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Publicado em número 197 - (pp. 2-7)

Reino de Deus: utopia profética de Jesus na vivência Cristã hoje

Por Pe. José Comblin

O tema do Reino de Deus é central na teologia latino-americana. Foi tratado praticamente por todos os autores, sob todos os pontos de vista da teologia. I. Ellacuría, Jon Sobrino, J. L. Segundo, J. B. Libânio, I. Neutzling e outros[1] explicitaram-lhe o alcance dentro da perspectiva de uma teologia latino-americana de libertação. Não é preciso repetir tudo o que já foi muito bem explicado. Porém, o que hoje preocupa, é a relevância dessa doutrina dentro da situação atual.

Na década de 90 a América Latina começou a entrar em nova fase histórica, que vem mudando profundamente as perspectivas a partir das quais os povos enxergam a sua realidade. Dois acontecimentos afetam negativamente, e com intensidade, a utopia e o profetismo do cristianismo. Esses acontecimentos tendem a mostrar que o tema do Reino de Deus seria radicalmente irrelevante no contexto atual.

 

1. Acontecimentos negativos para a utopia e o profetismo

 

1.1. Uma nova geração, sem passado e sem futuro

Está surgindo, nos anos 90, uma nova geração, sem continuidade com as gerações anteriores. Os filhos não se sentem interessados pela lutas, pelas esperanças e pelos perigos vividos por seus pais. Não se interessam pela religião dos pais e não sentem nenhuma obrigação para com ela. Ignoram a cultura do passado. Libertação é uma palavra vazia de sentido para eles, a não ser no sentido da libertação individual de todas as formas de obrigação ou de limitação — exatamente como nos Estados Unidos. Os filhos dos que criaram as comunidades eclesiais de base não querem saber delas. Trata-se de uma geração que não tem nenhum interesse no passado.

Ela é, da mesma maneira, uma geração sem futuro: sem projeto, sem previsão, sem segurança, sem obrigações para com o futuro ou para com a sociedade, sem vontade de sacrificar nada do presente para construir um futuro melhor, no qual não acredita. Essa geração está descrente da política e da transformação social. Há algumas décadas 100.000 estudantes faziam tremer os militares. Hoje milhões de estudantes deixam transparecer a sensação do maior sossego.

Nas gerações anteriores os jovens pensavam no matrimônio, na fundação de uma família e sacrificavam o presente tendo em vista o futuro da família. Hoje em dia o casamento está em decadência, assumindo cada vez mais a função de solução provisória. A fundação de uma família está longe de representar o significado do casamento.

As análises da chamada “pós-modernidade” expressam a realidade vivida por um contingente cada vez maior da população. Não se trata de puro modismo intelectual, e sim da percepção de uma nova realidade. Está surgindo um novo modo de viver a vida humana. Este novo modo de viver penetra em todas as culturas, sempre começando pela parte da população integrada na evolução científica, tecnológica e social nascida nos Estados Unidos nos anos 70. A “pós-modernidade” expressa tanto o modo de ser e de viver da nova geração no Japão, na Coreia, na China, na Índia, na Indonésia, quanto na Europa, na América do Norte ou na América Latina.

A nova geração anda pelo mundo com um olhar descrente e irônico, semelhante ao olhar dos apresentadores de TV, ou o dos jornalistas das revistas que propõem os múltiplos caminhos do bem-estar e da felicidade. Tudo vale, tudo interessa, mas nada promete. Não se costuma fazer diferença entre verdade e erro, entre bem e mal. Tudo depende do ponto de vista, do tempo e do humor da pessoa. É a maneira concreta de se viver a morte de Deus e, com ela, a morte de toda a metafísica e de todo princípio absoluto. Cada indivíduo se coloca num ponto de vista superior a tudo o que acontece no mundo e faz sua apreciação de acordo com a sensação do momento, sempre com a reserva de que nada pode realmente ser levado a sério.

Fala-se em ressurgimento da religião. No entanto, se se quer usar a palavra religião, é preciso levar em conta o fato de que se trata de uma religião sem Deus. O que se multiplica são as terapias e todas as doutrinas semianimistas ou semignósticas, que fornecem às terapias uma suposta base racional. A meta não é nenhuma utopia. A meta é sentir-se bem, sentir-se feliz, em paz e união com o universo, mergulhando num cosmo de alegria e de felicidade, comunicando-se com alegria com todos os entes harmoniosamente conjugados.

