Por Eliseu Wisniewski*
*Presbítero da Congregação da Missão (padres vicentinos) Província do Sul, mestre em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR).
Eis o artio:
Quando se fala de Direito Canônico fala-se, evidentemente, do Direito da Igreja católica. Por isso mesmo, é preciso entendê-lo como uma realidade intrinsecamente eclesial, ou seja, como realidade que pertence ao plano sobrenatural da fé e da teologia. Portanto, o Direito Canônico está intrinsecamente ligado ao mistério da Igreja. Consequentemente, será impossível aproximar-se de seu estudo sem tomar em consideração como se concebe a Igreja, como grupo social à luz de sua fé. Sendo assim, o ordenamento jurídico-canônico pode ser perfeitamente compreendido quando se toma como ponto de partida a perspectiva da autocompreensão da Igreja como comunidade dos crentes. Além disso, toda manifestação da Igreja está composta, ao mesmo tempo, do divino e do humano. É justamente aí que o Direito Canônico encontra seu fundamento: na dupla realidade da Igreja. Uma realidade divina, portadora de salvação, que se revela de modo visível. Ela é, portanto, necessariamente visível e, por isso mesmo, precisa ser regida por leis. Quanto a esse último ponto, não é supérfluo dizer que a doutrina católica tem sempre entendido o Direito como fator necessário para a Igreja in terris.
Estes esclarecimentos foram recolhidos da obra Lições básicas de Direito Canônico. Introdução ao Direito Eclesial e comentários aos livros I, II e III (Paulus, 2024, 224 p.), escrito pelo especialista em Direito Canônico Pe. Adenilson Silva Ferreira. Esta obra apresenta as linhas fundamentais do Direito Canônico, com o objetivo de colaborar para o conhecimento do ordenamento jurídico da Igreja católica.
Para introduzir o estudo do Direito Canônico, faz se necessário, segundo o autor, oferecer algumas considerações sobre o Direito em geral: etimologia e definição de direito, o direito como fenômeno social e humano, a existência e a necessidade do direito na Igreja, os aspectos teológicos e as fontes do direito canônico (p. 13-26). Objetiva-se, com estes esclarecimentos colocar as bases da compreensão do ordenamento jurídico da Igreja católica. Na sequência, Ferreira nota que o ordenamento canônico não poderá ser bem entendido sem que se leve em conta sua evolução histórica e a historicidade da própria Igreja, peregrina neste mundo. Tendo-se em conta a impossibilidade de estudar toda a história das fontes e institutos do Direito Canônico as páginas do segundo capítulo oferecem, de maneira sistemática, alguns elementos de sua formação ao longo dos séculos no que diz respeito às leis canônicas: coleções precedentes ao Corpus Iuris Canonici, a formação do Corpus Iuris Canonici, do Corpus Iuris Canonici ao Codex Iuris Canonici, o primeiro Codex Iuris Canonici, o Lex Ecclesiae Fundamentalis, o Novo Corpus Iuris Canonici, o Código Oriental e a Constituição Apostólica Praedicate Evangelium (p. 27-44).
No tocante ao Livro I do Código de Direito Canônico (CIC) de 1983, intitulado “Das normas gerais” (p. 45-75), o autor esclarece que ainda que parcialmente, é análogo às primeiras partes de certos Códigos civis, que começam com um conjunto de institutos jurídicos de base de seus respectivos ordenamentos -, apresentando um conteúdo prioritariamente de caráter técnico-jurídico dedicado às disposições gerais que regulam o Direito da Igreja latina. Seus cânones recolhem matérias e temas que sintetizam os conceitos fundamentais para a leitura, interpretação e aplicação corretas das normas de todo o Código.
Na sequência, abordam-se os sujeitos de Direito (p. 77-91). O autor destaca que no caso da sociedade eclesial, os sujeitos de Direito são os destinatários das normas canônicas que, como em qualquer outro ordenamento, podem ser pessoas físicas ou pessoas jurídicas. Pessoa física ou natural é toda pessoa humana na medida em que pode desempenhar, na ordem jurídico-canônica, a função de sujeito de atividade ou ser centro de imputações jurídicas (p. 77-88). Pessoa jurídica, faz notar o autor como se dá no âmbito civil, na Igreja, entes de natureza social, cuja existência transcende aqueles que o compõem, também são sujeitos da relação jurídica. Esses entes, que no CIC de 1917 eram chamados de “pessoas morais” chamam-se no atual CIC pessoas jurídicas.
Esclarecendo que em toda a sociedade juridicamente organizada, juntamente com os direitos e deveres que delineiam a liberdade e a responsabilidade de seus membros, a aprece o fenômeno do poder. Na vida social, tal fenômeno não pode ser reduzido a uma força exercida à mercê dos impulsos de vontade de quem o detém, o autor observa que o CIC de 1983, dentro do Livro I – “Das normas gerais” -, dedica o Título VIII, intitulado “Do poder de governo”, a diversos aspectos relativos ao exercício da potestade de regime na Igreja, incluindo algumas disposições básicas do poder de governo (p. 93-114).
