Roteiros homiléticos

Publicado em setembro-outubro de 2023 - ano 64 - número 353 - pp.: 41-44

17 de setembro – 24° DOMINGO DO TEMPO COMUM

Por Junior Vasconcelos do Amaral*

O perdão é fruto da compaixão

I. INTRODUÇÃO GERAL
  Nesse domingo, vamos descobrir que perdoar é nos libertar e permitir que o outro seja livre também. Não podemos reter para nós a misericórdia de que o outro necessita, pois também nós dela necessitamos. Na primeira leitura, o sábio Eclesiástico – também conhecido como Jesus ben Sirac (o filho de Sirac) – desafia-nos ao bom senso de perdoar, libertando-nos da ira, do furor e da vingança. Esses elementos formam o esquema perverso de quem não tolera nem o limite do outro nem seu próprio pecado, pois acredita ser impecável. O Evangelho de Mateus relembra que, na comunidade cristã, o ato de perdoar deve ser ilimitado, o que metaforicamente se exprime na matemática perfeita dos setenta vezes sete, multiplicação da ilimitada compaixão divina. A segunda leitura, de Romanos, fortalece-nos no caminho da fé, pois nesse caminho somos justificados por Cristo, morto e ressuscitado. Cristo morreu para nos salvar e, ao ressuscitar dos mortos, garantiu-nos a vida futura, resgatando-nos do pecado e libertando-nos para a vida nova, fecundada em sua ressurreição.
II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
 