Daí a atração pelas drogas — fenômeno próprio dos países mais industrializados nos anos 70 —, que estão penetrando com muita força em toda a América Latina e nos demais países em via de modernização. Não se trata somente das drogas no sentido próprio da palavra, mas de todos os tipos de excitantes. A cultura transforma tudo em excitante. O sexo está cada vez mais desligado do amor, para se tornar uma droga. É utilizado como outro excitante qualquer que se usa quando se tem vontade. Tudo acontece como se a vida e o mundo, no seu movimento normal, não tivessem sabor. As drogas seriam necessárias para dar sabor à vida — que sem elas não teria valor.

As novas gerações não são incapazes de indignação moral. Pelo contrário, a mídia fornece uma dose diária de escândalos destinada a alimentar o sentido ético. Mas sempre com a condição de que se trate de faltas dos outros e de que a indignação não leve a nenhuma obrigação de compromisso. Os escândalos são noticiados para despertar os sentimentos de indignação, mas não passam disso. Não há nenhum engajamento na ação. Aliás, poucas vezes a indignação dura mais do que uma semana. Logo em seguida surge novo escândalo e a sensibilidade não sustenta todos os escândalos que a mídia pode levantar. A função desta é a de dosar.

É claro que nem todos já entraram nesse movimento. Esse modo de viver entrou primeiro nas elites da sociedade, passando depois para a classe média. Tornou-se o modo dominante no mundo universitário ou colegial, começando pelas cidades mais desenvolvidas. Porém, pouco a pouco, esse mesmo modo de sentir vai penetrando também no mundo popular e em todo o setor informal, que está em permanente contato — ainda que superficial — com as pessoas de classe média.

Naturalmente, o passado faz resistência a essa evolução. As gerações anteriores resistem. As grandes instituições — Estado, Igreja, escola, universidade e organizações sociais — fazem resistências. No entanto, a nova geração enxerga essas instituições como órgãos de repressão. Sentem as instituições como forças de coerção e constrangimento. Entendem a liberdade como emancipação de todas as instituições — e a primeira delas é a família.

Esse contexto explica, em grande parte, porque somente os movimentos carismáticos ainda são capazes de oferecer um cristianismo atraente aos jovens, a tal ponto que, no mundo inteiro, somente os jovens atingidos por alguma forma de movimento carismático ainda se identificam com uma Igreja (católica ou protestante).

 

1.2. A globalização

A globalização é a fase atual do desenvolvimento científico e tecnológico que vai gerando nova economia e nova sociedade. Não é aqui o lugar para explicitar em pormenores o que é a globalização. Existe abundante literatura a esse respeito. Os jornais e as revistas estão repletos de comentários, seja para exaltar, seja para criticar a evolução trazida pelo processo de globalização.

A globalização tem repercussões na vida de quase todos os seres humanos. Porém, somente uma minoria (20% nos países mais modernizados) participa de maneira ativa, está bem integrada e pode aproveitar as vantagens oferecidas por esse processo. Uma minoria sente-se promovida, valorizada e projetada para além de si mesma pelo processo contemporâneo de globalização, através das ciências, das novas tecnologias, da nova economia, da mídia, das invenções e criações de novos modelos… A grande maioria, todavia, fica alheia. Recebe passivamente os impactos da evolução e vê que a sua situação material, cultural, psicológica, política e social fica cada vez pior, sem poder vislumbrar melhorias no futuro. A maioria está condenada a entrar no processo acima descrito.

A globalização é um processo por meio do qual uma minoria de pessoas, a cada ano que passa, vai multiplicando mais suas vantagens e oportunidades em relação às outras pessoas. Dessa maneira a distância entre a minoria promovida e a maioria marginalizada cresce sem parar.

