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Publicado em novembro-dezembro de 2016 - ano 57 - número 312

O agir pastoral que integra e não marginaliza

Por Pe. Geraldo Martins Dias

O objetivo deste artigo é ajudar os agentes de pastoral a ter uma visão geral da Amoris Laetitia e apontar-lhes algumas chaves de leitura na perspectiva vivencial e pastoral. Inicio com breve contextualização do processo que a precedeu. Em seguida, dou uma visão geral de sua estrutura e convido o leitor a mergulhar em seu conteúdo em três momentos. No primeiro, queremos descobrir a intenção do papa ao reafirmar o pensamento da Igreja sobre a família. No segundo, buscaremos as novidades apresentadas na Exortação para, finalmente, determo-nos nas chamadas situações “de fragilidade ou imperfeição”.

 Introdução

Aguardada com expectativa e ansiedade, a Exortação Apostólica Pós-Sinodal do papa Francisco Amoris Laetitia tem despertado grande interesse dos mais variados grupos. Muitos especialistas, teólogos, pastoralistas, sociólogos, entre outros, têm se pronunciado a seu respeito, avaliando suas novidades e limites. Ofereço também minha contribuição, simples, despretensiosa, nascida de um olhar pastoral, e não acadêmico ou técnico. O objetivo é ajudar os agentes de pastoral a ter uma visão geral da Exortação e apontar-lhes algumas chaves de leitura na perspectiva vivencial e pastoral. Assim, apresento breve contextualização do processo que a precedeu para, em seguida, mostrar sua estrutura.

Iniciando a reflexão sobre o conteúdo do documento, convido o leitor a perceber, em primeiro lugar, a intenção do papa Francisco ao reafirmar o pensamento da Igreja sobre a família e a realidade que a envolve. Num segundo momento, desejo provocar a busca das novidades apresentadas na Exortação para, finalmente, deter-me na questão relativa aos que vivem nas chamadas situações “de fragilidade ou imperfeição”.

  1. Surpresas de Francisco

“Deus surpreende-nos sempre, rompe os nossos esquemas, põe em crise os nossos projetos.” Essas palavras pronunciadas pelo papa Francisco na missa da Jornada Mariana, em outubro de 2013, bem que poderiam aplicar-se a ele mesmo. Afinal, desde que foi eleito bispo de Roma, Francisco não cessa de surpreender, seja pelos gestos simples e eloquentes, seja pelos pronunciamentos proféticos e ousados ou pelas atitudes que revelam sua determinação em tornar a Igreja “pobre para os pobres”, “em saída”, “hospital de campanha”, que dialoga com o mundo e o serve tendo a misericórdia como sua “arquitrave”.

Não foi diferente quando anunciou o Sínodo sobre A vocação e a missão da família na Igreja e no mundo contemporâneo, que se realizou em outubro de 2015. Nesse caso, a primeira surpresa foi seu desejo de ouvir “as bases” da Igreja por meio de um questionário aberto e corajoso, em preparação ao Sínodo. Essa atitude, própria de quem é livre no Senhor, revelou a convicção do papa. A segunda foi a realização de um Sínodo extraordinário que preparasse o ordinário com base nas respostas ao questionário sobre o tema enviado às dioceses do mundo inteiro. A terceira, segundo relatos de padres sinodais, ficou por conta da metodologia adotada no Sínodo, muito inspirada nas Conferências Gerais dos bispos da América Latina.

Por todas essas características e pela relevância do tema, é provável que esse tenha sido o Sínodo mais acompanhado pela população mundial desde que foi instituído, há cinquenta anos. É natural, portanto, que fosse aguardado com ansiedade e expectativa o documento que o papa publicaria após o Sínodo, como resultado de suas reflexões. Que surpresas sairiam das mãos e do coração de Francisco depois de ouvir os padres sinodais? O mistério se desfez no dia 8 de abril, pouco mais de cinco meses após o encerramento do Sínodo, com a publicação da Exortação Pós-Sinodal “A alegria do amor”.

Tão logo foi publicada, Amoris Laetitia tornou-se manchete na grande imprensa mundial, que, focada em apenas um aspecto do documento, condicionou o olhar dos mais desavisados a um único ponto do que disse o papa num texto de 325 parágrafos. Uma leitura apressada da Exortação, desaconselhada pelo papa (n. 7), privará o leitor da riqueza deste documento que, em muitos momentos, fala mais pelas entrelinhas, numa sutileza própria de quem quer propor caminhos novos sem rupturas, divisões ou traumas.

