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Publicado em novembro-dezembro de 2025 - ano 66 - número 366 - pp. 4-9

FRANCISCO, UM ARAUTO DA ALEGRIA

Por Prof. Dr. Faustino Teixeira*

O artigo busca apresentar, de forma sintética, os grandes passos
que marcaram o pontificado de Francisco, traduzindo uma experiência singular de Igreja atenta aos sinais dos tempos.

Introdução

No dia 21 de abril de 2025, o mundo perdeu uma de suas mais vibrantes e proféticas testemunhas do Evangelho. Francisco partiu, deixando um lindo legado a todos nós, a memória de uma vida voltada inteiramente para a imarcescível busca de um mundo diverso e de uma Igreja peregrina. Iniciou seu pontificado com 76 anos de idade, em 13 de março de 2013. Foram, portanto, treze anos de intensa atividade missionária, guiada pela luz do Evangelho. Foi o primeiro papa jesuíta e o primeiro a vir da América Latina
– ou, como ele gostava de dizer, do “fim do mundo”. Sua vida pode muito bem ser resumida nas palavras de Pedro, nos Atos dos Apóstolos: passou a vida “fazendo o bem” (At 10,38).

1. A convocação à fraternidade em Lampedusa

Em seu precioso magistério, Francisco realizou 47 viagens, visitando 65 países. Ele quis sinalizar o início de seu pontificado com um gesto de “fraternura”. Sua primeira viagem apostólica foi a Lampedusa, a ilha-símbolo do drama dos migrantes no Mediterrâneo. Isso ocorreu no início de julho de 2013. Quis começar sua missão com um testemunho preciso, em uma grande periferia existencial. Sua homilia naquela ilha de deserdados foi repleta de simbolismos, a começar do altar feito de barcos dos emigrantes, bem como da grinalda de flores jogadas ao mar. Ali também ocorreu o gesto bonito do abraço aos jovens que sobreviveram numa das viagens do desespero.

Em sua homilia em Lampedusa, Francisco lembrou os emigrantes mortos no mar, numa viagem que poderia ser “rota de esperança”, mas se transformou em tragédia para milhares. Em Lampedusa delineou-se o rumo de seu pontificado, inteiramente voltado para os outros, sobretudo para os excluídos, pobres e humilhados. Começa seu pontificado com a surda pergunta, que vem do Primeiro Testamento: “Onde está o teu irmão?” (Gn 4,9). Trata-se de pergunta que se volta a todos e que denuncia a perda “do sentido da responsabilidade fraterna”, num mundo marcado pela indiferença e pelo desgaste da compaixão. Francisco denuncia ali, logo no início de seu pontificado, o que nomeou como a “globalização da indiferença” e convoca o mundo para o desafio decisivo da fraternidade.

A mesma história de Caim e Abel e a provocação em favor da fraternidade serão retomadas em homilia na Casa Santa Marta, em 13 de fevereiro de 2017.[1] Na celebração matutina, Francisco nos lembrou que as inimizades começam com coisas pequenas e depois crescem de forma incontrolada. Assim também se deu com a história da humanidade, em que o sangue de tantos irmãos clamam aos céus, sobretudo o grito dos mais pobres. Tudo começa com um sentimento de separação do outro e se conclui com uma “guerra que mata”. Francisco vai identificar esse sombrio horizonte como uma “terceira guerra mundial em pedaços”.

Por ocasião da trágica epidemia de 2020, Francisco retratou a situação de fragilidade e vulnerabilidade que marca o ritmo da humanidade no mundo, desvelando as seguranças supérfluas e ineficientes. Refletiu que todos estamos juntos no mesmo barco, sempre à espreita de novas e inesperadas tempestades. Lembrou também que a epidemia era um sinal evidente da necessária e imponderável importância de reajustar a rota do mundo, no caminho de uma nova solidariedade e esperança.[2]

2. Uma rota delineada na visita ao Brasil

A primeira viagem de Francisco ao exterior teve como destino o Brasil, no final de julho de 2013. Numa de suas homilias no país, realizada em cerimônia na basílica do Santuário Nacional de Nossa Senhora Aparecida, no dia 24 de julho de 2013, Francisco delineou, de forma precisa, a rota de seu itinerário. Ele falou ali sobre os caminhos que se abrem para um mundo mais justo, solidário e fraterno. Mencionou três simples posturas que se apresentam como desafio pastoral: conservar a esperança, deixar-se surpreender por Deus e viver na alegria (Francisco, 2013b, p. 23-25).