A globalização não se apresenta como utopia nem como projeto, mas como processo inevitável, movimento autogerado. Não se pode frear nem criticar. Ela avança, sejam quais forem as reações individuais. Apresenta-se como a nova etapa da evolução da humanidade, a fase de amadurecimento, tão inevitável e positiva como foram a revolução agrária do neolítico ou as revoluções industriais dos últimos séculos.

Dentro da globalização não há mais pobres. A pobreza desaparece. Há somente capazes e incapazes. Há indivíduos ou coletividades que são incapazes de entrar no processo, e outros que são capazes. Os incapazes ficam de fora, condenados à marginalização crescente. Não há nada que possa impedir isso. Os capazes são impulsionados pelas forças que levam à globalização, e serão cada vez mais promovidos.

Dentro da sociedade globalizada, os empregos exigem cada vez mais preparação. Os “incapazes” terão cada vez menos oportunidades: ficarão à margem da evolução da humanidade, assistindo de longe “para ver o trem passar” — trem no qual nunca estarão. Haverá cada vez mais “não empregáveis”.

De acordo com a doutrina da globalização, não adianta querer ajudar os “incapazes”. Um real dado a um incapaz é um real perdido. É preciso dar aos que já têm, pois somente estes podem fazer um bom proveito disso. Os reais dados aos ricos rendem. Os reais dados aos incapazes são perdidos. Por sinal, considera-se que os marginalizados não estão interessados em se tornar “capazes”, pois tal mudança exigiria muito cansaço, muita perseverança e uma reserva de energia de que não dispõem.

Daí o surgimento de elites econômico-sociais que carecem totalmente de solidariedade, considerando-a estupidez. Se há indivíduos “incapazes”, essas elites estimam não ter nenhuma responsabilidade nisso, nada podendo fazer. Qualquer atenção dada aos incapazes limitaria as suas próprias atividades e a própria expansão[2].

Lembremos que o contexto em que nasceu a teologia latino-americana era o seguinte: um povo cristão envolvido numa luta de libertação. Esse povo cristão envolvido na libertação está ficando cada vez mais reduzido, tendendo a prevalecer os dois movimentos mencionados. Por um lado 30 milhões de brasileiros entrosados positivamente na globalização, armados pela informática, capacitados para criar e inventar os progressos tecnológicos de amanhã. E, por outro lado, 120 milhões de outros brasileiros cada vez mais distantes das novas tecnologias, e incapazes de usar os meios modernos de ação. Nesse novo contexto, o que acontece com a mensagem de Jesus?

 

2. A mensagem de Jesus

Na língua bíblica, reinar é libertar os oprimidos. Reinar não é um “estado”, uma “situação”, mas é um ato que consiste em mudar as relações (que estão sendo injustas entre seres humanos). Reino de Deus significa que Deus liberta os oprimidos, os pobres, os rejeitados… Voltando a anunciar o Reino de Deus — o que já tinham feito os profetas — Jesus suscita a fé dos pobres e oprimidos, desperta a esperança do povo que já a tinha perdido, cria confiança no futuro e a estima de si próprio.

Por outro lado, Jesus anuncia a presença do Reino de Deus agora. Agora mesmo Deus está agindo, realizando a sua libertação. Jesus mostra os sinais visíveis dessa ação de Deus, e chama colaboradores para — como ele — darem os sinais do Reino: cura dos doentes, expulsão dos demônios, atendimento aos pobres e acolhida oferecida a todos os rejeitados. O convite feito aos discípulos é para que sejam instrumentos do advento do Reino de Deus. Muitos aceitam. Jesus convenceu-os de que é preciso perder a vida para ganhá-la e de que é preciso sacrificar tudo para comprar a pérola preciosa. O advento do Reino de Deus inicia vida nova, novo modo de viver e a transformação do mundo.

Jesus anuncia um mundo novo como os profetas. Todavia, diferentemente dos profetas que o ante­cederam, anuncia a presença atual do Reino de Deus. Seu olhar concentra-se no presente antes que no futuro. Projeta uma utopia. No entanto, essa utopia é diferente da apresentada pela época moderna. “Utopia” quer dizer sem lugar definido. Porém, o anúncio de Jesus tem lugar bem definido: é aqui e agora. O Reino não se situa num lugar indefinido da imaginação. O Reino de Deus está aqui agora. Está surgindo, está se realizando. Não está distante da vida ordinária dos contemporâneos. Está dentro desta vida ordinária.