No sexto, sétimo e oitavo capítulos o autor trabalha o Livro II, intitulado “Do povo de Deus”, ressaltando que o Livro II é o mais extenso do Código de Direito Canônico e o mais enriquecido com a doutrina eclesiológica do Concílio Vaticano II. Ressalta que o Livro II expõe a estrutura da Igreja fixando-se em primeiro lugar em seu elemento comunitário, integrado por fiéis cristãos, que adquiriram essa condição mediante o santo batismo e constituem, dessa forma, a communio fidelium. Na segunda parte, centra-se no elemento hierárquico, dependente do sacramento da ordem e que implica entre os fiéis a communio hierarchia. Especificamente no capítulo sexto (p. 115-136) versa sobre a primeira parte do referido livro, subdividida em cinco títulos, que trata dos fiéis leigos (p. 115-136). No sétimo capítulo trabalha-se a Parte II do Livro II do CIC de 1983 a qual diz respeito à constituição hierárquica da Igreja. São 243 cânones divididos em duas seções: a primeira trata da suprema autoridade da Igreja, e a segunda, das Igrejas particulares e seus agrupamentos (p. 137-158). A organização interna das Igrejas particulares que consiste numa estrutura institucional, posta a serviço da Igreja, no cumprimento de sua missão salvífica é o assunto do oitavo capítulo (p. 159-175).
A configuração jurídica dos Institutos de Vida Consagrada e as Sociedades de Vida Apostólica são os assuntos do nono capítulo (p. 177-190). Ferreira destaca que no decurso da história da Igreja, sempre se percebeu a existência de riquíssima variedade de carismas, sinal de sua fecundidade espiritual, concretizada em múltiplas formas de seguimento de Cristo. O CIC de 1983 não só reconhece e tutela toda essa diversidade carismática, mas recolhe tanto os elementos teológicos quanto jurídicos que definem e identificam a vida consagrada em suas configurações canônicas, como realidade diversa da consagração recebida no batismo e pela ordem sagrada.
E, por fim, no décimo capítulo apresenta os aspectos fundamentais do múnus de ensinar (p.191-211). Tendo-se em conta que o terceiro livro do CIC de 1983 – De Ecclesiae munere docenti – versa sobre o múnus de ensinar na Igreja – o autor destaca que em sintonia com o Vaticano II – o CIC apresenta o referido múnus como vocação transmitida e encomendado por Cristo (Mc 16,15), como também a importância da Palavra de Deus que, juntamente com os sacramentos, constrói a Igreja. A função evangelizadora da Igreja se desenvolve por meio de múltiplas atividades: ensinamentos do magistério, pregação, catequese, educação católica, aprofundamento teológico, testemunho cristão etc. Todos giram em torno do anúncio da Palavra e se complementam com a administração dos sacramentos.
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Apresentar as linhas fundamentais do Direito Canônico e transmitir a importância da ciência jurídico-canônico dentro da Igreja católica é a finalidade deste pedagógico escrito. Em relação ao ensino acadêmico do Direito canônico o conteúdo desta obra de Adenilson Ferreira incrementa e confirma o que J. B. Libânio e A. Murad no manual Introdução à Teologia: perfil, enfoques, tarefas disseram de modo sucinto: “é fato inconteste que a Igreja, no correr de dois milênios de existência, se institucionaliza. Elabora uma série de leis e regulamentações, de diferente teor. Bem mais tarde, o conjunto das normas e prescrições jurídicas mais importantes se condensam e se cristalizam no Código de Direito Canônico. O primeiro código sistematizado de direito canônico remonta a 1917, respaldado no modelo eclesiológico pré-conciliar. Após o Vaticano II, surge nova configuração jurídica. Promulga-se o atual código em 1983, estruturado da seguinte forma: normas gerais, direito constitucional, magistério, ministério de santificação (em especial, direito sacramental), direito sobre bens, direito penal e direito processual. Estuda-se direito canônico com dupla finalidade de compreender-lhe o valor e conhecer-lhe o conteúdo, em vista de sua aplicação prática. A matéria-prima dessa área de estudos são as estruturas formais e as leis eclesiásticas. Requer como instrumental pré-teológico o conhecimento do direito, o domínio da linguagem e da lógica do sistema jurídico” (p. 225-226).
Em sintonia com o caminho sinodal quando se clama pela revisão do Código de direito canônico e na carência de textos no âmbito jurídico-canônico -, certamente a presente introdução é relevante e de grande valia. Elaborado com exclusiva pretensão didática, sua leitura se torna indispensável para todos e todas que lidam com a organização eclesial, desde as estruturas fundamentais até às exigências das diversas pastorais. Auxiliará os leitores interessados nesta área (alunos, alunas de teologia, presbíteros, religiosos, religiosas, leigas e leigos engajados/as nas comunidades locais da Igreja), a se despojar do modo positivista e legalista do direito eclesial e assumir uma visão mais teológica dessa realidade constitutivamente inerente à vida da Igreja.