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A LEI EM FAVOR DA VIDA? Entendendo o livro do Deuteronômio

Por Shigeyuki Nakanose, svd; Maria Antônia Marques

Introdução

Ao abrir o livro do Deuteronômio (Dt), o leitor atento percebe estar diante de um texto complexo, fruto de longo processo redacional e com diferentes imagens de Deus, por exemplo:

  • “Ele (Javé) faz justiça ao órfão e à viúva e ama o migrante (estrangeiro), dando-lhe pão e roupa. Portanto, amem o migrante, porque vocês foram migrantes na terra do Egito” (Dt 10,18-19).
  • “Javé, o nosso Deus, o entregou diante de nós, e nós o derrotamos, como também a seus filhos e a todo o seu povo. Nessa ocasião, capturamos todas as suas cidades e consagramos cada uma delas ao extermínio. De homens, mulheres e crianças, não deixamos nenhum sobrevivente (estrangeiros)” (Dt 2,33-34).

As contradições presentes, as variações de estilo, as repetições, os diferentes cenários, a presença de unidades autônomas, as várias frases introdutórias (Dt 1,1; 4,44; 6,1; 12,1; 28,69; 33,1) e a mudança de pronomes (“vós”: 1,6-5,5; “tu”: 5,6-21 etc.) indicam que o livro do Deuteronômio se formou aos poucos. Conforme estudos mais recentes, o processo de redação desse livro durou quase quatro séculos: de Jeroboão II até a reforma de Esdras (750 a.C. a 400 a.C.).

O título “Deuteronômio” origina-se de uma interpretação equivocada feita pela tradução grega chamada Setenta (ou Septuaginta), na qual a expressão “cópia da Lei” foi traduzida por “segunda Lei” (Dt 17,18). Na Bíblia hebraica, esse livro se chama Debarim, que significa “Palavras”. É assim que ele começa: “São estas as palavras que Moisés dirigiu a todo Israel” (Dt 1,1). De fato, o livro é composto de três discursos de Moisés e suas últimas palavras: o primeiro (1,1-4,43), o segundo (4,44-26,19), o terceiro (28,69-30,20) e as palavras finais de Moisés (31,1-34,12). É uma narrativa que cobre o período da chegada do grupo de Moisés às planícies de Moab após a saída (êxodo) do Egito.

No entanto, analisando o texto em seu contexto histórico-social, percebemos que as leis sociais, em suas formas orais mais antigas, contidas no núcleo legislativo (Dt 12-26), têm sua origem no período pré-estatal de Israel (1200-1000 a.C.). Essas leis foram retrabalhadas e redigidas na monarquia do Reino de Israel Norte, em meados do século VIII a.C., especialmente pelo movimento profético em sua denúncia contra a exploração e a dominação do Estado.

Com a queda de Samaria (722 a.C.), grande número de israelitas do Norte refugiou-se em Judá, levando consigo suas tradições. Entre elas, o material que serviu de fundamento para a reforma do rei Ezequias, em 716-701 a.C. (2Rs 18), que estava preparando a guerra contra a Assíria. O material foi revisto e ampliado pelos escribas do rei, chamados de “deuteronomistas”. Eles produziram Dt 12-26, que provavelmente corresponde ao “livro da Lei” (2Rs 22,8), mencionado na reforma de Josias em 620-609 a.C. (2Rs 22-23). Na mesma reforma, esses escribas revisaram, ampliaram e reeditaram Dt 12-26, transformando-o em 4,44-28,68, o chamado “livro da Aliança” (2Rs 23,2), o qual legitimou a política nacionalista e expansionista do rei Josias.

Mais tarde, no período do exílio e do pós-exílio, esse texto foi retrabalhado, recebendo uma introdução (capítulos 1-4) e uma conclusão (capítulos 29-34), com o objetivo de responder às novas situações e ser incluído no conjunto do Pentateuco. A partir de então, o Deuteronômio se tornou uma espécie de “ponte”: é o ponto final do Pentateuco e o começo da Obra Histórica Deuteronomista, composta dos livros de Josué, Juízes, 1 e 2 Samuel e 1 e 2 Reis.