A utopia de Jesus não é mera imaginação, nem perspectiva, nem projeto. É uma convocação para agir já, agora mesmo.

Como utopia, a mensagem de Jesus envolve um anúncio para a humanidade inteira. Jesus está dentro da perspectiva de Israel, povo que se atribui uma missão universal. Porém, o advento do mundo novo realiza-se mediante opções individuais. O Reino de Deus está no agir de seres humanos individuais. Supõe a conversão das pessoas. Cada conversão é um acontecimento significativo. Não há transformação global da sociedade. A transformação consta de milhões de transformações individuais, ainda que articuladas entre elas. Por isso, a utopia de Jesus não se perde no idealismo. Está presente na conversão de inúmeros discípulos.

A utopia de Jesus é bastante aberta e permite diversidade de leituras. O próprio Novo Testamento oferece um leque bastante amplo de interpretações. Essas interpretações são bastante diferentes entre si, e todas podem invocar títulos de legitimidade.

 

3. Figuras históricas

A intermediação da mensagem de Jesus permitiu — e exigiu — que aparecessem várias figuras históricas. Por si só o Novo Testamento não basta para construir uma vida humana — seja individual, seja comunitária. Os seres humanos precisam de figuras mais concretas, mais determinadas para agir efetivamente. O Novo Testamento não nos diz o que devemos fazer hoje em dia, como não disse o que era para ser feito ao longo da história. Daí as diferentes atuações das figuras históricas aparecidas na cristandade. Algumas tiveram mais expansão e mais dinamismo, orientando os cristãos durante séculos em áreas extensas. Outras tiveram existência mais breve; abrangendo área mais limitada. Cada uma nasceu a partir de intuições de personalidades mais fortes. Todas estavam ligadas ao mesmo contexto histórico. Todas foram criações humanas, procurando traduzir a utopia do Reino de Deus no seu tempo.

As figuras históricas mais importantes no decorrer dos dois primeiros milênios da era cristã foram traduzidas nestes modelos: 1) o modelo apocalíptico da espera da volta iminente de Jesus nas comunidades primitivas; 2) o modelo bizantino ou ortodoxo em geral, nascido da experiência da vida monástica, orientada para a divinização do ser humano desde já na terra a partir da caminhada monástica, paradigma para todo o povo cristão; 3) o modelo da cristandade ocidental medieval baseado na dualidade entre o poder imperial e o poder do clero; 4) o modelo calvinista nascido da reforma e que vai produzir os Estados Unidos da América; 5) o modelo barroco resultante da união íntima entre a Igreja e as monarquias absolutas; 6) o modelo de restauração formado depois da Revolução Francesa em oposição a uma sociedade liberal. Este modelo foi levado para as novas Igrejas na Ásia e na África durante os séculos XIX e XX, assim como o modelo calvinista. Na América Latina esse modelo recebeu o nome de romanização ou neorromanização.

Recentemente surgiu na América Latina o modelo de libertação, formulado por uma teologia original, cujos portadores históricos deveriam ser as comunidades eclesiais de base e os movimentos de libertação. Este modelo está sofrendo o impacto das transformações sociais e culturais que afetam a América Latina. As causas e as modalidades da crise que afeta este modelo são bem conhecidas. A crise já foi analisada e tudo o que se podia dizer já foi dito[3].

Ainda não foi formulado um novo modelo para encarnar a utopia de Jesus no mundo de hoje. O novo modelo está sendo experimentado. Falta-lhe a expressão verbal. Esta não deve demorar muito, mas, por enquanto, ainda não apareceu.

No entanto, algumas condições básicas podem ser expressas desde já, porque resultam obvia­mente da nova situação dos povos latino-americanos.

 

4. Condições básicas para um novo modelo

 

4.1. Emancipação das instituições

As novas gerações emancipam-se de todas as instituições, tidas por dominadoras e opressoras: a tradição familiar, a Igreja, a escola, o Estado — com seus códigos e leis — e as estruturas tradicionais em todas as áreas. Acham que podem descobrir a vida na satisfação dos desejos, sem restrições nem constrangimentos. Rompem com a chamada “metafísica”, isto é, com os princípios absolutos supostamente dominadores e expressão de uma vontade de dominação onipresente contra a qual querem lutar.

