Publicado em novembro-dezembro de 2025 - ano 66 - número 366 - pp. 18-23
PAPA FRANCISCO E O LEGADO HUMANISTA DA COMUNICAÇÃO
Por Dom Valdir José de Castro, ssp*
Neste texto, buscamos destacar alguns aspectos, entre outros, do legado do papa Francisco para a comunicação, herança que certamente constitui uma bússola para a Igreja no que se refere ao tema da comunicação, num contexto social atual sempre mais plural e complexo.
“A alegria do Evangelho” foi, sem dúvida, a inspiração das palavras e dos gestos do papa Francisco nos seus doze anos de pontificado. Nesse trajeto, deixou-nos imenso legado, no qual podemos incluir também o magistério referente à comunicação, edificado especialmente por meio de discursos e das mensagens para o Dia Mundial das Comunicações Sociais (DMCS). Francisco não somente valorizou os meios técnicos de comunicação digitais e analógicos no serviço à evangelização, mas também soube instaurar um diálogo profundo e autêntico com o mundo da comunicação, focando-o sempre do ponto de vista humano, mesmo quando se referia às tecnologias.
1. A comunicação como “proximidade”
É oportuno destacar, de início, que a visão do papa Francisco no que se refere à comunicação era prevalentemente humanista. Mesmo quando fazia referência ao aspecto técnico-instrumental da comunicação, situava-a no âmbito das interações humanas. De fato, nesse horizonte, já na sua primeira mensagem para o Dia Mundial das Comunicações Sociais, em 2014, expressou que a verdadeira comunicação não é aquela que apenas informa, mas a que cria proximidade e humaniza.
Para o papa Francisco, a proximidade está ligada à capacidade de abertura a Deus e de se fazer próximo das pessoas. É a condição para criar comunhão. Fundamenta-se no princípio de que “Deus não é Solidão, mas Comunhão; é Amor e, consequentemente, comunicação, porque o amor sempre comunica; antes, comunica-se a si mesmo para encontrar o outro” (DMCS, 2019). Nesse sentido, Jesus de Nazaré é o maior comunicador de todos os tempos (cf. DMCS, 2025), que anunciou o Reino de Deus não somente com discursos, mas sobretudo com suas atitudes, seus gestos, seu olhar e até com seu silêncio.
Também no que diz respeito à sua pregação, Jesus não se referia a Deus Pai com discursos abstratos, mas o revelava com parábolas, isto é, com linguagem simples e narrações tiradas da vida de todos os dias. Foi justamente com base em uma parábola, a do Bom Samaritano (Lc 10,25-37), que o papa Francisco intuiu a comunicação como proximidade, até a ponto de afirmar que essa parábola é a “parábola do comunicador” (DMCS, 2014). De fato, o samaritano se faz próximo ao dispensar atenção e cuidados ao homem que encontra quase morto ao lado da estrada, sem deixar-se intimidar pelas diferenças. Essa parábola nos ensina que, de uma “escuta” sem preconceitos, atenta e disponível, nasce uma comunicação segundo o estilo de Deus, que se sustenta de proximidade, compaixão e ternura.
2. Acolher, escutar e falar com o coração
Na sua visão humanista da comunicação, como proximidade, por diversas vezes o papa Francisco fez referência ao coração. Num tempo dominado pelos ritmos e ruídos da tecnologia e no qual predomina a busca desenfreada pelo consumo e por um individualismo doentio, que corroem as relações interpessoais, insistiu que é preciso dar espaço ao “coração”. Na mensagem para o Dia Mundial das Comunicações Sociais deste ano, Francisco afirmou que, nestes últimos anos, foi o coração que lhe ditou o fio condutor para a reflexão sobre a comunicação.