1. AUTOR E CONTEXTO HISTÓRICO

O livro do Deuteronômio não tem um autor único, mas vários autores ou grupos sociais, com diferentes interesses, situações, locais e momentos históricos. Não é possível precisar com exatidão cada momento desse processo. Apresentaremos, em linhas gerais, alguns marcos de cada período.

1.1. Período pré-estatal

O livro do Êxodo narra a opressão dos escravos no Egito (Ex 3,7-9). Mais do que o fato histórico da saída dos escravos do Egito, esse livro reflete um longo processo de releitura e reinterpretação teológica dos êxodos de vários grupos. Historicamente, teriam ocorrido inúmeros êxodos (saídas) ou fugas de grupos de camponeses, de pastores, de operários, de marginalizados (hapirus – hebreus) etc., que viviam nos centros urbanos (planícies), estavam sendo explorados e submetidos ao domínio dos reis das cidades-estado de Canaã e do faraó do Egito. Esses grupos lutaram pela sobrevivência e saíram das planícies para a região montanhosa no centro-norte de Canaã, região menos habitada e fora do controle das cidades-estado e do império.

A partir de 1200 a.C., o êxodo da população empobrecida e sofrida foi acelerado por causa da crise dos centros urbanos, causada por alguns fatos históricos, como: a instabilidade política do império egípcio no final da Era do Bronze (por volta de 1200-1150 a.C.), provocando conflitos e guerras entre as cidades-estado cananeias, vassalas do Egito; as invasões dos povos do mar, posteriormente chamados de filisteus, aumentando as guerras e as instabilidades da região; uma prolongada seca no final da Era do Bronze na terra de Canaã, causando a diminuição da produção de alimentos.

Os grupos de refugiados em busca de vida e de liberdade ampliaram as pequenas aldeias já existentes nas montanhas de Canaã ou abriram novos assentamentos para experimentar uma vida livre, organizando-se em aldeias e vivendo um projeto igualitário: partilha e uso comunitário da terra, partilha dos bens, lei da solidariedade, assembleia, confederação de tribos na autodefesa dos diversos grupos, culto sem templo, sem sacerdote e sem luxo. Assim foi o nascimento do núcleo inicial do povo israelita (não do Estado nacional), formado por pequenas aldeias comunitárias com as famílias ampliadas (clãs), a sociedade tribal em busca de condições mais adequadas de vida.

A semente das leis sociais mais antigas, presentes no Dt, provavelmente nasceu no período pré-estatal, na terra fértil da vida das famílias, clãs e tribos. Em algumas leis presentes nesse texto, transparecem as características da organização comunitária, por exemplo: “Abre a mão em favor do seu irmão, do seu pobre e do seu necessitado, na terra onde você está” (Dt 15,11); “Quando você entrar no pomar do seu próximo, pode comer à vontade, até ficar satisfeito, mas não pode carregar nada no cesto” (Dt 23,25). A experiência da opressão e libertação cria no povo uma sensibilidade especial pelos pobres: estrangeiros, órfãos e viúvas (Dt 24,19).

Com o passar do tempo, uma norma ou lei social surgida em um grupo foi sendo partilhada e aplicada em outros (Dt 22,6-7). Essas leis eram guardadas nas famílias e nos santuários, onde se faziam as reuniões, discutia-se a prática jurídica e resolviam-se os problemas das famílias, aldeias e tribos. São as leis antigas presentes no Código da Aliança (Ex 20,22-23,33), que o Dt relê e retoma, por exemplo: Ex 23,10-11 – Dt 15,1-11 (ano sabático); Ex 21,2-11 – Dt 15,12-18 (leis acerca dos escravos); Ex 22,28-29 – Dt 15,19 (primícias e primogênitos) etc.

