Publicado em setembro-outubro de 2025 - ano 66 - número 365 - pp. 4-11
JESUS CRISTO, O EVANGELHO DA FORÇA DE DEUS: Entendendo a carta aos Romanos
Por Shigeyuki Nakanose, svd* / Maria Antônia Marques**
INTRODUÇÃO
Paulo pretende visitar Roma e obter apoio da comunidade cristã para chegar à Espanha, a fim de levar o Evangelho (Boa Notícia; Boa-nova) de Jesus Cristo a todos os gentios (Rm 1,1-17; 15,14-33; cf. Gl 1,16). Preparando sua estada em Roma, ele escreve a carta aos Romanos durante sua permanência de três meses em Corinto, pouco antes de sua partida para Jerusalém em 57/58 d.C., concluindo sua terceira viagem missionária (52-57 d.C.: cf. At 18,18-21,16). A carta tem os seguintes objetivos principais:
a) A comunidade de Roma não foi fundada por Paulo nem havia sido visitada por ele. Por isso existia a necessidade de ele estabelecer um laço com a comunidade, apresentando-se com suas credenciais: servo, apóstolo e escolhido (Rm 1,1). Paulo, servo missionário e profeta de Jesus Cristo, o Messias Servo (Fl 2,6-11; cf. Is 42,1-9). Ele deseja anunciar e explicar, no mundo do império, o Evangelho de Jesus Cristo morto e ressuscitado (Rm 3,25; 4,25), que é força de salvação para todo aquele que crê na justiça e no amor de Deus (Rm 1,8-17; 15,17-21; cf. 1Cor 1,17-25). Trata-se de um Evangelho oposto ao evangelho do imperador romano, em função do poder e da riqueza (pax romana), e ao evangelho do judaísmo legalista, que prega a boa-nova da salvação pela observância fundamentalista da Lei (circuncisão, leis alimentares etc.).
b) Naquele momento de sua vida missionária, Paulo, ex-fariseu, é odiado pelo judaísmo legalista. Ele enfrenta a discordância e a desconfiança da comunidade-mãe de Jerusalém. Recentemente, na carta aos Gálatas, Paulo havia criticado fortemente o grupo judaizante, que procurava impor aos seguidores e seguidoras de Jesus Cristo (cristãos)[1] o modo de viver dos judeus segundo a Lei, a cultura e os costumes judaicos. Isso provocou a reação do grupo judaizante (incluindo gentios tementes a Deus e prosélitos pró-judeus) de Roma (Rm 3,8), que ainda era marcado pelas “obras da Lei” para alcançar a amizade, a graça, a justiça e a salvação de Deus. Paulo deve esclarecer seu Evangelho (“o meu Evangelho”: Rm 2,16; 16,25) e sua prática teológico-pastoral, salientando a salvação de Deus pela fé em Jesus Cristo, com a prática do amor ao próximo (Rm 12,3-21).
c) Paulo visita muitas cidades sob a dominação do império e é testemunha ocular da vida sofrida do povo (Rm 1,18-2,16; 8,18-27). Ele pretende dialogar com a comunidade de Roma e orientar essa comunidade, que vive sob o poderio romano e seu espírito egoísta (pecado, carne), conforme a mentalidade greco-romana, a helenização (busca desenfreada de bens, poder, prazer e honra), que provoca conflito interno (a disputa por cargos etc.: Rm 12,3-13) e gera a exclusão, o sofrimento de muitos e a destruição da natureza, provocada pelas guerras e pelo progresso da civilização romana. No império, Nero, imperador tirano, governou, entre 54 e 68 d.C., de forma cruel e exploradora, provocando a turbulência e a decadência daquele período da história de Roma, as quais transparecem nos gemidos da criação e dos seguidores e seguidoras de Jesus Cristo (Rm 8,22-23).
