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Influenciadores digitais católicos ou evangelizadores digitais católicos?

06/03/2024

Com o advento das redes sociais digitais, os chamados formadores de opinião passaram a ter outros autores, os chamados “influencers”. Eles pautam, inclusive, os chamados grandes meios de comunicação tanto no que se refere à cena política, econômica e também o fenômeno religioso. O livro Influenciadores Digitais Católicos: Efeitos e Perspectivas é um importante estudo para pensar o fenômeno.

por Dom Joaquim Giovani Mol Guimarães

Bispo auxiliar para servir a Igreja local de Belo Horizonte. Integra o Observatório da Comunicação Religiosa Brasil, o Observatório Eclesial Brasil, bem como o Grupo de Reflexão sobre Juventudes.

Eis o artigo: 

Na sociedade contemporânea, diversas pessoas usam as redes sociais digitais e outras plataformas on-line para compartilhar mensagens religiosas e espirituais com seus seguidores, mediante linguagens inovadoras. Trata-se de influenciadores digitais da fé. Especificamente no âmbito brasileiro, há uma grande quantidade e diversidade de pessoas que atuam nas redes sociais digitais em nome da fé católica, constituindo um fenômeno que só pode ser mais bem compreendido de forma inter e transdisciplinar.

É a partir deste cenário complexo e difuso que nasceu a pesquisa “Influenciadores digitais católicos: efeitos e perspectivas”. A Comissão Episcopal Pastoral para a Comunicação da CNBB, presidida por mim no quadriênio 2019-2013, assumiu a empreitada de aprofundar esse assunto, que afeta direta e seriamente o desenvolvimento da pastoral e da evangelização, da teologia e da comunicação eclesial. Esse assunto aparece também, ao menos quatro vezes, no I Plano Estratégico de Comunicação da Conferência. Com a ajuda de especialistas, aos poucos, em reuniões do Conselho Permanente e do Conselho Episcopal Pastoral (Consep), fomos apresentando alguns aspectos para a reflexão dos integrantes dos referidos Conselhos e dos assessores.

Constituímos um grupo de cinco pesquisadores, doutores e pós-doutores, altamente qualificados no campo comunicacional, pastoral, teológico, que recebeu a identificação de Núcleo de Estudos em Comunicação e Teologia (Nect). O estudo foi realizado ao longo de dois anos (2021-2023). A pesquisa busca compreender como se manifesta o fenômeno dos influenciadores digitais católicos (IDCs) e quais suas possíveis consequências socioeclesiais. Também o Observatório da Comunicação Religiosa no Brasil (OCR) estuda esse fenômeno e, como parceiro de qualidade, compartilha suas reflexões.

Terminada a pesquisa, tive a grata satisfação de apresentar ao episcopado brasileiro e aos assessores da CNBB, reunidos em sua Assembleia Geral nos dias 19 a 28 de abril de 2023, em Aparecida, uma síntese dessa pesquisa científica, acadêmica, sobre influenciadores digitais católicos. O que segue, abre as portas à comunidade eclesial e à sociedade, para o conhecimento dos resultados do estudo feito, como ele foi feito e o que alcançou, ao longo do tempo, por meio de análises e conclusões.

1. O caminho da pesquisa

O estudo busca entender o impacto do fenômeno dos IDCs a partir de três horizontes de pesquisa. O eixo comunicacional-cultural busca compreender quais são os processos comunicacionais em análise e como se constituem as “redes de influência” (perspectiva relacional) que caracterizam a atuação de tais influenciadores, a recepção socioeclesial e o fenômeno em geral. O segundo eixo, sociopolítico, examina de que forma os influenciadores e influenciadoras digitais católicos articulam suas narrativas em função de suas diferentes perspectivas sociopolíticas. E, finalmente, o eixo teológico-eclesial busca refletir sobre os desdobramentos que esse fenômeno vem catalisando na práxis católica brasileira quanto ao modo de ser Igreja hoje e ao sensus fidei.

Para tanto, o corpus da pesquisa foi observado a partir de quatro ângulos específicos de análise: 1) pessoa/persona (o histórico pessoal e a construção da personalidade midiática do IDC); 2) performance (as estratégias de atuação do IDC nas redes); 3) conteúdo (os principais temas tratados pelo IDC em sua presença digital); e 4) interação (a forma como o IDC interage com seus seguidores).