Os cultos na família e no santuário, onde se recitavam as leis e se manifestava a fé em divindades protetoras, eram espaços privilegiados para manter a memória das tradições. Segundo as recentes pesquisas, a maioria dos primeiros israelitas eram cananeus e prestavam culto a várias divindades, cultuadas na sociedade de Canaã: El (o Deus supremo), Elohim (o Deus dos pais), Baal (o deus da chuva), Aserá (a deusa da fertilidade). E Javé? Ele, provavelmente, era o Deus dos exércitos e da guerra (Ex 15,2-3) e fazia parte do panteão das aldeias e tribos camponesas como El e Baal.

Ganhando maior realce, Javé foi reconhecido como o Deus libertador do êxodo – o Deus dos hebreus em Ex 3,18; 5,3; 7,16; 9,1.13; 10,3 –, uma divindade sensível à realidade de violência e de injustiça, que vê e escuta as pessoas exploradas e se levanta para libertá-las (Ex 3,7-8a). O êxodo dos hebreus que fugiram do Egito, considerado o maior de todos os opressores no mundo antigo, tornou-se o evento fundante da fé de Israel, a qual se manteve sempre viva ao longo de sua história.

1.2. Reino de Israel Norte

Com Jeroboão II (783-743 a.C.), Israel Norte teve um desenvolvimento sem precedentes. Reconquistou desde Lebo-Emat até o mar de Arabá, conhecido como mar Morto (2Rs 14,25), e intensificou o comércio internacional, exportando principalmente azeite e vinho em grande quantidade para a Assíria e para o Egito. Foi o tempo de maior prosperidade da história de Israel Norte, sustentando a opulência da elite de Samaria (Am 6,4.6a).

Para manter o desenvolvimento da indústria e do comércio e a prosperidade em favor de seus interesses, a corte precisou do produto do campo, intensificando assim uma política de centralização. Um dos meios foi a centralização do culto, das festas e do sacrifício no santuário de Betel, chamado “santuário do rei” (Am 7,13), dentro do sistema de coleta de tributos (Am 5,21-22).

Com a centralização do culto no santuário do rei, a religião sofreu mudanças; por exemplo, Javé tornou-se o Deus oficial do Estado. Essa divindade já era reconhecida desde o reinado de Jeú (2Rs 9-10), mas agora se consolidou como o Deus protetor da casa real e das instituições que sustentavam a monarquia. Em nome da apostasia da fé em Javé, um Deus oficial forte, o Estado condenou as outras divindades principais, como El e Baal, cultuadas nos santuários do interior (Dt 13,13-16).

No reinado de Jeroboão II, ocorreu o apogeu político e econômico. O progresso, contudo, só favoreceu a elite de Samaria (famílias ligadas à corte, grandes proprietários de terras etc.). A maioria da população camponesa sofria com injustiça, violência e exploração pela elite no processo do desenvolvimento (Am 2,6-7a).

A reação a todo esse processo de centralização veio da parte do grupo profético popular, portador da tradição do êxodo (Am 9,7b-8a; cf. Os 11,1-4). O grupo fez forte oposição à monarquia e às suas bases de sustentação, fortalecendo as leis sociais em defesa dos pobres, realidade que transparece no núcleo do Decálogo (Ex 20,1-21) e do Código da Aliança (Ex 20,22-23,33), redigidos primeiramente no Reino de Israel Norte.

Após a morte de Jeroboão II, por volta de 743, o cenário de Israel Norte mudou completamente. Foi o início do expansionismo do Império Assírio. Diante da pressão assíria, o poder central de Israel Norte ficou cada vez mais enfraquecido e viveu um momento de forte crise: a guerra siro-efraimita (735-734 a.C.), as contínuas intrigas na corte, as guerras internas (Os 4,1-3; 7,3-7) e a queda de Samaria (722 a.C.). Tudo isso fez que grande número de pessoas fugisse para Judá, levando consigo as diversas tradições de Israel Norte: o movimento (leis) da centralização; Javé como o Deus oficial do Estado; as leis sociais do movimento profético popular; Javé como o Deus libertador do êxodo etc. São essas tradições que fazem parte dos elementos básicos do Dt.