É oportuno esclarecer que o coração, aqui compreendido, é “o centro do desejo e o lugar onde são forjadas as decisões mais importantes de uma pessoa” (Francisco, 2024a, n. 3); é o centro unificador do ser humano que dá sentido e orientação à vida. No entanto, o que o coração tem a ver com a comunicação? Como salientou o papa, “é o coração que origina a proximidade; é pelo coração que me encontro junto aos outros e os outros estão igualmente junto a mim” (Francisco, 2024a, n. 12). De fato, “uma relação que não é construída com o coração não pode ultrapassar a fragmentação do individualismo” (Francisco, 2024a, n. 17).
Nesse processo de criar “proximidade”, assumem importância fundamental as atitudes de acolher, de escutar e de falar “com o coração”, como condições para fomentar o diálogo. Nessa perspectiva, o papa Francisco dedicou duas mensagens para o Dia Mundial das Comunicações Sociais. A mensagem de 2022, que teve como tema “Escutar com o ouvido do coração”, e a de 2023: “Falar com o coração, segundo a verdade na caridade (Ef 4,15)”.
Francisco insistia que do coração partem a escuta, o acolhimento e a partilha; consequentemente, a atenção ao outro. “Só prestando atenção a quem ouvimos, àquilo que ouvimos e ao modo como ouvimos é que podemos crescer na arte de comunicar, cujo cerne não é uma teoria nem uma técnica, mas a capacidade do coração que torna possível a proximidade” (DMCS, 2022). Uma vez que o “coração” entra em cena, cria-se uma linguagem desarmada, que estreita as relações e estabelece o diálogo com todos, também com os que pensam diferentemente de nós.
3. Habitar o ambiente digital
Se o papa Francisco salientou a importância da comunicação do ponto de vista humano, como foi descrito, não menos importância deu ao ambiente digital, que é o lugar por onde circula, hoje, grande parte da humanidade. A propósito, ele mesmo se fez presente nas redes sociais, com milhões de seguidores. Era consciente de que, atualmente,
já não se trata apenas de “usar” instrumentos de comunicação, mas de viver em uma cultura amplamente digitalizada, que afeta de modo muito profundo a noção de tempo e de espaço, a percepção de si mesmo, dos outros e do mundo, o modo de comunicar, de aprender, de informar-se, de entrar em relação com os outros (Francisco, 2019, n. 86).
O grande desafio que Francisco deixou à Igreja é como comunicar com o coração e criar proximidade também no ambiente digital: um lugar importante para o acesso às informações e ao conhecimento, mas também onde estão em jogo os interesses econômicos, a manipulação, a desinformação, a exploração e a violência, constituindo, por isso, um espaço irrenunciável para a evangelização, para o diálogo, para o encontro e intercâmbio entre as pessoas. De fato, na Mensagem para o Dia Mundial das Comunicações Sociais de 2014, já havia afirmado que não basta circular pelas “estradas” digitais, isto é, simplesmente estar conectados: é necessário que a conexão seja acompanhada pelo encontro verdadeiro.
Num mundo cada vez mais conectado, as tecnologias têm um papel fundamental na comunicação, porém, como alertou Francisco, neste tempo corre-se o risco de ser rico em técnica e pobre em humanidade (DMCS, 2024); ademais, não é a tecnologia que determina se ela é autêntica ou não, mas o coração humano e sua capacidade de fazer bom uso dos meios ao seu dispor (DMCS, 2016).
4. A inteligência artificial
A Igreja, no pontificado do papa Francisco, prosseguindo na linha de pensamento de seus predecessores, especialmente dos papas São João Paulo II e Bento XVI, reconheceu que as redes digitais são invenções geniais e que não é possível pensar em viver num tempo diferente do nosso. A tecnologia é importante, porém ela não pode levar a corromper a beleza da comunicação. Nessa direção, Francisco tratou também da inteligência artificial, tecnologia que abrange muitos setores da sociedade, como a medicina, o mundo do trabalho, a educação, a política etc., incluindo a comunicação.
