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Publicado em julho-agosto de 2022 - ano 63 - número 346 - pág.: 22-27

O índio e a independência do Brasil: uma questão ambígua

Por Orlando Garcia*

Avaliamos neste artigo a participação dos índios nas comemorações de Independência do Brasil, considerando tanto a redução de seu território, mediante a política indigenista implementada pelo Estado português e pelo Império brasileiro, como o fato de pertencerem a nações indígenas não reconhecidas pelo Estado nacional de antes, durante e depois da Independência.

Introdução

É fato que os índios não estão incorporados como sujeitos protagonistas na história do país. É fato também, portanto, que os aborígines não se inserem no Estado nacional nem como cidadãos, com direitos abrangentes, nem como brasileiros, uma vez que possuem nações próprias. Sendo assim, teria de haver uma razão plausível que justificasse a participação deles em datas comemorativas do país. Mesmo assim, por razões variadas, muitos dos povos indígenas participam dessas datas, e não será diferente em relação às comemorações dos 200 anos de Independência neste ano de 2022.

A fim de chegar a uma justificativa definitiva para essa constatação, seria preciso uma pesquisa ampla a respeito do assunto, o que fugiria aos propósitos deste artigo. Todavia, é possível colaborar no fornecimento de uma explicação, refletindo, por exemplo, sobre a relação que os indígenas têm mantido com a terra antes, durante e após a independência do Estado brasileiro, além de investigar qual relação de pertença eles mantêm com a nação brasileira e, a partir daí, avaliar qual a importância, em sua perspectiva e na do país, de participar ou não das comemorações da Independência do Brasil. Pesquisadores como José Mauro Gagliardi, Fernanda Sposito e Eduardo Viveiros de Castro, entre outros, contribuem para esclarecer o ponto de vista sob o qual o índio é considerado e sua relação com o Brasil.

1. A política indigenista do Estado português/brasileiro

Sabe-se que índios possuem territórios, línguas e leis próprias que lhes conferem status de membros de nações indígenas e por isso deveriam, historicamente, ser reconhecidos como sujeitos social, política e culturalmente independentes. Na história do Brasil, no entanto, as nações indígenas, com suas leis, línguas e territórios, nunca foram reconhecidas como tais. Embora atualmente ainda existam muitas nações e variadas línguas (aproximadamente 180 sendo faladas por diversas tribos no território nacional), a política do Império português no Brasil se orientava no sentido de exercer a primazia da língua portuguesa sobre as línguas indígenas, a exemplo do que fez o Marquês de Pombal, que, ainda no século XVIII, proibiu que a língua tupinambá, a mais difundida no país na época, continuasse a ser falada. A política de Pombal tinha por objetivo a ocupação do território brasileiro, a unidade cultural e política e a hegemonia portuguesa (GAGLIARDI, 1989, p. 28).

A política indigenista do Império brasileiro desde 1822, realizada por José Bonifácio de Andrada e Silva, propunha quatro princípios básicos voltados para a integração do índio à sociedade brasileira: justiça, para assegurar que as terras dos índios não lhes fossem retiradas por força e sem indenização, brandura no trato com os índios, constância no acompanhamento das medidas adotadas e sofrimento, com o objetivo de sensibilizá-los quanto à questão da religião e fé cristã (GAGLIARDI, 1989, p. 30). No entanto, o Decreto nº 426, de 24 de julho de 1845, estabelecia que os índios teriam de aceitar a condição de trabalhadores braçais em terras que antes eram suas, e a Lei nº 601, de 18 setembro de 1850, por sua vez, foi uma iniciativa pública para regulamentar a questão fundiária no período do Império, cabendo ao Estado delimitar as terras e distribuí-las – o que acabou por fazer, privilegiando os interesses dos fazendeiros latifundiários. Dessa forma, a demarcação das terras índias se limitou à definição de uma política de terras por concessão e posse, como única alternativa de acesso a elas, substituindo o sistema de concessão por sesmarias. O novo sistema contribuiu para diminuir as terras ocupadas por indígenas e também aumentou o número de terras devolutas pertencentes ao Estado, o que manteve as terras improdutivas e as fez aumentar em número. Com a lei de terras e de posse legal de boa parte delas pelo Estado, os índios do Brasil tiveram suas terras ainda mais reduzidas.