  1. Conhecendo para amar

A alegria do amor chama a atenção, em primeiro lugar, por sua extensão, com seus mais de trezentos parágrafos distribuídos em 9 capítulos e 200 páginas. Alguns capítulos têm a leitura mais pesada por causa de extensas citações, que somam 391 ao longo do texto. O destaque dessas citações fica por conta dos relatórios dos dois Sínodos, num total de 133 (53 de 2014 e 80 de 2015) e 142 dos papas Francisco (81), João Paulo II (51) e Bento XVI (10). Aparecem ainda entre os papas, mas com poucas referências, Paulo VI, Leão Magno e Pio XI. Citado 19 vezes, santo Tomás aparece especialmente no capítulo IV (15 vezes), em que Francisco discorre sobre “o amor no matrimônio”. Aparecem, ainda, entre as citações, Conferências Episcopais (9), o Catecismo da Igreja Católica (14), além de outros, incluindo o Vaticano II, especialmente a Gaudium et Spes, e até poetas.

A variedade de citações de nove Conferências Episcopais (espanhola, coreana, argentina, mexicana, colombiana, chilena, australiana, italiana e queniana) e de outros autores confirma o estilo de Francisco, que pensa uma Igreja realmente universal. Em capítulos como o primeiro, o quarto e o nono, em que cita menos ou nem cita os relatórios dos dois Sínodos, o texto é mais leve, de leitura mais agradável, além de profundo e atraente, como é próprio de Francisco. Nesse momento, especialmente, ele deixa falar sua alma de pastor que percorria as periferias de Buenos Aires para levar misericórdia aos que se encontravam nas “periferias existenciais”.

A disposição dos capítulos sugere que Francisco seguiu o método ver, julgar e agir, tão próprio da Igreja na América Latina, mesmo considerando a inovação do papa ao abrir a Exortação com o olhar bíblico. Assim, o capítulo segundo (“A realidade e os desafios da família”) seria o ver; o terceiro (“O olhar fixo em Jesus: a vocação da família”), o quarto (“O amor no matrimônio”) e o quinto (“O amor se torna fecundo”) estariam na ordem do julgar; o sexto (“Algumas perspectivas pastorais”), o sétimo (“Reforçar a educação dos filhos”), o oitavo (“Acompanhar, discernir e integrar a fragilidade”) e o nono (“Espiritualidade conjugal e familiar”) apontam para o agir.

Perceber essa arquitetura da Exortação certamente facilitará sua leitura e assimilação, mesmo que alguém opte por lê-la a partir do capítulo que tenha lhe despertado maior interesse.

  1. Não revogar, mas aperfeiçoar

O processo de preparação e realização do Sínodo, nas suas duas fases, com grande colaboração da imprensa, ajudou a criar muita expectativa em relação a mudanças na doutrina da Igreja em questões relativas à situação dos que vivem sem o sacramento do matrimônio, no que diz respeito, especialmente, à sua participação nos sacramentos da confissão e da eucaristia. A expectativa não era menor também em relação à posição da Igreja sobre a união homoafetiva, o uso de contraceptivos e a participação dos homossexuais na comunidade eclesial.

O papa parece jogar um balde de água fria nos que alimentavam essa expectativa ou outras semelhantes quando afirma, logo no início de seu documento: “recordando que o tempo é superior ao espaço, quero reiterar que nem todas as discussões doutrinais, morais ou pastorais devem ser resolvidas através de intervenções magisteriais” (n. 3). Ele deixa claro que não é sua proposta mudar a doutrina da Igreja nessas questões. Os caminhos parecem, então, fechar-se, mas imediatamente ele esclarece e revela o caminho que percorrerá ou convidará a Igreja a trilhar:

Naturalmente, na Igreja, é necessária uma unidade de doutrina e de práxis, mas isso não impede que existam maneiras diferentes de interpretar alguns aspectos da doutrina ou algumas consequências que decorrem dela […]. Além disso, em cada país ou região, é possível buscar soluções mais inculturadas, atentas às tradições e aos desafios locais (n. 3).

Sua palavra faz-nos lembrar Jesus, no Sermão da Montanha: “Não pensem que vim revogar a Lei e os Profetas. Não vim revogá-los, mas dar-lhes pleno cumprimento” (Mt 5,17). Vai na direção de uma Igreja de porta aberta e não controladora da graça, como se fosse uma alfândega (FRANCISCO, 2013, p. 42). É com esse espírito que devem ser lidos especialmente os capítulos terceiro, quinto e oitavo, em que Francisco retoma a doutrina da Igreja sobre o sacramento do matrimônio e a vocação da família.