Considero esses três passos como essenciais para entender o pontificado de Francisco. Em diversos momentos de seu pontificado, ele falou sobre a importância de manter acesa a esperança, ainda que se divise todo um horizonte embaçado ou bloqueado. Apesar de tudo, nada é mais essencial do que manter viva a esperança no coração. Junto com a esperança, a alegria, que talvez seja a grande força inspiradora da ação profética de Francisco. Ele disse, no Brasil, que a alegria é algo contagiante e que se irradia por todo canto, acrescentando que nenhum cristão pode se mostrar pessimista. Por fim, a abertura à gratuidade de Deus. A vida do cristão, a seu ver, deve estar sempre marcada por uma disponibilidade única, que é “deixar-se surpreender por Deus”.

Em entrevista concedida ao padre Antonio Spadaro, em agosto de 2013, Francisco falou sobre a necessária “atitude contemplativa” que deve animar todo cristão. Nada mais nocivo, a seu ver, do que uma visão encerrada em certezas dogmáticas. O cristão é alguém que se põe sempre em busca. Sublinhou que, “se uma pessoa diz que encontrou Deus com certeza total e não aflora uma margem de incerteza, então não está bem” (Francisco, 2013c, p. 27). Trata-se de chave fundamental indicada por Francisco no caminho da pastoral: manter sempre o coração aberto para as surpresas de Deus. Como ele o demonstrou com acerto, “os grandes guias do povo de Deus, como Moisés, sempre deixaram espaço para a dúvida”, mantendo firme a virtude da humildade (Francisco, 2013c, p. 28).

3. A convocação à alegria

 O eixo angular do pontificado de Francisco foi a alegria, com base no ensinamento do Evangelho. Foi com a chave da alegria que ele abriu um de seus mais bonitos escritos, a exortação Evangelii Gaudium (EG), sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual. A grande referência de Francisco em toda a sua atuação missionária foi o Evangelho e, junto com ele, a inspiração no Jesus narrado. Francisco tinha plena consciência de que o Evangelho nos convoca permanentemente à alegria (EG 5). Foi assim que Lucas falou do anjo anunciando o nascimento de Jesus: “Eis que eu vos anuncio uma grande alegria, que será para todo o povo” (Lc 2,10). Essa alegria, como lembrava Francisco, não desconhece a dor ou o sofrimento, mas é uma “alegria pascal”, que ocorre também em circunstâncias duras da vida. Há que aprender a “dançar sobre os escombros”, como diz Matilde Campilho, uma jovem poeta portuguesa. Jesus mesmo promete aos seus discípulos um horizonte alvissareiro: “Vós haveis de estar tristes, mas a vossa tristeza há de converter-se em alegria” (Jo 16,20).

Nos diversos momentos de seu pontificado, tanto em homilias quanto em mensagens ou audiências gerais, Francisco sempre recorreu aos Evangelhos. Foram as narrativas de Jesus as que mais o inspiraram em seu caminho profético. Em sua visão, o anúncio evangelizador não pode ser “morno”, mas deve ser algo que provoca o aquecimento do coração. Trata-se de proposta simples, humilde, mas profundamente irradiante.

A grande surpresa do pontificado de Francisco, como mostrou o cardeal Walter Kasper, não estava simplesmente nas inovações realizadas por ele, mas sobretudo na “eterna novidade do Evangelho” (Kasper, 2015, p. 16). Também com base no Evangelho, Francisco deu curso à sua esplêndida dedicação à mensagem da misericórdia. Não se cansava de retomar em suas falas o traço da infinita misericórdia de Deus, que não exclui ninguém de seu abraço envolvente. No início da Evangelii Gaudium, Francisco nos relembrava que “Deus nunca se cansa de perdoar, somos nós que nos cansamos de pedir sua misericórdia” (EG 3).