Levando em conta que o termo “indígena” designa quem mora na terra e vive dela, sabe-se que todos os índios do Brasil são indígenas, porém nem todos os indígenas são índios (VIVEIROS DE CASTRO, 2016). Mais ainda: nem todos os que tomaram posse de terras ou as ampliaram em seu favor, a partir do surgimento da Lei de Terras em 1850, eram indígenas, o que provocou o aumento das terras improdutivas e a redução das terras para índios. Aliás, a delimitação de terras para os índios do Brasil mediante demarcações, a qual ocorre desde os tempos coloniais, significaria, em uma análise conclusiva mais ampla, que suas terras foram retiradas de suas posses, desconsiderando-se terem sido eles os primeiros e legítimos proprietários do território, do qual os portugueses se apropriaram ao chegarem aqui por volta dos séculos XV e XVI. A partir de então, ao longo da história das apropriações pelo sistema de sesmarias e depois pelo sistema de posse concedido pelo Estado, os índios e suas nações foram perdendo a posse de suas terras e riquezas.

Após a independência, o Império brasileiro decretou a Lei nº 426, de 24 de julho de 1845, conhecida como Regulamento das Missões, que determinava como se daria o contato com os índios de então – nada favorável a eles, é claro.

2. A legislação

Toda a legislação criada para os índios do Brasil, antes da independência e depois dela, foi um demonstrativo do controle do Estado sobre as terras dos índios, sobre o destino dado a elas, sobre as línguas faladas por eles e sobre seu modo de vida. O Regulamento das Missões de 1845 permaneceu válido até o final do Império, em 1889.

O Estatuto do Índio, de 1973, já previa também – como todo o conjunto de leis e instituições criadas desde o período colonial – a integração do índio à sociedade. Além disso, a Constituição de 1988 garantiu a proteção da cultura das populações tradicionais, sempre visando à integração dos índios à cultura branca/mestiça, fazendo-os seguir regularmente as leis do Estado nacional e os afastando das leis internas das tribos e aldeias e de suas culturas.

A Constituição de 1988 configura os direitos dos índios e lhes assegura o respeito à organização social, aos seus costumes, ao uso de suas línguas, às suas crenças e tradições. Porém, isso efetivamente não ocorreu, pois se manteve a iniciativa de integração do índio à nação brasileira por meio de mecanismos políticos criados para tanto, além de não reconhecer de fato sua autodeterminação. Apesar de a última Carta Magna ter estabelecido novas relações entre Estado, sociedade e povos índios e a ideia de proteção trazer certo afinamento na relação do Estado com os povos da floresta, de certo ponto de vista, o controle sobre a vida nas aldeias continuou – com efeito, na Constituição de 1988, o direito às terras índias foi definido como “direito originário”, mas sob o controle do Estado. No artigo 215 da Constituição de 1988, consta que cabe ao Estado proteger as manifestações da cultura indígena, o que, em outras palavras, significa também controlar e vigiar, pondo as nações indígenas sob a tutela do Estado. Outro dispositivo constitucional de 1988 que fere as liberdades dessas nações é a LDB, ao atribuir competência ao Ministério da Educação para coordenar a política nacional de educação escolar indígena, pois, com escolas no interior das aldeias, a cultura branca/mestiça é mantida a despeito da vontade dos povos da floresta.

Para avaliarmos a possibilidade de os índios serem inclusos como brasileiros no período em que se elaborava a Constituição de 1823, promulgada em 1824, a questão inicial e fundamental está em analisarmos como eles foram posicionados pela Carta Magna:

Na sequência, durante a efetivação do pacto político, expresso no processo de elaboração da Constituição, não houve sérios problemas em deixar os indígenas de fora. Aqui, somente os homens livres, com certa faixa de renda e que partilhassem da cultura ocidental é que seriam incluídos. A possibilidade de incluir os demais parecia absurda para os legisladores do período, já que escravos e autóctones, conforme visto, estavam completamente fora do plano político e social que os dirigentes nacionais estavam delimitando (SPOSITO, 2012, p. 29).

Assim, para situá-los no cenário nacional brasileiro do período da Independência, em meio aos embates políticos e jurídicos travados entre opositores herdeiros do liberalismo do Antigo Regime europeu, principalmente entre os chamados portugueses e brasileiros, temos de ver os índios como pertencentes a uma categoria social marginalizada, pois, nessas lutas, os que não possuíam representatividade social na política liberal da época ficavam de fora de qualquer possibilidade de intervenção.

