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Feridas do corpo, feridas do mundo: um chamado à conversão do cuidado

09/10/2025

Marcos Aurélio Trindade*

*Mestre em Bioética PUCPR e Mestre em Antropologia Social UBA, Membro da Sociedade Brasileira de Bioética.

Eis o artigo:

O artigo tem como objetivo analisar criticamente os desafios éticos e sociais da saúde contemporânea, propondo uma reflexão sobre a humanização, a justiça e a solidariedade como fundamentos de uma prática verdadeiramente integral. Ao problematizar temas muitas vezes silenciados como a mercantilização da vida, o racismo estrutural, a medicalização excessiva, elitização do cuidado e a inteligência artificial o texto busca apontar caminhos para a construção de uma pastoral da saúde mais inclusiva, comprometida com a dignidade humana e com a promoção do bem comum.

O corpo vivo da sociedade: entre harmonia e desordem

Somos habitados por milhares de vozes invisíveis: bactérias, fungos, vírus, uma comunidade chamada de microbiota o que seria? são o conjunto de microrganismos bactérias, fungos, vírus, protozoários que vivem em harmonia no corpo humano e exercem funções vitais para a saúde, que nos constitui em silêncio. Quando há harmonia, vivemos em equilíbrio, ou seja, a Microbiota; E a disbiose o que será? são os desequilíbrios dessa microbiota, quando os microrganismos patogênicos se sobrepõem aos benéficos, gerando doenças ou fragilidades a desordem se instala. Essa metáfora, embora biológica, nos permite pensar a sociedade e a vida comunitária. Estruturas políticas, culturais e econômicas funcionam como organismos interdependentes, e qualquer ruptura no tecido social provoca desordem, exclusão e sofrimento coletivo. Paulo nos lembra que “se um membro sofre, todos sofrem com ele” (1Cor 12,26).                              A harmonia do corpo social depende da escuta das diferenças e da valorização de cada sujeito. Husserl (2006, p. 28) afirma que o “eu empírico” amadurece pela experiência e pelo confronto com as feridas do mundo. A consciência plena exige perceber a dor do outro e compreender que a vida em comunidade só é possível com empatia e partilha. Em comunidades que promovem atenção integral à saúde, práticas coletivas como grupos de acolhimento, hortas comunitárias e ações educativas fortalecem a diversidade social e reduzem disbioses. Cada indivíduo, ao participar de cuidados compartilhados, contribui para a vitalidade do corpo social, assim como cada microrganismo saudável contribui para o equilíbrio biológico.

Tecnologia e ética: inteligência artificial a serviço da vida

 

Não é apenas a inteligência artificial que ameaça o cuidado: a mercantilização radical da saúde corrói silenciosamente a dignidade humana. Hospitais transformam pacientes em clientes, médicos em gestores de metas e a dor em planilhas de custos. O sofrimento é traduzido em números, e a vida perde seu valor simbólico. Ivan Illich alerta que a “iatrogenia social” ocorre quando a própria medicina, dominada pela lógica do mercado, começa a produzir doença em vez de curar, enfraquecendo a autonomia das pessoas e convertendo a saúde em consumo (ILLICH, 1975, p. 42).

A elitização acadêmica aprofunda ainda mais essa desordem. Universidades, que deveriam ser laboratórios de humanização e justiça, tornam-se muitas vezes fortalezas simbólicas, inacessíveis aos pobres. Jovens talentosos e vocacionados à medicina enfrentam muros econômicos quase intransponíveis. Paulo Freire recorda que “ninguém se salva sozinho” (FREIRE, 1987, p. 32); quando a educação se fecha em si mesma, o conhecimento perde sua função libertadora e a saúde se torna privilégio. Essa exclusão é também uma forma de disbiose social: um corpo onde poucos se alimentam de saber, enquanto muitos permanecem à margem da cura.

Mesmo as tecnologias mais avançadas, como a inteligência artificial, podem reproduzir e ampliar essas desigualdades se não forem orientadas por critérios éticos. Sistemas de triagem digital e algoritmos de gestão hospitalar já demonstram, em algumas cidades, uma tendência a priorizar populações de maior poder aquisitivo, reforçando padrões históricos de exclusão. A máquina, sem alma e sem consciência, aprende com os dados que lhe damos — e, quando os dados carregam o viés da injustiça, a própria tecnologia se torna cúmplice da opressão (HAN, 2021, p. 77).

Mas é preciso reconhecer: a inteligência artificial também pode ser instrumento de bem quando colocada a serviço da vida. Quando usada para ampliar o acesso a diagnósticos em regiões pobres, traduzir informações médicas para comunidades indígenas, prever surtos epidêmicos e proteger populações vulneráveis, ela se torna extensão do cuidado humano. A questão não está na máquina, mas na ética que orienta seu uso. Emmanuel Mounier recorda que o personalismo autêntico afirma “a primazia da pessoa sobre toda estrutura técnica ou econômica” (MOUNIER, 1962, p. 89). A tecnologia só é boa quando serve à dignidade humana.