Para alcançar seus objetivos e ser bem recebido na comunidade de Roma, Paulo escreve a carta de modo sereno, sistemático e explicativo, contrastando com o tom polêmico usado na carta aos Gálatas (Gl 3,1-5). A carta aos Romanos é levada à cidade de Roma, possivelmente pela diaconisa Febe (Rm 16,1-2), uma das muitas mulheres colaboradoras de Paulo (Rm 16,3-15). Pessoalmente, Paulo só chegará lá mais tarde como prisioneiro, em 61 d.C. (At 28,11-16).
1. Conhecendo a comunidade cristã de Roma
No século I, a população de Roma, capital imperial, é calculada em um milhão de habitantes, em sua maioria escravos, que vivem subjugados e explorados pelo poderio do império. A vida deles normalmente é muito breve – não vai muito além dos 20 anos – e há grande incidência de suicídio. É uma sociedade escravagista, marcada pelo espírito da helenização e justificada pelo evangelho (religião) do imperador. A carta aos Romanos registra a presença de várias pessoas de origem não livre, ainda escravizadas ou libertas, nas diversas comunidades localizadas na periferia da capital (Rm 16,1-16).
A comunidade de Roma não é fruto de atividades missionárias de algum apóstolo importante, como Pedro, por exemplo. Ela surgiu com a chegada de judeu-cristãos vindos da Palestina e da Síria, na década de
40 d.C. A presença dos cristãos, que pregavam Jesus como o Messias esperado, tinha dado lugar a severas discussões e a tumultos nas comunidades judaicas, cujos membros – cerca de vinte mil – se encontravam espalhados em mais de dez sinagogas na cidade de Roma. Diante desses conflitos, o imperador Cláudio decretou o edito contra sinagogas e indivíduos responsáveis pelos distúrbios (de um lado, judeus; de outro, judeu-cristãos), que chegaram a ser expulsos de Roma, nos anos 40 d.C. O casal judeu-cristão Priscila e Áquila, vítima dessa expulsão, deve ter informado Paulo sobre a situação da comunidade cristã de Roma e a situação da cidade (At 18,1-4; cf. Rm 16,3-5).
A proibição da autoridade romana de reunir-se nas sinagogas levou os judeu-cristãos e os gentio-cristãos (chamados de “gregos”: Rm 1,16; 2,9-10; 3,9; 10,12) a intensificar as reuniões nas casas de seus membros – a igreja doméstica (Rm 16,4-5.10-11). Mais tarde, quando o edito de restrições contra os judeus foi revogado sob Nero, os judeu-cristãos retornaram a Roma e encontraram nas comunidades a presença predominante de cristãos não judeus, que se julgavam livres da observância de práticas judaicas (as leis de pureza alimentar etc.). Disso resulta que a convivência do grupo conservador (“fracos”), composto de judeu-cristãos e de não judeus tementes a Deus que eram pró-judeus, com o grupo progressista judeu-cristão, como Paulo, e gentio-cristão (“fortes”), que não impunha a circuncisão nem os tabus alimentares judaicos, provoca problemas e conflitos internos (Rm 14,1-15,13).
Além do conflito interno, no tempo de Nero, a comunidade sofre ainda mais com a sociedade injusta e desigual, movida pelos instintos egoístas, que promovem a maldade, a perversidade e o culto aos ídolos do império
(Rm 1,24-32), provocando o sofrimento e a morte de muitos, bem como a destruição da natureza, obra (glória) do Deus criador (Rm 8,18).
Diante dos problemas internos e externos da comunidade, Paulo escreve a carta aos Romanos para dialogar com a comunidade e orientá-la sobre a fé no caminho do justo segundo o Evangelho de Jesus Cristo: “De fato, no Evangelho a justiça de Deus se revela através da fé e para a fé, conforme está escrito: ‘O justo viverá pela fé’” (Rm 1,17).