A diferença está no seu olhar de pastor, com o qual revisita o pensamento da Igreja e lhe dá uma roupagem nova, como ocorre ao dizer, por exemplo: “quando dois cônjuges não cristãos recebem o batismo, não é necessário renovar a promessa nupcial, sendo suficiente que não a rejeitem, pois, pelo batismo que recebem, essa união torna-se automaticamente sacramental” (n. 75).

O mesmo ocorre quando trata da chamada ideologia de gênero. “Uma coisa é compreender a fragilidade humana ou a complexidade da vida, e outra é aceitar ideologias que pretendem dividir em dois os aspectos inseparáveis da realidade” (n. 56). Ou ainda:

É preciso reconhecer que há casos em que a separação é inevitável. Por vezes, pode tornar-se até moralmente necessária, quando se trata de defender o cônjuge mais frágil, ou os filhos pequenos, das feridas mais graves causadas pela prepotência e a violência, pela humilhação e a exploração, pela alienação e a indiferença (n. 241).

Ao que parece, o papa propõe retirar a ênfase que, por longo tempo, ficou na doutrina e trazê-la para a pessoa, a exemplo da prática de Jesus. Ele chama a Igreja a fazer uma autocrítica a esse respeito logo no início da Exortação, quando analisa a realidade e os desafios da família. “Muitas vezes apresentamos de tal maneira o matrimônio que o seu fim unitivo, o convite a crescer no amor e o ideal de ajuda mútua ficaram ofuscados por uma ênfase quase exclusiva no dever da procriação” (n. 36). E acrescenta:

Durante muito tempo pensamos que, com a simples insistência em questões doutrinais, bioéticas e morais, sem motivar a abertura à graça, já apoiávamos suficientemente as famílias, consolidávamos o vínculo dos esposos e enchíamos de sentido as suas vidas compartilhadas. Temos dificuldade em apresentar o matrimônio mais como um caminho dinâmico de crescimento e realização do que como um fardo a carregar a vida inteira. Também nos custa deixar espaço à consciência dos fiéis, que muitas vezes respondem o melhor que podem ao Evangelho no meio dos seus limites e são capazes de realizar o seu próprio discernimento perante situações onde se rompem todos os esquemas. Somos chamados a formar as consciências, não a pretender substituí-las (n. 37).

De maneira especial, o capítulo seis é um convite a rever a prática pastoral junto às famílias, constituindo referência de primeira grandeza, especialmente para os responsáveis pela preparação dos que são vocacionados ao matrimônio. A Pastoral Familiar e os movimentos ligados à família têm aí a novidade do olhar paternal, diria mesmo maternal, do papa sobre como guiar e ajudar os noivos, os casais e as famílias a fazer do matrimônio um caminho de santidade. O mais interessante é o tom terno e acolhedor dado pelo papa sobretudo a situações mais exigentes, que ele classifica como “algumas situações complexas” (nn. 247-252). É o caso, por exemplo, das famílias que vivem a experiência de ter em seu seio pessoas com tendência homossexual.

Reconhecendo tratar-se de uma questão difícil tanto para os pais quanto para os filhos, o papa mostra que a solução está na acolhida, e nunca na discriminação:

Desejo, antes de tudo, reafirmar que cada pessoa, independentemente da própria orientação sexual, deve ser respeitada na sua dignidade e acolhida com respeito, procurando evitar “qualquer sinal de discriminação injusta” e particularmente toda forma de agressão e violência (n. 250).

  1. Jeito novo de falar sobre coisas antigas

Embora toda a Exortação seja merecedora de nossa atenção, dada a riqueza de seu conteúdo e o modo como é apresentado, destaco os capítulos primeiro, quarto e oitavo como os que mais evidenciam o estilo pessoal de Francisco. Ao contrário do oitavo, os outros dois trazem apenas brevíssima citação do Sínodo.

Inspirado no Salmo 128, o papa inicia sua Exortação discorrendo sobre quatro realidades fundamentais da vida familiar: o casal, os filhos, o sofrimento e o trabalho. Trata-se de um jeito novo e leve de falar da vocação da família à luz da Bíblia. Nada pesado nem maçante. Ele fala dos deveres do casal de forma mística: “O amor fecundo chega a ser o símbolo das realidades íntimas de Deus […]. A capacidade que o casal humano tem de gerar é o caminho por onde se desenrola a história da salvação” (n. 11).

Fonte salutar para a vida das pessoas e dos casais, de maneira particular, é o capítulo quarto, em que Francisco navega de forma poética sobre as virtudes do amor. Com seu jeito paterno de tratar o cotidiano, de maneira simples e direta, ele nos ajuda a mergulhar no profundo mistério do amor. Anima-nos a fazer uma revisão de como o praticamos em nosso dia a dia, ou melhor, de como às vezes nos faltam as virtudes que de fato caracterizam o amor cristão.