 1.3. Reforma de Ezequias (716-701 a.C.)

Em 716 a.C., Ezequias subiu ao trono de Judá, uma nação afetada pela destruição do seu vizinho, Israel Norte, e iniciou a chamada “reforma de Ezequias” ou “reforma deuteronomista” para enfrentar a crise e, ao mesmo tempo, expandir a nação.

  • As leis sociais aplicadas no momento de crise. A guerra e a queda de Samaria provocaram a ida de grande número de refugiados para Judá, o que obrigou o governo de Ezequias a decretar leis sociais para amenizar a grave crise de explosão demográfica envolvendo estrangeiros, órfãos e viúvas (Dt 14,28-29; 16,11).
  • O florescimento e a consolidação de Judá como Estado. Com a destruição do seu concorrente Israel Norte, Judá foi integrado ao comércio internacional assírio, aumentando o lucro com o comércio do mundo árabe. Judá começava a florescer com o surgimento de uma elite ambiciosa e corrupta (Mq 3,9-10).
  • Política nacionalista e expansionista. A Assíria entrou em crise após a morte do imperador Sargão II (705 a.C.). Aproveitando a instabilidade da Assíria, Ezequias, instigado pelo Egito (2Rs 18,21), entrou no movimento antiassírio, preparando-se para a guerra mediante o fortalecimento da muralha da cidade de Jerusalém, a construção do canal subterrâneo para levar água à cidade (2Rs 20,20) etc. Tudo isso testemunhava a necessidade de o Estado centralizar a riqueza e o poder, promovendo para isso a reforma da nação.
  • A lei da centralização e a fé no Javé oficial. Para aumentar a riqueza e o controle da nação, o rei Ezequias fortaleceu o poder de Javé como o Deus nacional de Judá, destruiu os santuários do interior, centralizou o culto em Jerusalém, “lugar escolhido pelo Senhor” (Dt 12,5.11.14.18.21.26; 14,24.25; 15,20; 16,2.6.7.11.15; 17,8; 26,2), e perseguiu as outras divindades (Dt 13,7; 2Rs 18,4; 21,3; 2Cr 31,1). Era a consolidação da religião oficial de Javé (Mq 2,6-7; 3,11).
  • O livro da Lei e a aliança com Javé, o Deus do Estado. Os escribas da corte coletaram e aprimoraram as leis sociais e religiosas para legitimar a reforma de Ezequias em nome do Javé oficial do Estado. Escreveram a “primeira edição” do Dt: capítulos 12-26, o núcleo legislativo ou o Código Deuteronomista. O texto recebeu a estrutura do tratado assírio (Tratado de vassalagem de Asaradon), no qual Javé assume a posição do rei da Assíria e faz aliança com o povo de Israel (Dt 13).

A reforma de Ezequias foi bruscamente interrompida pela invasão da Assíria, por volta do ano 701 a.C. Restava a Judá humilhação e submissão à Assíria.

1.4. Reforma de Josias (620-609 a.C.)

Em torno do ano 620 a.C., a Assíria entrou em crise por causa da guerra contra a Babilônia e perdeu o domínio sobre a Palestina. Por sua vez, o Império Egípcio estava enfraquecido e a Babilônia ainda não tinha forças suficientes para a conquista militar. Havia um vácuo de poder na Palestina. Aproveitando esse momento, o rei Josias retomou e executou a reforma de Ezequias: a política nacionalista de centralização do culto em Jerusalém e de fortalecimento de Javé como a divindade oficial do Estado.