2. Conhecendo as mensagens teológico-pastorais da carta
A carta aos Romanos contém muito dos temas teológico-pastorais tratados nas constantes discussões com o judaísmo, com os judeu-cristãos e com os gentio-cristãos sobre os conflitos dentro e fora da comunidade, no mundo injusto e desigual do Império Romano. Eis aqui as principais mensagens expostas pela carta após a introdução geral (Rm 1,1-17), na qual Paulo anuncia o tema central: “o Evangelho de Jesus Cristo é força de Deus e para a salvação” (Rm 1,16):
a) Todos estão sob a ira (julgamento) de Deus (Rm 1,18-3,20). Paulo começa com a descrição da realidade da condição dos gregos e dos judeus. A ira divina se manifesta contrária à impiedade contra Deus e à injustiça aos seres humanos, praticadas pelos gregos sob o império (Rm 1,18-32), e também é contra a atitude hipócrita dos judeus por não praticarem a Lei e imporem o jugo da Lei a todos das comunidades de seguidores e seguidoras de Jesus Cristo (Rm 2,1-29): “Tanto os judeus quanto os gregos, todos estão debaixo do pecado” (Rm 3,9).
b) A justiça divina (salvação) pela fé, como o exemplo de Abraão (Rm 3,21-4,25). Pela fé na “redenção realizada por Jesus Cristo”, a graça de Deus, o seu amor gratuito em ação na história (Rm 3,24-26), os judeus e os gregos podem integrar-se no projeto divino (separar-se do pecado: a autossuficiência e a injustiça), praticando a justiça e a piedade para com Deus, e passar da ira de Deus à sua justiça salvadora: “A justiça de Deus que vem por meio da fé em Jesus Cristo, em favor de todos os que acreditam” (Rm 3,22).
c) A graça da justificação em Jesus Cristo (a justificação: tornar-se justo e salvo ou ter amizade e paz com Deus – Rm 5,1-7,25). A salvação de Deus se realiza pela fé na sua graça, manifestada em Jesus Cristo morto e ressuscitado (“novo Adão”), e não pelo poderio do império (o sistema opressivo: “tribulações”) nem pelas obras da Lei do judaísmo legalista (a justiça retributiva, baseada na observância de um código moral e ritual). Ou seja, a pessoa batizada (“servos da justiça”: Rm 6,18), em nome de Jesus Cristo, Servo sofredor (Rm 6,1-4; cf. 4,24-25; 5,12-21; Is 42,1-9; 52,13-53,12), justifica a vida pela fé ativa, traduzida em obras de amor fraterno com “armas de justiça” (Rm 6,13) de Jesus Cristo, condenando o sistema opressivo, livrando-se da escravidão da carne (“lei do pecado”: Rm 7,25), como “armas de injustiça” (Rm 6,5-23), e assegurando a paz com o Deus da vida: “Portanto, tendo sido justificados pela fé, estamos em paz com Deus por meio de nosso Senhor Jesus Cristo” (Rm 5,1).
d) A vida no Espírito (Rm 8,1-39). O capítulo 8 é o ponto máximo da carta e se encontra bem no centro. Contrastando com a vida na carne (“lei do pecado e da morte”, instintos egoístas, o espírito da helenização: Rm 8,2; cf. 7,14-25), a pessoa cristã deve viver no Espírito (a “lei do Espírito da vida”: o amor, o caminho da vida – Rm 8,1; 5,5) de Jesus Cristo – que lutou pela vida, morreu pelo amor ao próximo e foi ressuscitado para a vida –, a fim de passar dos instintos egoístas para a gratuidade da salvação de Deus. Paulo, um apocalíptico, que pressente a vitória (amor, glória) de Deus sobre o mal (pecado, morte), descreve os gemidos de quem vive no Espírito, com a esperança pela libertação e pela vida como parto do mundo novo, cantando o amor salvador de Deus: “Quem nos separará do amor de Cristo?” (Rm 8,35).