“Enquanto o amor nos leva a sair de nós mesmos, a inveja leva a centrar-nos em nós próprios” (n. 95), lembra ele, por exemplo, em relação à inveja, tão presente na vida humana. “Ser amável não é um estilo que o cristão possa escolher ou rejeitar: faz parte das exigências irrenunciáveis do amor” (n. 99), exorta acerca da amabilidade. “Deve-se evitar dar prioridade ao amor a si mesmo, como se fosse mais nobre do que o dom de si aos outros” (n. 101), adverte em relação ao desprendimento que cada um deve ter de si mesmo. “Faz falta rezar a própria história, aceitar a si mesmo, saber conviver com as próprias limitações e inclusive perdoar-se, para poder ter essa mesma atitude com os outros” (n. 107), ensina sobre o perdão.

  1. O novo olhar que pode gerar nova prática

O capítulo oitavo é, sem dúvida alguma, o mais procurado da Exortação. Para os que só sentem segurança com normas bem determinadas, o papa foi uma decepção nessa parte. Afinal, ele não definiu o que pode e o que não pode com relação às situações concretas que angustiam pastores zelosos. Muitos desses pastores vivem cotidianamente o constrangimento de dizer não a casais sem o sacramento do matrimônio que se apresentam, seja para receber o sacramento da confissão ou da eucaristia, seja para ser padrinhos de batismo ou desempenhar outras atividades na Igreja. As famílias que protagonizam essas situações também devem ter sentido uma espécie de frustração, sobretudo se ficaram com a “verdade” divulgada pela imprensa acerca da Exortação.

Contudo, se soubermos ler bem o que Francisco propõe, constataremos que ele revoluciona na forma e no conteúdo. Antes de tudo, apresenta o princípio que deve fundamentar a ação da Igreja e, consequentemente, a de seus pastores: reintegrar, e não marginalizar. “O caminho da Igreja é o de não condenar eternamente ninguém” (n. 296). Eis aí o critério à luz do qual todas as chamadas situações “irregulares” (entre aspas, como escreve o papa) devem ser tratadas.

Trata-se de integrar a todos, deve-se ajudar cada um a encontrar a sua própria maneira de participar na comunidade eclesial, para que se sinta objeto de uma misericórdia “imerecida, incondicional e gratuita”. Ninguém pode ser condenado para sempre, porque essa não é a lógica do Evangelho! Não me refiro só aos divorciados que vivem numa nova união, mas a todos seja qual for a situação em que se encontrem (n. 297).

O papa propõe, então, um itinerário a ser percorrido pelo pastor junto à sua ovelha mais sofrida a fim de ajudá-la a se encontrar no amor de Deus. O objetivo é integrar a ovelha ao rebanho, fazê-la sentir-se membro do redil. O discernimento é que iluminará a norma para levar à integração. Nesse sentido, toda possibilidade parece aberta. É o que se pode deduzir quando fala a respeito dos “divorciados e recasados”:

A lógica da integração é a chave do seu acompanhamento pastoral, para saberem que não só pertencem ao Corpo de Cristo que é a Igreja, mas podem também ter disso mesmo uma experiência feliz e fecunda. São batizados, são irmãos e irmãs, o Espírito Santo derrama neles dons e carismas para o bem de todos. A sua participação pode exprimir-se em diferentes serviços eclesiais, sendo necessário, por isso, discernir quais das diferentes formas de exclusão atualmente praticadas em âmbito litúrgico, pastoral, educativo e institucional possam ser superadas. Não só não devem sentir-se excomungados, mas podem viver e maturar como membros vivos da Igreja, sentindo-a como uma mãe que sempre os acolhe, cuida afetuosamente deles e encoraja-os no caminho da vida e do Evangelho (n. 299).

Se, por um lado, o papa reconhece ser impossível estabelecer uma norma única para uma variedade de situações, por outro, ele encoraja a busca do discernimento para os casos particulares. Já que os graus de responsabilidade são diferentes (e isso é reconhecido pelos próprios padres sinodais), “as consequências ou efeitos de uma norma não devem ser necessariamente os mesmos” (n. 300). Eis a chave revolucionária da Amoris Laetitia!

Essa afirmação do papa fica ainda mais clara quando nos voltamos para a nota que a acompanha, de autoria do próprio Francisco: “E também [as consequências e os efeitos] não devem ser sempre os mesmos na aplicação da disciplina sacramental, dado que o discernimento pode reconhecer que, numa situação particular, não há culpa grave. Nesse caso, aplica-se o que afirmei noutro documento [Evangelii Gaudium, nn. 44-47]” (nota 336).