Considerações finais

Qualquer argumentação, negativa ou positiva, a respeito da participação do índio nas comemorações da Independência do Brasil sugere uma análise sobre a relação do índio com a terra e com o Estado nacional. Sobre a questão das demarcações de terras para índios, já vimos que, historicamente, houve reduções sistemáticas, até hoje em andamento. Na primeira Constituição da nação, a de 1823, em que se evidenciava uma diferença entre cidadãos e brasileiros, o índio estava posto em qual relação com o Brasil? Na argumentação de Fernanda Sposito (2012), havia uma sociedade brasileira real e outra nacional, dilema que tornava claro e evidente que nem todos os povos que viviam em solo brasileiro teriam cidadania. Tratava-se de diferenças jurídicas e políticas. No caso dos escravos, todos os nascidos no Brasil seriam brasileiros, embora não fossem cidadãos; no caso dos índios, “[…] nem cidadãos, nem brasileiros seriam segundo essa acepção, pois, além de não pertencerem à sociedade civil, não compartilhavam nem mesmo os valores da cultura ocidental, estando, portanto, fora dos planos político e social que se delineavam” (SPOSITO, 2012, p. 19). De acordo com essa autora, havia no Brasil da época uma igualdade jurídica que não significava igualdade política, por diferenças supostamente “naturais” existentes. Trata-se de uma ambiguidade mal resolvida, do ponto de vista político, praticada pelo Estado nacional e imperial brasileiro no século XIX, Estado certamente edificado pela corte portuguesa.

A formação do Brasil independente, a partir de 1822, ocorreu em meio a lutas por interesses regionais. Ao imperador e sua família cabia a representação do Estado, conciliações políticas para governar e nomeações, estabelecendo até mesmo os que teriam direitos sociais e políticos reconhecidos e aqueles que não seriam reconhecidos como brasileiros, a exemplo dos índios (SPOSITO, 2012, p. 23).

Para que os índios pudessem ser reconhecidos como brasileiros e cidadãos, deveriam abandonar seu modo de vida, seus costumes e suas crenças; em outras palavras, seria o mesmo que abandonar suas línguas, seus territórios e suas leis próprias, abdicando da condição de índios pertencentes a nações independentes. Entretanto, ainda assim seria difícil sua aceitação jurídica por grande parte da elite, que preferia mantê-los na condição de escravos em potencial.

Esse é um problema a ser mais bem desenvolvido pela historiografia. Atualmente, os índios exercem o direito ao voto (ainda que, para isso, devam ter 18 anos e ser alfabetizados em língua portuguesa) e possuem o direito de se candidatar a cargos públicos. A questão, aparentemente contraditória, consiste na seguinte indagação: o índio, exercendo alguns direitos de cidadania brasileira, ainda pode ser visto como índio? A resposta para essa pergunta demanda um estudo aprofundado a respeito do que é ser índio no Brasil. Enfim, o que a priori avaliamos nesta análise não é quanto o índio participa, ou não, das comemorações da Independência do Brasil, mas o que isso significa para esses povos, uma vez que pertencem a diferentes nações, desprovidas de reconhecimento pelo Estado nacional de antes, durante e depois da
independência.

Referências bibliográficas

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CAVALCANTE, J. L. A Lei de Terras de 1850 e a reafirmação do poder básico do Estado sobre a terra. Revista Histórica, São Paulo, n. 2, jun. 2005. Disponível em: https://goo.gl/M2YGtV. Acesso em: 10 fev. 2012.

GAGLIARDI, José Mauro. O indígena e a República. São Paulo: Hucitec: Editora da Universidade de São Paulo: Secretaria de Estado da Cultura, 1989.

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PENA, Rodolfo F. Alves. Demarcação de terras indígenas no Brasil. Brasil Escola, Goiânia, [20–]. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/brasil/demarcacao-terras-indigenas-no-brasil.htm. Acesso em: 10 fev. 2021.

SPOSITO, Fernanda. Nem cidadãos, nem brasileiros: indígenas na formação do Estado nacional brasileiro e conflitos na província de São Paulo (1822-1845). São Paulo: Alameda, 2012.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Os involuntários da pátria: reprodução da aula pública realizada durante o ato Abril Indígena, Cinelândia, Rio de Janeiro, 20/04/2016. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4865765/mod_resource/content/1/140-257-1-SM.pdf. Acesso em: 10 fev. 2022.

Orlando Garcia*

*é doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, membro do Grupo de Pesquisa CNPQ-PUC-SP: Comunicação, Cultura e Oralidade, autor de vários artigos em revistas eletrônicas e de vários capítulos de livros publicados em coletâneas. É autor do livro O índio vê uma TV que a gente não vê: o jeito terena de ver TV. É pesquisador da cultura indígena e suas conexões socioculturais e mestiças com a sociedade não índia. E-mail: [email protected]