2. Algumas conclusões gerais

A pesquisa chega a algumas conclusões, a partir dos eixos analisados, das quais destacamos os seguintes aspectos.

Do ponto de vista comunicacional-cultural, a existência de um grande número de IDCs e seguidores indica que há um amplo e diversificado público interessado em exercer sua fé em ambientes digitais. Apesar dos riscos, a influência digital já se tornou uma tendência irreversível no campo católico, com a exaltação de algumas figuras públicas e a aceitação de estratégias de influência que, entretanto, muitas vezes não seguem as boas práticas da Igreja. Muitos desses perfis seguem a lógica das mídias digitais, privilegiando nichos de público e consumo individualizado. Isso leva a um acúmulo de discursos e estilos que muitas vezes não se complementam e podem até se contradizer. A valorização da autoridade clerical e a autorreferencialidade dos IDCs analisados podem evidenciar um tom altamente narcísico, promovendo um distanciamento do sentido do Evangelho e da comunidade. Ao monetizarem suas imagens, os IDCs também se afirmam mercadologicamente, correndo o risco de comprometerem seu discurso. Destaca-se, por outro lado, a importância dos IDCs minoritários, que manifestam práticas digitais não alinhadas com as dinâmicas profissionais de influência digital. Tais IDCs podem promover um diálogo mais autêntico e verdadeiro com seus públicos, evitando a superficialidade e o comprometimento com os interesses do mercado.

Do ponto de vista sociopolítico, a pesquisa revela que ações de IDCs estão ligadas, de modo geral, à radicalização de movimentos de extrema direita, à disputa política pela moralização ideológica das arenas de debate no Brasil e ao crescimento de ativismos digitais em favor de causas sociais. Há pelo menos três modos amplos de atuação política entre os IDCs analisados. O primeiro é o ultraconservadorismo, que apresenta uma defesa das desigualdades como algo natural e fruto de escolhas individuais, além de um combate aberto aos movimentos progressistas. Em tais casos, o engajamento digital está a serviço de um projeto de Igreja mais conservador. O segundo é o ativismo progressista, no qual o IDC promove causas sociais específicas que funcionam como pautas de luta para exercer pressão sobre governos e outros atores sociais. Neste caso, a influência digital também permite ações de propulsão ativista. Por fim, há uma isenção programada, por meio da qual os IDCs se concentram em assuntos religiosos, espirituais e, sobretudo, devocionais, evitando polêmicas e posicionamentos abertos, sem uma preocupação com a transformação social. Essa neutralização discursiva atende aos objetivos mercadológicos e de visibilidade. O resultado é um processo de alienação do público e de fortalecimento do status quo, além de uma percepção individualista da dinâmica social e da própria vivência cristã.

Do ponto de vista teológico-eclesial, a pesquisa aponta que a presença em mídias digitais para comunicar em nome da Igreja, requer alinhamento com os elementos básicos de sua práxis: Bíblia, Tradição e Magistério. Essa tríade, contudo, deve ser interpretada em comunhão com a comunidade eclesial hodierna e com o atual pontífice, Francisco, a partir do reconhecimento das transformações da sociedade e de suas demandas presentes, realizando a articulação entre doutrina e pastoralidade. Em alguns dos IDCs, o discurso e a práxis denotam efetivamente um sentido do Evangelho e comungam com a Igreja proposta pelo Papa Francisco, encarnando uma influência digital marcada pelo testemunho cristão e pela confessada intenção de evangelizar na Igreja em Saída. Em sentido oposto, porém, há uma influência digital apologético-moralista, que, embora apresente elementos vinculados à devoção e à fé populares, é marcada por uma pretensão formativa e moralista, a partir de leituras pessoais e particulares acerca da verdade, mediante uma autoridade de ensino manipuladora. Promove-se uma formatação da vivência cristã baseada em fórmulas de fé sem conexão com a realidade, centrada fortemente em moralismos permeados por elementos ideológicos e políticos. Soma-se a isso a crítica desmedida e infundada à estrutura institucional e à hierarquia eclesiais. Por fim, manifesta-se uma influência digital marcada pela neutralidade da mensagem ou pela proposição light do Evangelho, em perspectiva psicologista-humorística. Ao centrar e reforçar a individualização da solução das questões humanas, tal influência descarta o elemento comunitário, o vínculo eclesial e a práxis cristã.