Portanto, o desafio pastoral do nosso tempo é discernir: a quem serve o progresso? À lógica do lucro ou à comunhão entre os povos? A saúde não pode ser reduzida à eficiência; ela é, antes de tudo, um encontro de rostos, uma responsabilidade compartilhada. Somente quando ciência, fé e solidariedade se reencontrarem, poderemos transformar a inteligência artificial  e toda técnica  em instrumento de justiça e compaixão.

Racismo estrutural: a ferida não nomeada

O racismo estrutural na saúde é uma disbiose ética e histórica. Corpos negros morrem mais cedo, recebem menos analgesia, têm diagnósticos retardados e sofrem olhares de suspeita antes de serem escutados. Foucault (1979, p. 154) alerta para a biopolítica que regula vidas, decidindo quem merece cuidados e quem é marginalizado. Quando um sistema de saúde trata a pele escura como “menos urgente”, não é apenas falha técnica, mas sintoma de disbiose social. Estudos mostram que preconceitos implícitos resultam em menor prescrição de medicamentos analgésicos a pacientes negros, mesmo em condições idênticas. A pastoral da saúde precisa assumir esse diagnóstico ético. Comunidades eclesiais que promovem escuta ativa e protagonismo de populações marginalizadas podem atuar como antídoto para essa disbiose, restaurando equilíbrio comunitário e espiritual.

Medicalização da existência

A medicalização da vida cotidiana é outra forma de disbiose cultural. Tristeza é rapidamente transformada em depressão medicada; inquietação se torna déficit de atenção; envelhecimento vira falha a ser corrigida por tecnologias estéticas. Merleau-Ponty (1999, p. 203) nos lembra que “o corpo é a nossa forma de estar no mundo”. Reduzir o corpo a máquina e a mente a desajuste químico ignora a riqueza da experiência humana, silenciando linguagem, dor e expressão existencial. Essa patologização da diferença prejudica a comunidade: sufoca a pluralidade, criatividade e capacidade de cuidado mútuo. Freire (1987, p. 45) enfatiza que o cuidado educativo e solidário deve acolher diferenças, valorizando experiências e saberes distintos, não apenas padronizar respostas.

Espiritualidade e exclusão

A instrumentalização da religião é outra fonte de disbiose social. Espiritualidades comunitárias deveriam ser fermento de vida e acolhimento. Quando transformadas em instrumentos de poder, determinam quem merece viver e quem pode ser abandonado. Freire nos lembra que a verdadeira espiritualidade é libertadora e comunitária, não opressora. Pastores e agentes de pastoral devem inspirar-se nessa perspectiva, promovendo práticas inclusivas, apoio a grupos vulneráveis e fortalecimento de vínculos comunitários, transformando fé em ação de cuidado e vida compartilhada.

O sujeito e a consciência do comum

Husserl nos lembra que a consciência se realiza ao confrontar as feridas do mundo. Reconhecer o outro, sentir sua dor e agir coletivamente é condição de maturidade ética e espiritual. O cuidado ético e pastoral exige solidariedade ativa. Redes comunitárias, grupos de apoio e iniciativas educativas fortalecem a consciência coletiva, promovendo equilíbrio social e espiritual. A diversidade, seja microbiológica, social ou cultural, é essencial para a vida plena e para a saúde coletiva.

Conclusão: curar as feridas do corpo

Assim como a microbiota depende de diversidade para gerar vida, a sociedade precisa de justiça, solidariedade e partilha para não adoecer. Curar a disbiose contemporânea exige coragem de dizer o que não se diz: a saúde de cada um depende do todo, e o todo só será saudável quando ninguém for descartado. É preciso ousar falar das injustiças que não cabem em protocolos médicos, recusar o silêncio das universidades diante da desigualdade, reconhecer que espiritualidade é liberdade e não poder disciplinador, recolocar o cuidado como gesto humano e não mercadoria, e acolher diferenças como diversidade vital e não como desvio a ser corrigido. A pastoral da saúde precisa dessa coragem. A vida comunitária floresce quando todos têm voz, dignidade e acesso ao cuidado. Assim como a microbiota saudável sustenta a vida, a sociedade justa sustenta a humanidade.

Referências

BÍBLIA Pastoral. São Paulo: Paulus, 2020

FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: A vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1979.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Edição comemorativa de 50 anos. São Paulo: Paz e Terra, 2018. ISBN 978-85-7753-418-6.

HAN, Byung-Chul. Psicopolítica: o neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Tradução de Maurício Liesen. Belo Horizonte: Editora Ayiné, 2018. ISBN 978-85-92964-93-0.

HUSSERL, Edmund. A ideia da fenomenologia. Lisboa: Edições 70, 2006.

ILLICH, Ivan. A expropriação da saúde: Nêmesis da medicina. Tradução de José Kosinski de Cavalcanti. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2022. ISBN 978-85-209-3820-2.

MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

MOUNIER, Emmanuel. O Personalismo. Tradução de João Bernard da Costa. São Paulo: Martins Fontes, 1973. ISBN 978-85-336-0163-0.