Roteiros homiléticos

Publicado em março-abril de 2024 - ano 65 - número 356 - pp.: 42-44

28 de março – Ceia do Senhor

Por Maicon André Malacarne*

O amor traduzido em lava-pés!

I. INTRODUÇÃO GERAL

A celebração da Ceia do Senhor, porta de entrada do Tríduo Pascal, recorda que, para sentar-se à mesa com Jesus, é preciso, antes de tudo, aprender a lavar os pés uns dos outros. Esse gesto, narrado apenas no Evangelho de João, é algo que inverte toda a lógica do mundo – do poder, da grandeza, da ostentação – para pôr no centro o serviço, a humildade e o amor, traduzidos no verbo de Deus: abaixar-se!

Jesus é Deus que se abaixou! É o mesmo Deus do êxodo: “Eu vi o sofrimento do meu povo, eu desci para libertá-lo!” (Ex 3,7). O Deus libertador que “desce” é o Deus de Jesus que “se abaixa” para lavar os pés. O Deus de Jesus olha o pecador de baixo, não se coloca acima, não se enche de glória, porque a glória é a cruz, a glória é entregar a vida, a glória é amar sem medidas!

Procura-se amigos e lavadores de pés é o título de um livro do cardeal O’Malley (2019). Ele sugere que a humanidade só será feliz quando retornar a esse grande gesto de amizade e fraternidade – lembrando que a amizade social é tema da Campanha da Fraternidade deste ano.

Na Ceia do Senhor estão de mãos dadas as memórias da instituição da Eucaristia e do sacerdócio. Trata-se de guardar, mediante um discipulado disposto a “lavar os pés” até o fim, a capacidade e o discernimento de tornar tudo dom, a vida que se realiza na entrega, o ministério que não tem sentido fora do contínuo “abaixar-se”.

II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS

1. I leitura (Ex 12,1-8.11-14)

Estamos no coração da Páscoa dos judeus. Desde a origem, a Páscoa sinaliza uma passagem. Depois da celebração primaveril e dos Ázimos, o texto guarda a memória da Páscoa da libertação do povo do Egito. Trata-se de um tempo novo: “este mês será para vós o começo dos meses, será o primeiro mês do ano” (v. 2). A libertação é vida nova, esperança nova, futuro novo! A passagem do renascimento e da fecundidade da natureza, dos campos e dos animais abre lugar para o renascimento e a fecundidade da vida de um povo que outrora era escravo do Egito e, agora, celebra sua libertação.

O autor do texto, provavelmente escrito durante o exílio da Babilônia, registrou que uma das marcas da Páscoa da libertação foi a partilha: “convidará também o vizinho mais próximo” (v. 4) – ou seja, ninguém deve ficar de fora! O sangue derramado era sinal de que o povo continuava vivo, não obstante a força dos inimigos. “Este dia será para vós uma festa memorável em honra do Senhor” (v. 14) é a conclusão do texto, que evoca a passagem do sofrimento e da opressão para o caminho da liberdade, sempre com a presença e a força de Deus.

2. II leitura (1Cor 11,23-26)

Se o compromisso da Páscoa dos judeus era celebrar sem “deixar ninguém de fora”, a primeira carta de Paulo aos Coríntios, ao tratar da Eucaristia, põe no centro o mesmo critério: a partilha! De fato, alguns versículos anteriores ao texto deste dia trazem a chamada de atenção de Paulo à comunidade: “porque cada um se apressa em comer a própria ceia. E, enquanto um passa fome, o outro fica embriagado” (v. 21). Na grande cidade de Corinto, de fato, havia muita desigualdade, que se evidenciava nas celebrações da comunidade nascente.

A noite da saída do Egito para a libertação deu lugar a outra: “na noite em que foi entregue, o Senhor Jesus tomou o pão. [...] Depois da ceia, tomou também o cálice” (v. 23.25). Pão e vinho, corpo e sangue, são a memória da vida de Jesus Cristo doada no amor. Os gestos e palavras de Jesus – tomar, agradecer, partilhar – são o itinerário que a comunidade não pode esquecer para celebrar a instituição da Eucaristia e todas as outras liturgias.