O papa Francisco foi uma das poucas lideranças mundiais, senão a única, que tratou, de forma direta e profética, a questão do uso ético da inteligência artificial. Caso relevante é o discurso que fez aos chefes de Estado numa sessão do G7, realizada em Borgo Egnazia (Itália), em 14 de junho de 2024, em que considerou os aspectos positivos, mas também os riscos do uso inconsequente da inteligência artificial. Também para a mensagem para o Dia Mundial da Paz de 2024 escolheu como tema “Inteligência artificial e paz”, e para o Dia Mundial das Comunicações Sociais daquele ano o tema foi: “A inteligência artificial e a sabedoria do coração: para uma comunicação plenamente humana”.
Em muitos discursos referentes à comunicação, Francisco deixou transparecer sua preocupação com a cultura da desinformação que enfrentamos, no caso das fake news, a qual hoje se serve também da deep fake, isto é, da criação e divulgação, com o recurso da inteligência artificial, de imagens que parecem perfeitamente plausíveis, mas são falsas, ou de mensagens de áudio que usam a voz de uma pessoa, dizendo coisas que ela própria nunca diria. A simulação, que está na base desses programas, pode ser útil em alguns campos específicos, mas – denunciou o papa – torna-se perversa quando distorce as relações com os outros e com a realidade.
O que é necessário combater, deixou claro Francisco, não é tanto a inteligência artificial, mas a estupidez humana. É preciso guiarmos a inteligência artificial, e não sermos guiados por ela. É necessário, sim, aceitar os desafios do nosso tempo, mas permanecendo humanos. O papa esclareceu que
é certo que as máquinas têm uma capacidade imensamente maior que os seres humanos de memorizar os dados e relacioná-los entre si, mas compete ao homem, e só a ele, decodificar o seu sentido. Não se trata, pois, de exigir das máquinas que pareçam humanas; mas de despertar o homem da hipnose em que cai devido ao seu delírio de onipotência, crendo-se sujeito totalmente autônomo e autorreferencial, separado de toda a ligação social e esquecido da sua condição de criatura (DMCS, 2024).
A inteligência artificial em si, portanto, não é boa nem má; tudo depende de como é usada.
Considerações finais
O papa Francisco, primeiro pontífice latino-americano, marcou profundamente a Igreja Católica e o mundo com um pontificado pautado na prática do Evangelho e expresso concretamente na simplicidade, na defesa dos pobres, no apelo à fraternidade universal (cf. Carta Encíclica Fratelli Tutti) e na insistência do cuidado da Casa Comum (cf. Carta Encíclica Laudato Si’). Seu legado, na verdade, é multifacetado, abrangendo os âmbitos espiritual, social e político. No que se refere à comunicação, como destacamos, sua mensagem foi clara: a comunicação autêntica nasce da abertura a Deus e ao outro e cria proximidade, assim como a capacidade de ver além das redes digitais, que, em certa medida, chegam a hipnotizar a sociedade.
Também podemos recordar as vezes em que o papa Francisco valorizou os profissionais na área da comunicação, especialmente os jornalistas, chegando a afirmar que jornalista é mais do que uma profissão: é vocação e missão. Sustentou que a liberdade de imprensa e de manifestação do pensamento deve ser defendida e salvaguardada, com o direito fundamental à informação. Denunciou a realidade de jornalistas mortos ou presos “simplesmente por terem sido fiéis à profissão de jornalista, fotógrafo, operador de vídeo, por terem desejado ir ver com os próprios olhos e por terem procurado narrar o que viram” (Francisco, 2025).
A complexa realidade das redes digitais pode nos preocupar como Igreja, mas não pode nos acuar. Sobre isso, foi publicado, em 2023, o documento Rumo à Presença Plena: uma reflexão pastoral sobre a participação nas redes sociais, pelo Dicastério para a Comunicação. O objetivo desse estudo, bastante atual, é “promover uma reflexão comum sobre nossas experiências digitais, incentivando os indivíduos e as comunidades a adotar uma abordagem criativa e construtiva que possa fomentar uma cultura da proximidade” (Dicastério para a Comunicação, n. 5, 2023).