Segundo a linha de pensamento que se origina em Nietsche, e se prolonga na tradição filosófica ao redor de Heidegger e dos seus epígonos, a ruína da metafísica devia produzir uma geração de “super-homens”, seres humanos sem limitações nem constrangimentos, capazes de tudo — já que nada os limita. Na realidade, o que apareceu foi uma geração incapaz de agir, de se definir, de ter projetos, de lutar para realizar projetos. Uma geração apática, fechada em si mesma, sem futuro. Uma geração que não tem interesse para nada, a não ser o momento presente. Continuam sendo batizados. Professam-se católicos, uma vez que, para eles, ser católico não representa nenhum compromisso vital.

Esta geração ainda pode ter alguns reflexos cristãos na hora da doença ou do perigo (uma vela diante da imagem do santo, uma promessa feita “na hora do aperto”). Tudo isso vivido com muita superstição. Não é mais expressão de um substrato religioso. São restos em via de decomposição.

Essa postura demonstra carência de fé, de tônus vital e de energia para o agir. Demonstra carência daquela fé que é força interna, disposição para assumir tarefas e desafios. Em certos casos ainda podem assistir às missas, ser crismados, comungar — porque ainda não houve uma oportunidade para que se tornasse evidente o que já é realidade: debaixo dos gestos religiosos não há mais fé.

Essa situação pode ser encontrada também, às vezes, entre sacerdotes e seminaristas, religiosos e religiosas. Continuam realizando atos religiosos, porém sem vigor, sem fé, sem compromisso real da pessoa. Em situações assim, a fé morreu, ou nunca nasceu.

A fé é dom de Deus. Porém, o dom de Deus passa por mediações humanas. Ora, não se trata da fé nos dogmas cristãos, nem de adesão a uma doutrina, mas da fé como vontade de viver, de ser ativo e de fazer, de realizar obras consistentes no mundo e na sociedade.

Essa é a fé que faz falta. Devido à falta dessa fé, as novas gerações se deixam levar pelo movimento da sociedade. Recebem tudo passivamente, conformando-se com o que lhes chega. Falta-lhe energia para qualquer oposição ou contestação. Seria muito cansativo opor-se ao que aí está.

Ora, as estruturas da Igreja católica, mesmo as estruturas das comunidades eclesiais de base, não têm capacidade para transmitir ou fazer surgir a fé. Nem a catequese, nem a preparação para os sacramentos, nem a vida paroquial, nem as comunidades, nem os movimentos conseguem inculcar a fé. Todos eles supõem a fé. Não estão armados para despertá-la.

Hoje em dia, somente os movimentos carismáticos conseguem fazer surgir a fé e transformar a vida dos seus convertidos. Por sinal, o movimento pentecostal é de longe o fenômeno mais importante do século XX, já que se estima que houve entre 300 e 400 milhões de conversões em todos os continentes. A grande maioria diz respeito a Igrejas de ascendência protestante, porém há também movimentos católicos carismáticos com muito dinamismo. Na prática são os únicos que convertem as novas gerações, seja qual for o seu segredo.

Isso não quer dizer que outros grupos ou organizações não possam conseguir resultados semelhantes. Porém, esses outros movimentos não aparecem. Esse é o desafio trazido pelo pentecostalismo. Por que muitos grupos e organizações das Igrejas não conseguem transmitir a fé, enquanto os carismáticos conseguem? Aí está o fato. Sem fé o cristianismo nada pode. Teologia, catequese, evangelização, organização eclesiástica, movimentos, pastorais, tudo é inútil se não existe fé. A partir da fé tudo é possível. Nenhuma utopia cristã tem significado se não há pessoas de fé para assumi-la.

 

4.2. Jesus Cristo chama

Nas atuais circunstâncias não podemos esperar que verdadeiras “vocações” surjam por si mesmas. Que uma pessoa se sinta chamada a entrar no projeto de Jesus, a imitar a vida de Jesus, isso não vai surgir espontaneamente. Entre as chamadas “vocações” que se apresentam na atualidade, quantas respondem a um apelo evangélico?