4. Uma Igreja em saída

Foi no rastro da alegria e da misericórdia que Francisco delineou a missão de uma Igreja em saída. Sua visão de evangelização foi na linha da perspectiva aberta por São Paulo VI, na Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi (1975), segundo a qual evangelizar é “tornar nova a própria humanidade” (EN 18). Na visão de Francisco, a Igreja deve sempre estar com “as portas abertas” e seguir a trilha dos outros. Seu lugar preferencial é nas “fronteiras”, vivendo com audácia o testemunho do Evangelho (Francisco, 2013c, p. 33-34). Para ele, a Igreja precisa estar próxima do outro, sobretudo dos mais excluídos, atuando na acolhida e na hospitalidade, como num “hospital de campanha”. Trata-se de Igreja que se mostra nos pequenos e significativos gestos de cuidado, sendo capaz “de curar as feridas e de aquecer o coração dos fiéis”. Há que, em primeiro lugar, testemunhar a misericórdia de Deus. Antes de dizer qualquer palavra, estar próximo do outro e curar suas feridas (Francisco, 2013c, p. 19).

Na busca desse jeito novo de ser Igreja, procedimentos de transformação se fazem necessários, foi o que reconheceu Francisco. Essas mudanças não ocorrem abruptamente, mas requerem tempo. Daí a ênfase dada por ele no discernimento inaciano: um trabalho interior para conhecer melhor a vontade de Deus. Em seu itinerário pastoral, Francisco recorreu sempre ao discernimento, entendendo a necessidade de aguardar o tempo propício para lançar as bases de uma mudança significativa na vida eclesial. Assim, conseguiu realizar prodígios importantes, como a defesa da sinodalidade, o início de reforma na Cúria romana, a ampliação da presença feminina na Igreja e o reforço no protagonismo dos leigos. Animado por grande lucidez e coragem, ousou enfrentar os desvios na Cúria romana, bem como a visão “Vaticano-cêntrica” reinante em muitos domínios romanos (Francesco; Scalfari, 2013, p. 57).

5. Uma Igreja dialogal

Durante a visita ao Brasil, ao falar no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, Francisco reiterou o caminho essencial do diálogo, em qualquer circunstância. Não há outro modo possível de seguir um caminho de vitalidade que não seja o diálogo. É no diálogo e na “cultura do encontro” que se firma qualquer crescimento (Francisco, 2013b, p. 82-83). As religiões, como sempre lembrou Francisco, são provocadas a viver o diálogo em profundidade. É em compasso dialogal que elas são capazes de contribuir, de forma singular, para a “construção da fraternidade” e para a “defesa da justiça na sociedade” (FT 271). São também poderosas forças na defesa da paz e no rechaço da guerra (Francisco; Al-Tayyeb, 2019).

O diálogo guarda em si seu próprio valor. Sua razão de ser encontra-se em si mesmo. Daí ser um equívoco querer buscar uma razão para ele ou querer entendê-lo como plataforma para a evangelização (FT 198). Na contramão de qualquer proselitismo, Francisco defendia radicalmente o direito da consciência humana. Cada pessoa tem o direito sagrado de obedecer à sua consciência. O dado fundamental, que conta de fato, é o testemunho de amor. Para Francisco, é no exercício do amor que se dá o verdadeiro encontro com Deus. Esse foi o caminho fundamental indicado por Jesus para encontrar o caminho da salvação e das bem-aventuranças (Francesco; Scalfari, 2013, p. 57).

Em profunda sintonia com o evento inter-religioso de Assis, ocorrido em 1986, Francisco retomou a ideia de que somos todos companheiros de uma mesma viagem fraterna, cujo rumo só Deus conhece. Somos todos “companheiros de estrada”, como verdadeiros irmãos e amigos (FT 274). É no diálogo verdadeiro que se processa o conhecimento mútuo e o recíproco enriquecimento. Daí ser fundamental o despojamento e a disponibilidade para o outro: deixar-se hospedar por ele. Trata-se do essencial desafio da atenção, da escuta, da cortesia e ampliação do olhar. Como mostrou belamente Francisco, “o mundo vem percorrido por estradas que nos avizinham e distanciam, mas o importante é que nos levem em direção ao bem” (Francesco; Scalfari, 2013, p. 55).