3. Desafios e perspectivas pastorais

A influência digital configura-se como uma profissão. Suas práticas envolvem aspectos, sobretudo, mercadológicos e econômicos. Para obter visibilidade ampla e engajamento, os influenciadores devem obedecer a estratégias algorítmicas das próprias plataformas. Estas, em sua estruturação, privilegiam elementos personalistas, de conflitividade, de valor sensacionalista e de dissonância do diálogo, uma vez que operam para criar bolhas de opinião entre pessoas de pensamento similar. Um IDC profissional, que busque atuar dentro das lógicas digitais, possivelmente terá grandes dificuldades para estruturar suas ações a partir dos valores evangélicos da escuta e do amor, pelo menos em seu aspecto mais profundo e integral. É possível vivenciar os valores evangélicos nas redes, e a presença digital é ampla e possível para todos, mas a especificidade da atuação dos IDCs entra em conflito, muitas vezes, com várias das premissas orgânicas da evangelização e da pastoralidade.

Ainda que haja exceções, a expressão de conteúdos de IDCs analisados se detém na construção de estereótipos, baseados em premissas moralistas, fundamentalistas, dogmáticas, psicologistas, doutrinais. Emerge um cristianismo apenas de fórmulas e não de sentido, que leva à caracterização de grupos conservadores, com discursos excludentes e destrutivamente críticos em relação à linha institucional da Igreja, seja em nível mundial ou no Brasil, representada pela CNBB. Existem também muitos influenciadores que são ministros ordenados, o que é diferente de entender que existam ministros ordenados influenciadores. Muitas das práticas desses presbíteros, por exemplo, estão baseadas em vieses narcísicos, usando a própria vida eclesial como elemento peculiar e de ativação da curiosidade do público, e acionando o humor como instrumento de engajamento, simplificação dos conteúdos religiosos, visão reducionista de catequese. Aqui, o papel de seus superiores diretos no episcopado adquire relevância, no sentido de orientar a atuação de tais IDCs, em comunhão com a Igreja e no respeito às diversas sensibilidades e vivências sociais, e em corrigir eventuais desvios.

A Igreja institucional e aqueles que falam em nome dela, ainda que seja possível e necessário acompanhar os que atuam como IDCs, terão dificuldade se quiserem instrumentalizar o fomento ou a criação de novos IDCs. Um comunicador se constitui influenciador digital na medida em que se articula a uma rede de seguidores, que legitimam, retroativamente, os mecanismos de sua comunicação digital. Os públicos que compõem as plataformas digitais (os chamados “seguidores”) são, na verdade, os principais responsáveis pela entrega do status de fama e de influência a alguém. Essa interdependência entre influenciadores e públicos, embora seja um aspecto complexificador, também é importante, porque revela valores, padrões, angústias e expectativas da sociedade, mesmo que de forma subjetiva. Ao elegerem os próprios interlocutores da Igreja Católica com quem querem dialogar, os públicos evidenciam aspectos de distanciamento e aproximação com relação aos objetivos e perspectivas da instituição religiosa. Aqui abre-se um enorme horizonte para futuras investigações científicas, acadêmicas.

Em suma, esta pesquisa aponta que é possível promover a formação de líderes católicos e católicas para atuação nas redes digitais, desde que a intencionalidade não passe pelo desejo de fama, visibilidade e engajamento, segundo as lógicas midiático-digitais. Um dos limites entre um IDC e um evangelizador digital é a cooptação do primeiro pelos mecanismos mercadológicos das mídias digitais, deixando em segundo plano o propósito da evangelização, que inspira e impulsiona o segundo. Portanto, uma presença significativa e qualificada em rede por parte de cristãs e cristãos move-se a partir do desejo de “tornar o Reino de Deus presente no mundo” (EG 176), mediante a sabedoria do trabalho coletivo, da solidariedade e da confiança na possibilidade multiplicadora e de afetação da Palavra e do Reino de Deus, que agem como um grão de mostarda e fermento na massa (Lc 13,18-21).