A leitura atenta desse capítulo, especialmente por parte dos ministros ordenados, provocará revisão profunda no exercício de seu ministério em relação a esses casos que há anos os afligem, bem como aos que neles se encontram. Como não rever nossa posição quando o papa diz, por exemplo, que “já não é possível dizer que todos os que estão em uma situação chamada ‘irregular’ vivem em estado de pecado mortal, privados da graça santificante” (n. 301)? Ou quando sustenta que o pastor “não deve sentir-se satisfeito apenas aplicando leis morais aos que vivem em situações ‘irregulares’, como se fossem pedras que se atiram contra a vida das pessoas” (n. 305)?

Este mesmo parágrafo 305 mostra que uma pessoa, “no meio de uma situação objetiva de pecado”, pode não ser subjetivamente culpável, vivendo assim na graça de Deus. O caminho é o do discernimento, e os padres são chamados a ajudar a trilhá-lo. Há uma nota explicativa dessa afirmação, de autoria do próprio papa, que merece toda a atenção. Segundo Todd A. Salzman e Michael G. Lawler (2016), essa nota oferece a possibilidade de que casais sejam admitidos aos sa­cramentos em certas circunstâncias.

Em consonância com esse tema geral da misericórdia e caridade, ele [papa Francisco] ressalta que a eucaristia “não é um prêmio para os perfeitos, mas um remédio generoso e um alimento para os fracos”. O papa não chega a expressar uma permissão geral da admissão à comunhão das pessoas divorciadas e recasadas sem anulação, mas está claro que ele deixa a admissão aberta em casos com dis­cernimento. Não abre automaticamente a porta para a mudança, mas certamente nos informa onde está a chave da porta, a saber, como já explicamos, sob o capacho do discernimento pastoral orientado e da de­cisão de uma consciência informada.

O que deve prevalecer, portanto, é a misericórdia, e isso vai exigir da Igreja verdadeira conversão, uma vez que temos dificuldade, na pastoral, de dar lugar “ao amor incondicional de Deus”. “Pomos tantas condições à misericórdia que a esvaziamos de sentido concreto e real significado, e esta é a pior maneira de frustrar o Evangelho” (n. 311).

O caminho é longo e está apenas começando. A tríade estabelecida pelo papa Francisco – acompanhar, discernir e integrar – exigirá, sobretudo dos bispos e presbíteros, o compromisso de novas leituras e práticas sobre o que até então vigora nas orientações da própria Igreja. Os princípios estão postos, as diretrizes estão dadas. E tudo de acordo com a prática de Jesus conforme nos ensina o Evangelho.

Conclusão

O que mudará na Igreja com a Amoris Laetitia? É difícil prever. Pode-se, contudo, afirmar que provocará muitas inquietações e suscitará novo olhar sobre questões que pareciam cristalizadas. Daí a esperança de que também ajude a descobrir novas práticas, considerando as brechas sugeridas pelo papa Francisco. Segundo Francis DeBernardo, em entrevista à revista IHU, Amoris Laetitia “pode transformar a Igreja se os bispos aplicarem os seus princípios nos cuidados pastorais”. Trata-se, em sua opinião, do documento mais poderoso publicado pelo papa Francisco. “Ele tem o potencial de transformar a Igreja. É um radical deslocamento do caráter julgador e punitivo do passado. Será o documento pelo qual Francisco será mais lembrado” (DeBERNARDO, 2016).

Bibliografia

DeBERNARDO, F. Potência transformadora e conservadorismo num mesmo ato. IHU Online: revista do Instituto Humanitas Unisinos, n. 483, ano XVI, p. 45, abr. 2016.

FRANCISCO, Papa. Amoris Laetitia: sobre o amor na família. São Paulo: Paulus, 2016.

______. A alegria do Evangelho. São Paulo: Paulus: Loyola, 2013.

SALZMAN, T. A.; LAWLER, M. G. Sinalização do início de abertura na Igreja. IHU Online: revista do Instituto Humanitas Unisinos, n. 483, ano XVI, p. 30, abr. 2016.

Pe. Geraldo Martins Dias

Pe. Geraldo Martins Dias, presbítero da Arquidiocese de Mariana, é coordenador arquidiocesano de pastoral e pároco da Paróquia Nossa Senhora da Glória, em Passagem de Mariana (MG). Formado em Jornalismo, foi assessor de imprensa e política da CNBB. E-mail: [email protected].