Publicado em número 366 - pp. 34-41
FRANCISCO E O DESAFIO DA LITERATURA
Por Prof. Faustino Teixeira*
Em julho de 2024, o papa Francisco escreveu uma importante carta, voltada para os formadores nos seminários e institutos teológicos, sobre o papel da literatura. Trata-se de uma iniciativa fundamental para a dinâmica de aperfeiçoamento daqueles que pretendem viver com profundidade a sua identidade, na medida em que a literatura é um instrumento fundamental para o aperfeiçoamento de si. Este artigo busca trabalhar essa questão.
O pontificado de Francisco completou seu 12º ano em março de 2025. A Igreja Católica viveu, nesse período, momentos de uma grande primavera eclesial, com a renovação de ares fundamentais para a sua sintonia com o tempo presente. O seu trabalho pastoral não tem sido fácil, uma vez que vem cerceado por movimentos de resistência profundos, advindos do próprio circuito eclesial católico (Politi, 2014, p. 176-177). Um dos traços que marcam a personalidade de Francisco é a paciência, que ele associa à santidade. A paciência e a constância são fruto de um aprendizado bebido nas raízes jesuítas e, é claro, na dinâmica do Evangelho.
Em sua entrevista com o Pe. Spadaro, Francisco fala em discernimento:
Esse discernimento requer tempo. Muitos, por exemplo, pensam que as mudanças e as reformas podem acontecer em pouco tempo. Eu creio que será sempre necessário tempo para lançar as bases de uma mudança verdadeira e eficaz. E este é o tempo do discernimento. E por vezes o discernimento, por seu lado, estimula a fazer depressa aquilo que inicialmente se pensava fazer depois […]. O discernimento realiza-se sempre na presença do Senhor, vendo os sinais, escutando as coisas que acontecem, o sentir das pessoas, especialmente dos pobres (Francisco, 2013, p. 11).
Em suas Cartas a um jovem poeta, Rainer Maria Rilke sublinha a importância fundamental da paciência. Ele diz, com ênfase, que “a paciência é tudo”. Trata-se de um ingrediente essencial no desenvolvimento da vida interior. Os grandes e decisivos processos de caminho pessoal devem ser conduzidos com discernimento específico, devagar e sem pressa. É com o devido tempo que conseguimos alcançar uma nova compreensão e fazer com que ela possa habitar tranquilamente nos outros que nos rodeiam (Rilke, 2013, p. 33 e 38).
Francisco sabe muito bem que as mudanças na Igreja requerem tempo. Como ele disse em longa entrevista ao padre Antonio Spadaro, em 2013, as mudanças que se pretendem verdadeiras e eficazes não ocorrem da noite para o dia, mas envolvem todo um processo de discernimento. As decisões fundamentais na vida eclesial, assevera Francisco, não podem ocorrer de modo repentino (Francisco, 2013, p. 11 e 17).
Em tempos recentes, Francisco tem levantado uma questão fundamental para a dinâmica de formação daqueles que buscam sua inserção no sacerdócio da Igreja: a questão da importância da literatura. Trata-se de um desafio que não se restringe aos candidatos ao ministério, mas se dirige a todos os agentes de pastoral e aos cristãos em geral. O tema apareceu na carta de Francisco sobre o papel da literatura na educação, publicada em 17 de julho de 2024.[1]
Um de nossos maiores especialistas em literatura no Brasil, o professor Antonio Candido (1918-2017), deixou expressa, num singular vídeo, a sua posição sobre o lugar da literatura na vida de cada um de nós. Dizia que a literatura tem um papel fundamental na melhora do ser humano. Para ele, todos aqueles que passaram pelo crivo da literatura viveram, certamente, um grande enriquecimento pessoal. Daí ser fundamental, a seu ver, a abertura de espaços garantidos na sociedade para o acesso livre à literatura.[2]
Francisco vem demonstrando, em seu pontificado, uma grande sensibilidade aos temas humanos e busca acercar-se de colaboradores que manifestam semelhante sintonia, como é o caso do “cardeal poeta” José Tolentino de Mendonça, que atua hoje como prefeito do Dicastério para a Cultura e Educação, cargo que assumiu em 2022.
Em entrevista publicada no IHU-Notícias, de 28 de agosto de 2024, José Tolentino pontuou que ele foi escolhido por Francisco porque a poesia faz parte de sua biografia, e sua atuação no Vaticano tem como objetivo trazer para a vida da Igreja esse “inútil que perfuma a vida”.[3] E assim tem sido sua atuação em Roma, com influxos vivos na reflexão de Francisco. Mais recentemente, Francisco escolheu para o cargo de cardeal outra grande figura humana, de grande sensibilidade literária, que é o dominicano Timothy Radcliffe, que exerceu o cargo de mestre-geral da ordem dos Dominicanos, com várias publicações no campo da espiritualidade e dos desafios da vida contemporânea.