e) O universalismo do plano salvífico diante da salvação restrita a Israel – o povo judeu (Rm 9,1-11,36). Não há distinção entre judeus e gregos (não judeus) na salvação gratuita (a graça) de Deus por Jesus Cristo. A salvação não é questão de cultura e de Lei judaica, mas sim da fé no caminho (Evangelho: Rm 10,16; 11,28; Is 52,7) de Jesus Cristo morto e ressuscitado. O fato de os seguidores e as seguidoras de Jesus Cristo serem de etnia, gênero, classe e cultura diferentes não é fator de desunião e de conflito, mas de solidariedade e de enriquecimento mútuo: “Portanto, não há distinção entre judeu e grego, porque Jesus é Senhor de todos, e concede suas riquezas a todos os que o invocam” (Rm 10,12; cf. 1Cor 12,13; Gl 3,28).
f) O amor dentro e fora da comunidade (Rm 12,1-13,14). A pessoa que reconhece a vida (corpo) como graça de Deus, seu amor gratuito em ação, descobre a gratuidade para com os outros; forma a comunidade como um só corpo em Cristo; reparte os dons concedidos por Deus a serviço do bem comum; pratica o amor ao próximo, sobretudo para quem tem sede e fome; submete-se (dedica respeito) à autoridade que está a serviço do amor de Deus e do bem comum: “O amor não faz nenhum mal ao próximo, pois o amor é o cumprimento total da Lei” (Rm 13,10).
g) A convivência e a fraternidade na comunidade (Rm 14,1-15,13). Os “fortes” e os “fracos” convivem no amor de Jesus Cristo, acolhendo as diferenças e construindo o Reino de Deus: “Pois o Reino de Deus não é comida nem bebida (em torno da lei alimentar etc.), e sim justiça, paz e alegria no Espírito Santo. Quem serve a Cristo nessas coisas, agrada a Deus e tem a estima das pessoas” (Rm 14,17-18); “Por isso, acolham-se uns aos outros, como Cristo acolheu vocês para a glória de Deus” (Rm 15,7).
UMA PALAVRA FINAL
Na leitura contextualizada da carta aos Romanos, percebe-se que ela, como todos os escritos de Paulo, não é bem um tratado de teologia dogmática, mas um texto pastoral para quem vive no Espírito de Jesus Cristo e sofre com o mundo dominado pela tirania da “lei do pecado e da morte” (Rm 8,2). Nos gemidos de quem prega o Evangelho de Jesus Cristo crucificado e luta pelo projeto de Deus, Paulo exprime: “Quem nos separará do amor de Cristo? A tribulação, a angústia, a perseguição, a fome, a nudez, o perigo, a espada?” (Rm 8,35). Como quem vive o amor de Jesus Cristo (Rm 8,10-11), Paulo possui a certeza de que o amor, traduzido na sensibilidade, na solidariedade e na fraternidade, sustenta a vida nas horas de dificuldade, angústia, sofrimento e morte, e anima a caminhada rumo ao querer do Deus do amor.
Como no mundo de Paulo, muitos de nossos irmãos e irmãs continuam oprimidos e feridos pelas forças do mal. O império de hoje continua devorando o corpo dos pequenos, explorados até mesmo em nome da religião e da fé. Observa-se também o movimento das pessoas que não compactuam com a injustiça, a exploração e a violência, que levantam e caminham rumo à realização do projeto de Deus, movidas pela fé, pelo amor e pela esperança. Que aumente em nós, sempre mais, o amor de Jesus Cristo crucificado, para que vivamos na esperança da realização definitiva do Reino de Deus, já antecipado no mundo da justiça, da fraternidade e da paz.
[1] No período de Paulo e dos Evangelhos sinóticos, ainda não havia o cristianismo como conhecemos hoje. Havia, sim, um movimento dos seguidores e das seguidoras de Jesus Cristo dentro do judaísmo.
Shigeyuki Nakanose, svd* / Maria Antônia Marques**
*é assessor do Centro Bíblico Verbo e professor no Instituto São Paulo de Estudos Superiores (ITESP). e-mail: [email protected]**é assessora do Centro Bíblico Verbo e professora no Instituto São Paulo de Estudos Superiores (ITESP). e-mail: [email protected]