6. O apelo da Terra

Talvez o maior legado deixado por Francisco em seu pontificado tenha sido a defesa da causa da Terra e a profunda reação contra os desmandos do Antropoceno, ou seja, contra a ação predatória do ser humano sobre a natureza. Lançou, com sua encíclica Laudato Si’, grave advertência contra os riscos catastróficos que cada vez mais vão se apresentar ao planeta caso não haja uma providencial mudança de rumo na dinâmica histórica. Mostrou com pertinência o traço que vincula o “clamor da terra com o clamor dos pobres” (LS 49). Foi corajoso ao fazer uma crítica precisa ao antropocentrismo despótico em curso, que acaba por desconhecer a profunda inter-relação entre o ser humano e as outras criaturas (LS 16; 92). Segundo Francisco, o ser humano não é o umbigo do universo, mas está inserido numa teia de relações que são essenciais. Advertiu que, dada essa interligação, cada criatura deve ser reconhecida com “carinho e admiração” e que “todos nós, seres criados, precisamos uns dos outros” (LS 42). Em favor de uma nova atitude de reverência para com o meio ambiente, propôs uma conversão ecológica (LS 217), animada por uma espiritualidade do cuidado, seguindo o modelo de Francisco de Assis (LS 218). Na visão de Francisco, o cuidado da ecologia está profundamente vinculado ao cuidado com o mundo interior e com a paz interior. A espiritualidade ecológica faculta um equilíbrio essencial, na linha de um “estilo de vida aliado com a capacidade de admiração que leva à profundidade da vida” (LS 225). É algo que já vai acontecendo nos “simples gestos do cotidiano” (LS 230), revelando uma “cultura do cuidado”, bem como uma ampliação do olhar, que se revela capaz de perceber a presença do Mistério em todo lugar.

Referências bibliográficas

FRANCESCO, Papa; SCALFARI, Eugenio. Dialogo tra credenti e non credenti. Torino: Einaudi: La Repubblica, 2013.

FRANCISCO, Papa. Entrevista exclusiva do papa Francisco ao pe. Antonio Spadaro. São Paulo: Paulus: Loyola, 2013c.

FRANCISCO, Papa. Evangelii Gaudium: Exortação Apostólica sobre o anúncio do Evangelho no mundo atual (EG). São Paulo: Paulus:  Loyola, 2013a.

FRANCISCO, Papa. Fratelli Tutti: Carta Encíclica sobre a fraternidade e a amizade social (FT). São Paulo: Paulus, 2020.

FRANCISCO, Papa. Laudato Si’: Carta Encíclica sobre o cuidado da Casa Comum (LS). São Paulo: Paulinas, 2015.

FRANCISCO, Papa. Palavras do papa Francisco no Brasil. São Paulo: Paulinas, 2013b.

FRANCISCO, Papa; AL-TAYYEB, Ahmad. Documento sobre a fraternidade humana em prol da paz mundial e da convivência comum. Disponível em: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/travels/2019/outside/documents/papa-francesco_20190204_documento-fratellanza-umana.html. Acesso em: 28 maio 2025.

KASPER, Walter. Papa Francesco: la rivoluzione della tenerezza e dell’amore. Brescia: Queriniana, 2015.

PAULO VI, Papa. Evangelii Nuntiandi: Exortação Apostólica sobre a evangelização no mundo contemporâneo (EN). 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1976.

[1] Disponível em: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/cotidie/2017/documents/papa-francesco-cotidie_20170213_historia-caim-abel.html. Acesso em: 29 maio 2025.

[2] Disponível em: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/homilies/2020/documents/papa-francesco_20200327_omelia-epidemia.html. Acesso em: 29 maio 2025.

Prof. Dr. Faustino Teixeira*

*é professor titular aposentado da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), tendo trabalhado no Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião. Hoje ministra cursos de literatura e cinema no Instituto Humanitas da Unisinos, bem como atua no Portal Paz e Bem. E-mail: [email protected]