É frequente o candidato querer “ser padre”, mas sem necessariamente querer uma vida de imitação de Cristo. Quer um ofício, uma situação social garantida na Igreja. E tudo se resume a isso, ainda que logo aprenda que lhe convém usar um vocabulário mais edificante, para responder às expectativas dos formadores.

Não haverá possibilidade de promover nenhum projeto histórico concreto se não houver pessoas que se dediquem gratuita e voluntariamente — e com sacrifício — a essa tarefa. Todavia, é bom lembrar novamente que o mundo não corre nesse sentido. Será preciso despertar vocações de pessoas que queiram romper com o processo vigente, renunciar a uma carreira profissional, deixar de competir no campeonato da modernidade. Aqui também os movimentos de tipo pentecostal conseguem despertar tais vocações. Qual será o seu projeto? Na atualidade, as orientações não estão ainda definidas.

A Igreja católica, sobretudo na América Latina, está agora cada vez mais ocupada por movimentos integristas, tais como os “Cavalheiros de Cristo” (México), “Sodalitium” (Peru) e outros. O que fazer para evitar que o conjunto da estrutura caia nas mãos de tais organizações? De que forma desviar as vocações de tais tentações?

 

4.3. O futuro

A característica da Idade Moderna foi a persuasão de que o futuro estava nas mãos dos seres humanos. Alimentou-se a ilusão de que eles podiam construir um futuro, dominá-lo e realizar os próprios projetos abstratos ou concretos na história. A lição que nos ficou é de que as coisas não acontecem de acordo com as previsões, e que nenhuma inteligência humana consegue captar o futuro. Consequentemente, não há como elaborar uma figura concreta de vida cristã a priori. O olhar histórico retrospectivo, que nos permite visualizar os diversos modelos de cristandade, não nos dá o aval para criar um novo modelo. Os homens e as mulheres do passado não tinham modelos na mente à medida que iam construindo a sua vida e a vida da Igreja. Muitos queriam outra coisa, mas deu no que deu.

Há 25 anos havia certo modelo de vida comunitária que estava na raiz das comunidades eclesiais de base. Hoje sabemos que a comunidade possível para o início do Terceiro Milênio é algo ainda indefinido — mas bem diferente das expectativas que tínhamos há 25 anos. Naquele tempo tinha-se certa imagem de socialismo. Hoje ninguém mais sabe o que essa palavra significa na prática.

A imagem do novo modelo histórico irá aparecendo pouco a pouco. Não adianta querer adivinhar. Resultará dos experimentos a serem feitos. Mas ainda não sabemos o que fracassará e o que terá êxito. Essa indefinição não é problema para o cristão, pois a utopia de Jesus olha menos para o futuro do que para o presente. O que prepara o futuro é o presente, e não as ideias sobre o futuro. O que cria nova figura histórica são os atos, as obras, as realizações presentes que se entrelaçam e vão construindo conjuntos.



[1] Cf. Ignacio Ellacuría, “Utopia y profetismo”, em Mysterium Liberationis, tomo 1, Trotta, Madrid, 1990, pp. 393-442; Conversion de la Iglesia al Reino de Dios, Sal Terrae, Santander, 1984; Jon Sobrino, “Centralidad del Reino de Dios em Ia teologia de Ia liberación”, em Mysterium Liberationis, tomo 1, pp. 467-510; J. L. Segundo, O homem de hoje diante de Jesus de Nazaré, tomo II/1, Ed. Paulinas, São Paulo, 1985, pp. 67-262; J. B. Libânio, Utopia e esperança cristã, Loyola, São Paulo, 1989; Inácio Neutzling, O Reino de Deus e os pobres, Loyola, São Paulo.

[2] Mesmo nos Estados Unidos foram publicadas as obras mais críticas do processo. Ver as obras de A. Bloom, J. K. Galbraith, R. Reich, Chr. Lasch etc.

[3] Sobre este assunto, citei muitas referências no meu livro Cristãos rumo ao século XXI, Paulus, São Paulo, 1996.

Pe. José Comblin