Enfim, o legado do papa Francisco para a comunicação, bastante sintetizado neste artigo, motiva-nos a sonhar com uma comunicação cada vez mais humana e a trabalhar por ela, tal como revelado na sua última mensagem para o Dia Mundial das Comunicações Sociais. Escreveu Francisco:
sonho com uma comunicação que saiba fazer de nós companheiros de viagem de tantos irmãos e irmãs nossos para, em tempos tão conturbados, reacender neles a esperança. Uma comunicação que seja capaz de falar ao coração, de suscitar não reações impetuosas de fechamento e raiva, mas atitudes de abertura e amizade; capaz de apostar na beleza e na esperança mesmo nas situações aparentemente mais desesperadas; de gerar empenho, empatia, interesse pelos outros. Uma comunicação que nos ajude a reconhecer a dignidade de cada ser humano e a cuidar juntos da nossa Casa Comum (DMCS, 2025).
Que possamos, como Igreja, prosseguir no sonho de Francisco e trabalhar intensamente por um mundo melhor, na perspectiva de uma comunicação que crie pontes e gere a cultura do encontro. Uma comunicação que tenha na sua base o amor, “uma vez que o amor consegue sempre encontrar o caminho da proximidade e suscitar corações capazes de se comover, rostos capazes de não se abater, mãos prontas a construir” (DMCS, 2017). Essa é a condição para vivermos num mundo com mais justiça, paz e vida para todos.
Referências bibliográficas
DICASTÉRIO PARA A COMUNICAÇÃO. Rumo à presença plena: uma reflexão pastoral sobre a participação nas redes sociais, 28 maio 2023. Disponível em: https://www.vatican.va/roman_curia/dpc/documents/20230528_dpc-verso-piena-presenza_pt.html. Acesso em: 6 jun. 2025.
FRANCISCO, Papa. Christus Vivit: Exortação Apostólica Pós-sinodal aos jovens e a todo o povo de Deus, 25 maio 2019. Disponível em: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/apost_exhortations/documents/papa-francesco_esortazione-ap_20190325_christus-vivit.html. Acesso em: 6 jun. 2025.
FRANCISCO, Papa. Dilexit Nos: Carta Encíclica sobre o amor humano e divino do Coração de Jesus, 24 out. 2024a. Disponível em: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/20241024-enciclica-dilexit-nos.html. Acesso em: 6 jun. 2025.
FRANCISCO, Papa. Discurso aos comunicadores participantes do Jubileu do Mundo das Comunicações, 25 jan. 2025. Disponível em: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/events/event.dir.html/content/vaticanevents/pt/2025/1/25/giubileo-comunicazione.html. Acesso em: 6 jun. 2025.
FRANCISCO, Papa. Discurso na sessão do G7 sobre a inteligência artificial. Borgo Egnazia (Itália), 14 jun. 2024b. Disponível em: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2024/june/documents/20240614-g7-intelligenza-artificiale.html. Acesso em: 6 jun. 2025.
FRANCISCO, Papa. Mensagem para o 57º Dia Mundial da Paz: Inteligência artificial e paz. 1º jan. 2024c. Disponível em: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/messages/peace/documents/20231208-messaggio-57giornatamondiale-pace2024.html. Acesso em: 6 jun. 2025.
FRANCISCO, Papa. Mensagens para o Dia Mundial das Comunicações Sociais (DMCS). Disponível em: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/messages/communications.html. Acesso em: 6 jun. 2025.
Dom Valdir José de Castro, ssp*
*é licenciado em Teologia, com especialização em Espiritualidade, pela Universidade Gregoriana de Roma; graduado em Jornalismo pela Universidade de Caxias do Sul (RS); mestre em Comunicação pela Faculdade Cásper Líbero (SP); doutor em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Foi formador, diretor da Faculdade Paulus de Comunicação (SP), provincial e superior geral da Congregação dos Paulinos. Atualmente é bispo diocesano de Campo Limpo-SP, presidente da Comissão para a Comunicação Social da CNBB e membro do Dicastério para a Comunicação (Vaticano). E-mail: [email protected]