1. I leitura (Eclo 27,33-28,9)
  Sirácida, o autor do livro do Eclesiástico, é um sábio do povo de Israel que, no século II a.C., reuniu uma série de reflexões acerca da práxis de vida do sábio – hackam, em hebraico. A passagem deste domingo está situada na segunda parte do livro, que corresponde à voz da sabedoria personificada (em forma de pessoa humana). A sabedoria – hockmah, em hebraico – corresponde ao próprio modo de Deus agir: ele é o Senhor e autor da Sabedoria (Pr 8,22). Essa sabedoria deve inspirar e conduzir a vida dos homens e mulheres sobre a face da terra. Para a literatura e o movimento sapiencial, ela consiste na oferta de bom senso na convivência diuturna, naquilo de bom e generoso que ofertamos às pessoas. Vivendo entre os egípcios no século II a.C., Sirácida fala a um público que vive distante da Torá hebraica, mas tem contato com a Bíblia grega – chamada de Septuaginta (LXX) – por estar em um contexto de diáspora (iniciada no século VI a.C., com o exílio da Babilônia, em 587 a.C.).Esse livro é também conhecido como deuterocanônico, pois foi escrito em língua grega, fora da Palestina, depois da reforma literário-escriturística promovida por Esdras e Neemias (aproximadamente 444 a.C.). Na passagem, o autor trata de três temas fundamentais: a ira, o furor e a vingança. Tais disposições minam a relação entre as pessoas, sobretudo se interferirem na prática do perdão, que corresponde à atitude religiosa iluminada pela misericórdia desejada por Deus ao ser humano. Em Eclo 27,33-28,1, o autor sublinha: “ira e furor são duas coisas execráveis: até o pecador procura dominá-las. Quem quer vingar-se encontrará a vingança do Senhor”. Os desatinos da ira, do furor e da vingança não constroem a comunidade messiânica almejada pelo autor e sábio. Construir uma sociedade pacífica, humanizada, que corresponda ao projeto sapiencial de Deus é corroborar o ideal querido por ele: seu Reino de amor.  
2. II leitura (Rm 14,7-9)
  Pela fé em Cristo, somos todos justificados, ou seja, salvos (Rm 5,1). Para o apóstolo Paulo, o ato libertador de Cristo, doando-se a Deus por nós na cruz, em sua morte e ressurreição (Rm 8,2), capacitou-nos para vivermos para o Senhor (Rm 6,10-11; Gl 2,19). Isso implica o serviço a Deus em todas as coisas, pela fé. Servimos a Deus e aos irmãos e irmãs: essa é a fundamentação para que sejamos felizes. Por isso, Paulo afirma que ninguém vive ou morre para si mesmo (v. 7). Há, na vida e na morte de todo cristão, um significado concreto, uma razão, uma finalidade: Deus e o próximo. A vida do cristão está fundamentada na vida do próprio Cristo, que não veio para ser servido, mas para servir e dar sua vida em resgate de muitos (Mc 10,45). Cristo, por sua vez, é o Kyrios. É a ele que nossa vida está relacionada (1Cor 6,20). Assim, para o cristão, apenas Deus é absoluto. Todos nós, de uma maneira ou de outra, menos ou mais, somos sempre relativos a Deus, estamos em concreta relação com ele: seja pelo fato de sermos criados à sua semelhança, seja por sermos salvos pelo Filho, seja por estarmos sempre em conexão santificante com o Espírito do Ressuscitado, o Santo Espírito.
3. Evangelho (Mt 18,21-35)
  O clássico texto deste domingo, sobre a necessidade de perdoarmos aos nossos irmãos e irmãs, pode ser dividido em duas seções: a primeira parte, v. 21-22, é constituída pela questão apresentada por Pedro a Jesus: “Senhor, quantas vezes devo perdoar, se meu irmão pecar contra mim? Até sete vezes?”, e a resposta de Jesus: “Digo-te, não até sete vezes, mas até setenta vezes sete”; a segunda parte, v. 23-35, consiste em uma parábola sobre o Reino dos Céus, que fala de um ajuste de contas entre um rei e seus servos. Essa parábola traz uma conclusão exemplar: “assim vos tratará meu Pai celeste, se cada um não perdoar de coração ao seu irmão” (v. 35). Importante é salientar que o relato constitui a parte final do capítulo 18 do Evangelho de Mateus. Trata-se de importante relato dentro do corpus mateano, pois corresponde ao sermão da comunidade, da Igreja – chamada de Ekklesia. Como sabemos, esse Evangelho é formado por cinco discursos: capítulos 5-7, sermão da montanha; capítulo 11, sermão missionário; capítulo 13, sermão das parábolas; capítulo 18, sermão da comunidade; e, por fim, capítulos 24-25, o chamado sermão escatológico. Mateus faz de sua narrativa uma nova Torá, um novo Pentateuco, composto de cinco partes discursivas, nas quais ouvimos Jesus falar como novo Moisés, trilhando os passos do Moisés veterotestamentário. Por isso, Mateus projeta, em seu Evangelho, Jesus indo para o Egito (Mt 2,13) e, tempos depois, tendo de voltar de lá (Mt 2,15). Assim, é do ponto de vista teológico de Jesus como novo Moisés que buscamos compreender a narrativa de Mt 28,21-35. Na primeira parte, acerca da matemática do perdão, é possível recorrer a Gn 4,24b. Nessa passagem, vê-se um descendente de Adão, Lamec – o primeiro homem bígamo (casado com Ada e Zilá) –, dizendo que seria vingado setenta vezes sete, diferentemente de Caim, que seria vingado sete vezes (Gn 4,15). Tais números não significam literalmente um excesso, mas a totalidade. Desse modo, ao dizer a Pedro que ele deve perdoar setenta vezes sete (em chave contrária ao propósito de vingança contido na narrativa do Gênesis), Jesus afirma que ele deve perdoar sempre, em totalidade e plenitude. O perdão, nesse caso, é fruto da compaixão, de sentir a dor e a falta da outra pessoa. A parábola que marca a segunda parte do Evangelho deste domingo, segundo Benedict Viviano, 1 desdobra-se em três atos: o primeiro é entre o rei e seus servos; o segundo, entre os próprios servos reais; o terceiro retorna ao rei e seu servo implacável. A parábola ensina, de forma sumária, a necessidade de imitar a misericórdia divina. Ela mostra duas cenas, uma ética e outra antiética, formando uma cena antitética, que não deve ser seguida como exemplar por ninguém. A primeira destaca, no v. 24, que o rei perdoa a um devedor dez mil talentos, literalmente “uma miríade de talentos” – uma quantidade exorbitante. O senhor teve compaixão – em grego, splachnisteis (como o revirar das entranhas de uma mulher que está para dar à luz um filho) –, e o que devia foi perdoado porque se prostrou e pediu paciência para que pudesse pagar (v. 26). Porém, ao sair dali, aquele que foi perdoado incomensuravelmente não se mostrou capaz de perdoar a alguém que lhe devia muito pouco, cem denários (v. 28). Agiu de forma contrária e implacável, desprovida de compaixão, incapaz de sentir pelo outro o que havia recebido de alguém a quem devia muitas vezes mais. A conclusão, nos v. 32-34, é, de fato, terrível: o empregado implacável é chamado de servo malvado, por ter sido incapaz de sentir compaixão. Como castigo, é entregue aos carrascos, para que pague toda a dívida. O desfecho da parábola é exemplar e enfático: “assim vos tratará meu Pai celeste, se cada um não perdoar de coração a seu irmão”. Esse final admoesta a todos nós a praticar a compaixão, a viver embebidos do amor de Deus.
III. PISTAS PARA REFLEXÃO
  Há uma conexão intrínseca entre as três leituras deste domingo: o perdão, palavra afim ao vocábulo latino perdonum, que pode ser traduzido por “dom perfeito”, “dom pleno”, correspondendo a tudo que é doado sem reservas. Afastar-se da ira, do furor e da vingança é fundamental, segundo o Eclesiástico. É também importante recordar que Cristo nos justificou para uma vida nova, que nos foi dada pelo batismo. Assim, torna-se oportuno reafirmar que o perdão é um gesto essencial para o cristão. Somos cristãos à medida que nos identificamos com o modo de ser de Jesus, que neste domingo nos ensina

Junior Vasconcelos do Amaral*

*Pe. Junior Vasconcelos do Amaral é presbítero da arquidiocese de Belo Horizonte-MG. Doutor em Teologia
Bíblica pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje – Belo Horizonte), realizou parte de seu doutorado
na modalidade “sanduíche”, estudando Narratologia Bíblica na Université Catholique de Louvain (Bélgica). É
professor de Antigo e Novo Testamentos na PUC-Minas e publicou vários artigos sobre o Evangelho de Marcos
e a paixão de Jesus em perspectiva narratológica. E-mail: [email protected]