a saúde suplementar (p. 165-196); e, de modo especial, a saúde mental. Dois capítulos são dedicados ao acompanhamento psicológico e psiquiátrico dos padres, bem como aos desdobramentos dessas práticas (p. 197-279). Também são analisadas as relações sociais, as amizades, presenciais e virtuais (p. 281-322), as doenças crônicas (p. 323-335) e, por fim, a identidade afetivo-sexual, apresentada como um dos temas mais sensíveis no que concerne à saúde psíquica do clero (p. 337-359).

Um ponto importante da obra decorre da comparação entre os dados da pesquisa on-line e as entrevistas presenciais. Enquanto o questionário virtual revelou um clero majoritariamente saudável, satisfeito e motivado, o trabalho de campo evidenciou um quadro mais ambíguo, marcado por sofrimento, desânimo e práticas pastorais automatizadas. Essa discrepância reforça a crítica à idealização produzida por respostas formais e evidencia o valor da pesquisa qualitativa para a compreensão das “dores invisíveis” do clero. A contraposição entre os dois conjuntos de dados configura-se, assim, como um dos pontos centrais da obra, ao explicitar os limites das autoavaliações institucionais expondo as tensões entre a imagem pública do padre e as experiências subjetivas vividas no cotidiano pastoral.

A obra apresenta-se como uma contribuição inédita e relevante para os estudos sobre religião, saúde e sociedade no Brasil, ao consultar, diagnosticar e problematizar as enfermidades físicas e psíquicas do clero, indicando que o conhecimento dessas realidades é condição indispensável para qualquer iniciativa consistente de cuidado e intervenção institucional. Ao cumprir com êxito seu propósito de tornar visível uma realidade frequentemente ocultada e de fomentar o debate sobre a saúde do clero como questão simultaneamente institucional e social, o livro amplia o campo de investigação sobre o clero católico e oferece subsídios teóricos e empíricos sólidos para pesquisadores das ciências humanas e sociais interessados na interface entre religião, saúde e estrutura social, bem como para agentes e lideranças eclesiais que desejam repensar as condições de vida e de trabalho daqueles que exercem o ministério presbiteral no Brasil. Ao deslocar o foco do “ideal sacerdotal” para a “experiência concreta dos padres”, a reflexão proposta por Pereira contribui para desnaturalizar discursos sacralizados e promove uma compreensão mais humana, crítica e complexa do ministério presbiteral.