Em sua carta sobre o papel da literatura na educação, Francisco lamenta a carência literária dos seminaristas, sacerdotes e agentes de pastoral que atuam na vida eclesial. Reconhece ser esse um dos limites da formação recebida, que carece de um lugar destacado para a literatura. Sublinha Francisco que
é preciso constatar, com pesar, a falta de um lugar adequado da literatura na formação daqueles que se destinam ao ministério ordenado. Efetivamente, esta é, muitas vezes, considerada como uma forma de passatempo, ou seja, como uma expressão menor de cultura que não faria parte do caminho de preparação e, portanto, da experiência pastoral concreta dos futuros sacerdotes. Com poucas exceções, a atenção à literatura é considerada como algo não essencial (CPLE, n. 4).
Essa ideia de que a literatura é um simples “passatempo” para os que estão em processo de formação é algo recorrente entre os responsáveis pelo aprimoramento dos estudantes. Firmou-se o dado de que a literatura é um recurso para as horas livres, como mecanismo de equilíbrio para o ritmo pesado dos estudos durante o dia. Um dos formadores de opinião nesse campo argumenta que a literatura, a poesia e a música entram como contraponto, no sentido de favorecerem “atitudes tranquilas e repousantes” (Libanio, 2001, p. 130-131). Daí sua indicação para o horário noturno. Vejo hoje, com clareza, que esse não é o melhor caminho de entendimento, já que a literatura não é algo a ser buscado como um passatempo.
A esse respeito, gostaria de afirmar que tal perspectiva não é boa. Ela está na origem de uma forma de grave empobrecimento intelectual e espiritual dos futuros sacerdotes, que ficam assim privados de um acesso privilegiado, precisamente através da literatura, ao coração da cultura humana e, mais especificamente, ao coração do ser humano.
De fato, podemos verificar que, em muitos institutos de formação, a carência das humanidades é um dado incontestável, e isso aparece na própria estruturação dos currículos de Teologia. Percebe-se nos seminaristas uma preocupação nodal com o desfecho da formação recebida, para que logo possam exercer o seu trabalho paroquial, com as benesses que o acompanham. Percebe-se por todo canto um desinteresse notório pela formação mais vasta e pela ampliação do olhar.
Francisco chama a atenção para traços de superficialidade no tempo utilizado nos seminários e para a presença nociva de certos recursos da internet e das redes sociais que consomem o tempo vago dos candidatos ao sacerdócio. Fala ainda do perigoso circuito da veleidade e das fake news, que roubam um tempo precioso, que poderia ser sorvido com momentos serenos de leitura e aperfeiçoamento pessoal.
O papa lança, assim, um apelo capital em favor de uma mudança radical de perspectiva, no sentido de dedicar uma atenção especial à formação literária. Sua proposta vai no sentido de ampliar o olhar e a consciência. Como indica Francisco, a literatura é uma preciosa porta de entrada para o conhecimento de si, para a sensibilização pessoal, e também para o diálogo com o tempo. E justifica:
Para um crente que deseja sinceramente entrar em diálogo com a cultura do seu tempo ou, simplesmente, com a vida de pessoas concretas, a literatura torna-se indispensável. Com grande razão, o Concílio Vaticano II afirma que “a literatura e as artes […] procuram dar expressão à natureza do homem” e “dar a conhecer as suas misérias e alegrias, necessidades e energias” . Na verdade, a literatura inspira-se na cotidianidade vivida, suas paixões e acontecimentos reais, como “a ação, o trabalho, o amor, a morte e todas as pobres coisas que enchem a vida” (CPLE, n. 8).
O contato direto com a literatura, lembra Francisco, é algo essencial. O exercício cotidiano da leitura, da reflexão demorada e atenta, do mergulho efetivo no texto é um recurso fundamental para o aperfeiçoamento pessoal, assim como um antídoto contra a “surdez espiritual”. Francisco cita o exemplo precioso de Jorge Luis Borges, com seus conselhos a respeito. A literatura entra como ingrediente essencial para a tessitura do mundo pessoal. Com base em Proust, Francisco nos lembra que
os romances desencadeiam em nós, no espaço de uma hora, todas as alegrias e desgraças possíveis que, durante a vida, levaríamos anos inteiros a conhecer minimamente; e, dessas, as mais intensas nunca nos seriam reveladas, porque a lentidão com que ocorrem nos impede de as perceber (CPLE, n. 18).
A obra literária, ressalta Francisco, está sempre em movimento, como algo vivo e fértil, encantando o olhar e abrindo frestas inesgotáveis. É igualmente um forte ingrediente para o trabalho formativo dos sacerdotes e agentes de pastoral, na medida em que enriquece profundamente o repertório narrativo desses formadores de opinião, bem como o vocabulário e a vida intelectual. Francisco nos lembra que,
de um ponto de vista pragmático, muitos cientistas afirmam que o hábito de ler produz muitos efeitos positivos na vida de uma pessoa: ajuda-a a adquirir um vocabulário mais vasto e, consequentemente, a desenvolver vários aspectos da sua inteligência; estimula também a imaginação e a criatividade; simultaneamente, permite que as pessoas aprendam a exprimir as suas narrativas de uma forma mais rica; melhora também a capacidade de concentração, reduz os níveis de déficit cognitivo e acalma o stress e a ansiedade (CPLE, n. 16).