  • Perseguição contra a religiosidade popular dos camponeses. Josias radicalizou a centralização do culto a Javé, o Deus nacional (Dt 12,13-28; 2Rs 23,4-14). Fez o Estado apropriar-se da festa familiar da Páscoa (Dt 16,1-8; 2Rs 23,21-23) e perseguiu a prática religiosa dos camponeses (2Rs 23,24).
  • A destruição dos santuários do interior e dos objetos de culto às outras divindades. Os sacerdotes (“levitas”) do interior foram mortos ou reduzidos a uma categoria inferior – cantores, porteiros, escribas etc. (2Rs 23,8-9; Dt 12,2-3; 13,1-19), beneficiando os sacerdotes de Jerusalém, da família de Sadoc. De fato, tanto a reforma de Josias como a de Ezequias tinham o objetivo político de centralizar o poder e a riqueza em benefício da elite de Jerusalém.
  • A política expansionista e militar. O objetivo político da reforma se evidenciava na conquista de territórios do antigo Reino de Israel Norte (2Rs 23,19). Provavelmente, o rei Josias tinha estendido o seu domínio até Meguido, onde enfrentou o faraó Necao e morreu na batalha de Meguido, por volta do ano 609 d.C. (2Rs 23,29).
  • O livro da Aliança. Para orientar e legitimar a reforma de Josias, os deuteronomistas revisaram, ampliaram e reeditaram Dt 12-26, transformando-o em 4,44-28,68 e chamando-o de “livro da Aliança” (2Rs 23,2). O texto ampliado retoma a história passada de Israel para salientar a fidelidade à Lei com o culto exclusivo a Javé (Dt 5,6-10).
  • Javé, o Deus do êxodo e o Deus nacional de Judá. A aliança entre Javé e seu povo foi fortalecida (Dt 5,2-3; 7,9.12; 9,11). Por exemplo, em Dt 28, seguindo a mesma forma dos tratados assírios, Javé, o Deus nacional de Judá, vai amaldiçoar e destruir o povo de Israel – Judá, seu vassalo, se este não cumprir as normas estabelecidas pelo Estado. Ainda no contexto de conflito com o faraó do Egito, os deuteronomistas mostravam Javé como o Deus do êxodo para legitimar a política expansionista e militarista do rei (Dt 5,6; 6,12; 8,14).
  • Obra Histórica Deuteronomista (OHD). Os deuteronomistas começaram a elaborar uma obra historiográfica, chamada OHD (Josué até 2Rs), para fundamentar a identidade histórica do povo de Judá e mostrar a superioridade de Judá em relação a Israel Norte. É compreensível que Ezequias (2Rs 18,3-6) e Josias (2Rs 22,2) sejam elogiados sem restrições nessa historiografia.

Temendo perder a independência e os territórios, Josias enfrentou as forças egípcias e morreu na batalha contra o faraó Necao (609 a.C.), que estava subindo pelo litoral para a Assíria (2Rs 23,29). Com a morte de Josias, Judá foi engolido pelos invasores: Egito e Babilônia. Foi o fim da reforma e o início dos desastres nacionais.

1.5. Redação exílica (587-538 a.C.)

Joaquim (609-597 a.C.) e Sedecias (597-587 a.C.), sucessores de Josias, maltrataram o povo (cf. Hab 1,2-4; Ez 34,1-10), foram instigados pelo Egito e se rebelaram contra a Babilônia, provocando o desastre nacional (2Rs 23,36-25,21). A segunda invasão promovida pela Babilônia (587 a.C.) provocou a destruição de Jerusalém e o exílio. Em meio ao sofrimento e desespero, os sobreviventes da cidade de Jerusalém se perguntavam: quem foi o culpado? Javé, o Deus nacional de Judá, abandonou o seu povo? Ou Javé foi derrotado por Marduque, o deus dos babilônios, de acordo com a teologia da época? As respostas estão na redação exílica do Dt, textos escritos por escribas levitas, outrora a serviço do templo de Jerusalém.

