Na sequência de artigos sobre os 60 anos da Lumen Gentium, o texto abaixo localiza a Igreja a partir do conceito bíblico de mistério, entendido como plano de salvação que Deus realiza na história através da ação de Cristo e do seu Espírito. A Igreja, portanto, é ícone da Trindade.
DA “IGREJA MILITANTE” À “PLEBS ADUNATA”
E o lugar da Igreja no desenvolvimento mais amplo da história da salvação, que verá o seu cumprimento no final dos séculos
por Vito Mignozzi, professor de teologia
Tradução de Darlei Zanon, assessor editorial da PAULUS
(Publicado originalmente em abril de 2024 na Vita Pastorale, Itália)
Eis o artigo:
A transição indicada no título deste texto descreve um aspecto da complexa parábola evolutiva de compreensão sobre a natureza da Igreja registrada no processo de elaboração da Lumen Gentium. Com efeito, é indicado o ponto de partida na imagem da “Igreja militante” e o ponto de chegada na citação de Cipriano de Cartago que, segundo o uso feito pelos padres conciliares, liga a imagem da “plebs adunata” à sua origem trinitária.
Não é difícil imaginar como tal transição contemplou passos intermédios e um processo de maturação que teve de reconhecer como inadequada certa visão eclesiológica herdada dos últimos séculos, em favor de recomeço. De fato, o primeiro esboço do De Ecclesia, do ano 1962 e nunca discutido, iniciava exatamente colocando atenção específica à natureza da Igreja militante e depois aos seus membros, identificando a Igreja Católica Romana com o corpo místico de Cristo, a exemplo do que já havia feito Mystici Corporis, de Pio XII. O ponto de partida, portanto, era ainda de natureza institucional e corporativa. Fiéis à necessidade de um retorno às fontes, os Padres entenderam que a doutrina eclesiológica do Vaticano II deveria recuperar a dimensão mistérica da Igreja como novo ponto de partida, constituindo assim uma revolução copernicana que abandonou definitivamente a visão, para citar Congar, essencialmente “hierarquológica”.
E assim a recuperação do conceito bíblico de mistério, entendido como plano de salvação que Deus realiza na história através da ação de Cristo e do seu Espírito, permite-nos colocar em evidência a natureza da Igreja em relação à ação trinitária de Deus dentro das dinâmicas próprias da historia salutis. Nesse sentido, a Igreja surge de Trinitate, ou seja, é obra da Trindade e provém da Trindade. Comentando esta escolha, G. Philips afirmou: “Os Padres escreveram que a Igreja nasceu do coração aberto do Salvador crucificado. Indo ainda mais longe, poderíamos dizer que ela foi concebida no coração do Pai e que nasce pela missão do Filho e do Espírito Santo: é assim que, conduzidos pela corrente trinitária, nós participamos da sua vida eterna” (A Igreja e seu mistério, p. 624).
Além disso, é preciso acrescentar que a perspectiva a partir da qual o Concílio lê a relação entre a Trindade e a Igreja não se limita a reconhecer a primeira como fonte e modelo da segunda, mas que desta o mistério trinitário constitui também o destino definitivo. Portanto, a dimensão mistérica da Igreja combina sua conotação histórica com sua conotação escatológica. Como sujeito histórico, a Igreja assume as dinâmicas e os processos comuns a qualquer outro sujeito histórico. Sua natureza mistérica-sacramental, no entanto, evidencia desprezo por qualquer possível reducionismo imanentista, mostrando, em última análise, a Igreja a serviço do cumprimento definitivo do Reino.
E o fato de que ela não pode deixar de assumir a forma de estrutura social para cumprir sua missão explica-se porque sua figura histórica tem valor sacramental em relação à ação de Deus, que ela media no tempo dos homens. Por isso, no início da Lumen Gentium se diz que a Igreja “em Cristo, é como que o sacramento, ou sinal, e o instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o gênero humano” (LG 1).
Reposicionamento cristocêntrico
Ter colocado a Igreja no desenvolvimento mais amplo da história da salvação permitiu distinguir o processo genético que levou à sua constituição. Se ela é em si mistério de convocação do Pai que se realiza através da obra do Filho e se manifesta na história graças ao Espírito Santo, a realização deste plano global conhece uma sucessão e um progresso: “Prefigurada já desde o princípio do mundo e admiravelmente preparada na história do povo de Israel e na Antiga Aliança, foi constituída no fim dos tempos e manifestada pela efusão do Espírito, e será gloriosamente consumada no fim dos séculos” (LG 2).
É assim recuperada a lição patrística da Ecclesia ab Adam e ab Abel. A questão da fundação da Igreja já não se resolve na identificação de um ato específico realizado por Cristo, mas é lida como processo histórico progressivo no desenvolvimento da história única da salvação.
Por outro lado, a relação entre Cristo e a Igreja é reinterpretada considerando esta última como fruto de toda a existência de Cristo. Nesse sentido, supera-se a identificação afirmada durante séculos entre Igreja e reino de Cristo, favorecendo a relação entre duas realidades em que a primeira é apresentada como “o Reino de Cristo já presente em mistério” (LG 3) e, ao mesmo tempo, como “germe e princípio” do Reino na terra (LG 5). Se já não são a mesma realidade, então a Igreja se coloca a serviço do cumprimento último daquele Reino no tempo da história, sobretudo através da celebração do memorial eucarístico, no qual se cumpre o opus redemptionis e se realiza “a unidade dos fiéis, que constituem um só corpo em Cristo (cf. 1 Cor. 10,17)” (LG 3). É função Igreja, de fato, tornar possível a união de todos os seres humanos com Cristo “luz do mundo”, pois “dele somos, por ele vivemos, para ele tendemos”.
Este reposicionamento cristocêntrico da Igreja não pode ser compreendido senão através da dinâmica trinitária. É precisamente o Espírito quem permite ao fiel o acesso ao Pai numa experiência de fé na qual se materializa a adoção filial. E se esta ação se realiza antes de tudo na interioridade de cada fiel, o Espírito atua também na Igreja, favorecendo a união desta com Cristo e vice-versa. É sempre o mesmo Espírito que guia a Igreja para a verdade que é Cristo, unificando-a na comunhão. E é sempre o Espírito que opera na Igreja, “ele enriquece-a e guia-a com diversos dons hierárquicos e carismáticos e adorna-a com os seus frutos” (LG 4). O Espírito, enfim, tem como tarefa renovar continuamente a Igreja com a força do Evangelho.
O esforço conciliar de redefinir a Igreja a partir do mistério trinitário, que nos permitiu sair da visão da Igreja militante, também lançou as bases para uma redefinição da natureza e da questão do sujeito eclesial. Isso constitui hoje um ponto fixo de não retorno.