Chamo aqui a atenção para esse dado levantado por Francisco, de que o hábito da leitura é um forte instrumento para ajudar na expressão das narrativas. O ato de escrever, motivado pela literatura, é fundamental para o sentimento de pertença, como tão bem lembrou Clarice Lispector. É um estímulo poderoso para a renovação pessoal e a experiência integradora do viver cada passo do cotidiano com a intensidade que merece. Clarice, numa de suas crônicas, dizia que o exercício de escrever facultou-lhe o sentimento de pertença a si mesma, um sentimento que potencializa a dinâmica da força pessoal, que se irradia como luz para os outros (Lispector, 2018, p. 115-116). Escrever é uma experiência que salva, diz Clarice. Trata-se de “procurar entender, é procurar reproduzir o irreproduzível, é sentir até o último fim o sentimento que permaneceria apenas vago e sufocador” (Lispector, 2018, p. 143-144).
Em tempos difíceis como o nosso, de crise civilizacional, a literatura fornece um apoio existencial fundamental. Como diz a jovem poeta portuguesa Matilde Campilho, a poesia, assim como a pintura e a música, entra como um forte apoio cognitivo: elas “salvam o minuto”,[4] elas reconstituem o tecido fragmentado com as dores do tempo e apontam horizontes alvissareiros.
Em livro publicado em 2024 na Itália, com o singelo título Versi a Dio: antologia della poesia religiosa, Francisco colaborou com um texto precioso sobre o dom da poesia (Brullo; Spadaro; Crocetti, 2024). É, na verdade, uma carta dirigida por Francisco aos poetas. Ele relata em seu texto que a poesia teve sempre um lugar de destaque em sua vida, que ao longo de seu itinerário pôde apreciar muitos escritores e poetas, entre os quais Dante e Dostoiévski. Reconhece que eles exerceram sobre ele um influxo fundamental, no sentido da compreensão de si mesmo e da abertura das sendas do coração. Foram passos fundamentais também para o seu trabalho pastoral, argumenta com precisão. Os poetas, sublinha Francisco, são pessoas nobres, marcadas por sede insaciável de sentido. São movidos pela incrível capacidade de sonhar e de desenhar mundos alternativos. Daí sua importância nos tempos atuais, de predomínio da perturbação do humano sobre a Terra, os tempos do Antropoceno. Os poetas são dotados de “olhos de vidro”, com os quais podem sonhar um mundo distinto. A poesia, diz Francisco, “não fala da realidade a partir de princípios abstratos, mas o faz em escuta à realidade mesma: o trabalho, o amor, a morte, e todas as pequenas grandes coisas que preenchem a vida”.
Referências bibliográficas
BRULLO, Davide; SPADARO, Antonio; CROCETTI, Nicola. Versi a Dio: antologia della poesia religiosa. Milano: Crocetti, 2024.
FRANCISCO. Entrevista exclusiva do papa Francisco ao Pe. Antonio Spadaro. São Paulo: Paulus: Loyola, 2013.
LIBANIO, João Batista. Introdução à vida intelectual. São Paulo: Loyola, 2001.
LISPECTOR, Clarice. Todas as crônicas. Rio de Janeiro: Rocco, 2018.
POLITI, Marco. Francesco tra i lupi: il segreto di una rivoluzione. Roma-Bari: Laterza, 2014.
RILKE, Rainer Maria. Cartas a um jovem poeta. 4. ed. São Paulo: Globo, 2013.
[1] https://www.vatican.va/content/francesco/pt/letters/2024/documents/20240717-lettera-ruolo-letteratura-formazione.html. Acesso em: 11 nov. 2024. A carta será siglada no texto como CPLE.
[2] https://www.facebook.com/cienciausp/videos/531203567003857/. Acesso em: 11 nov. 2024.
[3] https://www.ihu.unisinos.br/categorias/642904-a-poesia-e-o-inutil-que-perfuma-a-vida-entrevista-com-o-cardeal-jose-tolentino-de-mendonca. Acesso em: 11 nov. 2024.
[4] https://www.publico.pt/2015/07/03/culturaipsilon/noticia/a-poesia-nao-salva-o-mundo-mas-salva-o-minuto-1700928. Acesso em: 11 nov. 2024.
Prof. Faustino Teixeira*
*é professor titular aposentado da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), tendo trabalhado no Programa de Pós-graduação em Ciência da Religião. Hoje ministra cursos de literatura e cinema no Instituto Humanitas da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), bem como atua no Portal Paz e Bem.