3. Evangelho (Jo 13,1-15)

O Evangelho de João não guarda a memória da Eucaristia como os Evangelhos sinóticos (Mt 26,26-29; Mc 14,22-25; Lc 22,19-20), que são muito próximos ao texto de Paulo na segunda leitura. O texto joanino, no entanto, é aberto com o gesto do lava-pés, sinal de que Jesus sabia “que tinha chegado a sua hora”. A hora é a plenitude, a Páscoa da cruz e da ressurreição: “tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim” (v. 1). Jesus viveu o amor com todas as suas consequências, mesmo no gesto radical e proibido de lavar os pés. De fato, os v. 4 e 5 apresentam vários verbos que indicam a iniciativa de Jesus: “levantou-se da mesa, tirou o manto, pegou uma toalha e amarrou-a na cintura. Derramou água na bacia e começou a lavar os pés dos discípulos, enxugando-os com a tolha com que estava cingido”. Jesus estava comunicando que a lógica do Evangelho deveria ser diferente da lógica do mundo e, para isso, não bastavam as palavras, era necessária uma vida implicada no amor.

Quando chegou a vez de Jesus lavar os pés de Pedro, este protestou: “Senhor, tu me lavas os pés?” Custava a Pedro entender a “nova lei” do amor! O diálogo entre os dois é um mapa de que, para seguir Jesus, é preciso estar sempre aberto ao discernimento e à conversão. De fato, Jesus também disse: “nem todos estão limpos” (v. 11), uma advertência direta a Judas, que iria traí-lo. A conversão de quem segue Jesus Cristo deve ser sempre por dentro do amor, por dentro do lava-pés: “se eu, o Senhor e Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns dos outros” (v. 14).

O papa Francisco, na homilia da celebração da Ceia do Senhor de 2022, recordou que o serviço e o amor não podem ser substituídos pela “exploração do outro”, ou seja, por qualquer atitude que, ao invés de “erguer”, instrumentalize as pessoas. Referiu-se especialmente aos presbíteros:

E agora, procurarei fazer o mesmo gesto de Jesus: lavar-vos os pés. Faço-o de coração porque nós, sacerdotes, deveríamos ser os primeiros a servir os outros, não a explorar os outros. O clericalismo por vezes leva-nos por este caminho. Mas temos de servir. Isso é um sinal, também um sinal de amor por estes irmãos e irmãs e por todos vós aqui; um sinal que significa: “Eu não julgo ninguém. Procuro servir a todos” (homilia de 14/4/2022 – disponível em www.vatican.va).

III. PISTAS PARA REFLEXÃO

“Dei-vos o exemplo, para que façais a mesma coisa que eu fiz” (Jo 13,15) são as palavras que concluem o Evangelho desta liturgia. A entrada do Tríduo Pascal nos põe diante do profundo chamado a “fazer a mesma coisa”. Trata-se de memória que oferece o conteúdo para seguir Jesus Cristo. Imitar é diferente de seguir! Imitar pode ser pequena parte do seguimento, mas seguir é compreender, discernir, amadurecer, atualizar e comunicar o Evangelho em cada tempo. Não é que o Evangelho muda, mas nós mudamos, o mundo muda, as ferramentas para entender mudam, e tudo isso é sinal de que a obra criadora de Deus continua! A encíclica Laudato Si’, citando o grande pensador Teilhard de Chardin, afirma: “A meta do caminho do universo situa-se na plenitude de Deus, que já foi alcançada por Cristo ressuscitado, fulcro da maturação universal” (n. 83).

Jesus revelou que a plenitude se encontra no mandamento do amor, no serviço aos irmãos e irmãs, na experiência da Eucaristia. Adentrar o Tríduo Pascal, a grande celebração da paixão, morte e ressurreição de Jesus, é assumir esse compromisso de configurar a vida na direção da meta. A celebração desta noite, a escuta das narrativas da Páscoa dos judeus, da Eucaristia, do lava-pés, são uma gramática sem a qual não conseguimos compreender bem o amor doado na cruz e a vida nova ressuscitada por Deus. É importante, por isso, tirarmos tempo para ler e reler os textos, meditá-los, pôr-nos no lugar dos personagens, fazer as perguntas, silenciar, deixar que a Palavra nos transforme a fim de que também nós consigamos “fazer a mesma coisa”, sempre de um jeito novo.

Maicon André Malacarne*

*é presbítero da diocese de Erexim-RS. Possui mestrado em Teologia Moral pela Pontifícia Academia Alfonsiana (Roma), onde atualmente é doutorando na mesma área. É especialista em Juventude no Mundo Contemporâneo pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje – Belo Horizonte-MG), formado em Filosofia pelo Instituto de Filosofia Berthier (Ifibe – Passo Fundo-RS) e em Teologia pela Itepa Faculdades (Passo Fundo-RS). É aluno de doutorado em Teologia Moral da Pontifícia Academia Alfonsiana (Roma). E-mail: [email protected]