  • Revisão e ampliação do Dt. Os escribas levitas revisaram e ampliaram Dt 4,44-28,68 para confirmar que o desastre nacional do exílio foi causado pelo rompimento da aliança por parte do povo, sobretudo dos governantes, desencadeando a cólera e o abandono por parte de Javé (Dt 4,21-31; 28,47-68; 29,20.24.27-28; 31,16-17.20). O povo devia arrepender-se, converter-se e voltar ao caminho de Javé (Dt 30,15-20).
  • A monarquia a serviço de Deus e do seu povo. O Dt menciona o rei uma única vez em Dt 17,14-20. Trata-se de crítica direta contra a monarquia, apontando as normas e os limites da autoridade dos governantes. As normas visavam impedir os abusos do rei (Dt 17,16-17).
  • A obediência total a Javé e à sua Lei. Os escribas salientaram a importância do arrependimento e da obediência à Lei para restabelecer a aliança com Javé (Dt 17,18-19).
  • Não servir a outros deuses. Os escribas levitas começaram a organizar as atividades religiosas na ruína de Jerusalém (Jr 41,5), confirmando e exaltando a presença de Javé e sua Lei em Sião (Mq 4,2). Combatiam os outros deuses, como Baal e Aserá, que novamente estavam sendo cultuados no interior de Judá (Dt 29,25-26). Da mesma forma que as reformas de Ezequias e Josias, os escribas propagaram que Javé era o único Deus que Israel devia adorar, mas a existência de outras divindades não estava, em absoluto, sendo contestada, o que é característico de um contexto de monolatria.

Na realidade de destruição e de deportação, com o povo sem rei, sem templo e já sem esperança, os escribas levitas tentaram animá-lo e orientá-lo para a vida e a felicidade mediante o arrependimento, a conversão, a obediência à Lei e a volta a Javé (Dt 30,15-16).

 1.6. Redação pós-exílica (538-400 a.C.)

O Império Persa, que dava liberdade religiosa aos povos dominados, garantindo para si a submissão política e o tributo, transformou Yehud, a província do império, em uma teocracia com o templo e a Torá. O templo, restaurado sobretudo pelo grupo que retornou do exílio babilônico – a elite judaíta exilada (golah: Ag 1,1-2,19; Esd 1,1-6,22) –, estava repleto de membros sacerdotais (sadoquitas: Ml 1,6-2,9) e escribas da golah, que voltara para reassumir suas funções no templo. Jerusalém tornou-se o centro religioso e administrativo, explorando e oprimindo o “povo da terra”, a população rural que permanecera na Palestina durante o exílio (Is 56,10-57,2; 58,1-7).

Por volta do ano 460 a.C., período de incertezas e lutas pela sucessão no trono da Pérsia (o imperador Xerxes fora assassinado em 465 a.C.), surgiu uma revolta no Egito, a qual contou com o apoio dos gregos, e mais tarde na província do Transeufrates (Síria, Fenícia, Palestina e Chipre). Por volta do ano 400, o Egito, já livre do Império Persa, ameaçava avançar sobre a região siro-palestinense. Nessa grande instabilidade, entre 450 e 400 a.C., o Império Persa, de olho no corredor siro-palestinense e na rota Jericó-Amon-Moab, enviou Neemias e Esdras para reorganizar e fortalecer a Judeia, região que fazia limite com o Egito. O império, sobretudo em virtude da preocupação com o avanço dos egípcios e gregos, precisou instalar as guarnições militares e fortalecer as cidades de apoio no corredor siro-palestinense. A cidade de Jerusalém, com o seu templo, consolidou-se como o centro do poder sociopolítico.

O sistema do templo, com a lei do puro e do impuro, foi reforçado. A pessoa impura ficava impedida de participar da vida comunitária e do culto no templo, considerado a morada exclusiva de Javé, Deus único. A única forma de voltar a participar da sociedade e do templo era fazer o sacrifício de purificação, que incluía a entrega de ofertas (Lv 11-16). Dessa forma, o templo e a Lei tornaram-se os principais mecanismos de arrecadação de tributos para a manutenção da teocracia de Jerusalém, que repassava uma parte da arrecadação ao Império Persa. Consolidava-se a sociedade teocrata em Yehud, com o controle da Pérsia (Esd 7,26). O texto de Dt 1-34, revisto e ampliado no período persa, reflete essa realidade.

  • O monoteísmo a serviço do governo teocrata. Os teocratas descreveram Javé como o único Deus e o Deus criador (Dt 4,35-36). Javé era considerado o único Deus do universo! Por isso, qualquer representação cultual (estátuas de culto, ídolos, imagens) devia ser rejeitada (Dt 4,9-20).
  • Israel (dimensão ética) como povo eleito e separado de Javé. Os teocratas insistiram na segregação (Dt 7,2-4; 23,4; Esd 9,1-10,44; Ne 13,23-31). A eleição do povo de Javé e a proibição dos casamentos mistos protegiam, consagravam e privilegiavam a comunidade da golah (teocratas), estabelecendo separação até mesmo do “povo da terra” (Dt 12,2-7).
  • “Circuncisão do coração.” Os teocratas transformaram o ritual da circuncisão, junto com o sábado e as restrições alimentares, num sinal distintivo de segregação (Dt 10,15b-16; cf. Dt 30,1-14; Gn 17,10).
  • Lei do puro e do impuro. Os teocratas proibiram alguns cultos, como o ritual de luto, para manter a pureza do povo eleito de Javé (Dt 14,1-2). A proibição se estendia também à alimentação (Dt 14,3-21: cf. Lv 11,1-47).
  • Lei e a teologia da retribuição. Na realidade, a observância da lei do puro e do impuro foi justificada e fortalecida pela teologia da retribuição. Segundo essa teologia, Deus recompensa a pessoa justa (observante da lei do puro e do impuro) com riqueza, saúde, descendência e vida longa (Lv 26). Pobreza, doença e esterilidade são sinais da maldição de Deus (Dt 30,15-18).
  • A responsabilidade individual. Cada um seria julgado e punido por Deus segundo seus “pecados” (Dt 24,16; 7,9-10; cf. Ez 18,1-32). A não observância das leis, que justificava até a condenação à morte em nome de Deus, era fator de fortalecimento do templo, dos seus rituais, da teologia da retribuição e da salvação individual.
  • Moisés como figura mítica e patrono da Lei (Lv 12,1). Os teocratas narraram o surgimento de Israel, o povo eleito, com a figura mítica e épica de Moisés, consagrado como o patrono da Lei. Por isso, na redação final do Dt, a figura central do livro, em termos literários, é Moisés, como o único mediador entre Javé e o povo; o Dt contém os discursos de Moisés e suas últimas palavras, exortando o povo à fidelidade a Javé, e finalmente a sua morte (Dt 34).

Assim o conjunto do livro do Deuteronômio quer ser um apelo à conversão ao Deus oficial – Deus único e poderoso –, à sua lei do puro e do impuro e à unidade do povo eleito, Israel, na sociedade teocrática de Neemias e Esdras.

2. UMA PALAVRA FINAL

O livro do Deuteronômio exalta a fidelidade à Lei de Deus. Um livro escrito em épocas e contextos diferentes. Leis e ensinamentos em diversos períodos da história do povo de Israel. Algumas leis são do período tribal, outras da monarquia, a serviço de diferentes reinados, e, por fim, a serviço do templo e da teocracia. Um livro instigante e um permanente convite para refletirmos sobre a importância da lei em nossa vida e, ao mesmo tempo, termos discernimento para entender se a lei está a serviço da vida dos pobres, sobretudo no Brasil, onde atualmente 13,5 milhões de miseráveis sobrevivem com 145 reais mensais.

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Shigeyuki Nakanose, svd; Maria Antônia Marques

é assessor do Centro Bíblico Verbo e professor no Instituto São Paulo de Estudos Superiores – Itesp.
é assessora do Centro Bíblico Verbo e professora no Instituto São Paulo de Estudos Superiores – Itesp.