Publicado em janeiro-fevereiro de 2026 - ano 67 - número 367 - pp. 34-36
1º de janeiro – SOLENIDADE DE SANTA MARIA, MÃE DE DEUS
Por Junior Vasconcelos do Amaral*
Deus nos dê a sua graça e sua bênção
Na celebração deste 1º de janeiro de 2026 desejamos a todos saúde e paz, pela intercessão da Bem-aventurada Virgem Maria, Mãe de Deus. Neste dia, o mundo celebra a fraternidade universal e o dia mundial da paz. Pedimos que o Filho de Maria, Jesus Cristo, o Príncipe da paz, nascido em Belém, possa fazer de nosso coração uma manjedoura, para fazer nascer nele o amor e a paz.
As leituras deste primeiro dia do ano nos levam a acolher Maria e considerá-la também nossa Mãe, por causa de nossa experiência de fé em seu filho, Jesus. Na primeira leitura, ouvimos o relato da bênção sacerdotal que faz brilhar sobre nossa face a luz de Deus, constituindo-nos homens e mulheres de paz (shalom). Deus propõe a seu povo uma bênção copiosa de graça e salvação.
O Evangelho nos convida a olhar, neste Natal, para a manjedoura e vermos lá o Amor encarnado, habitando entre nós e fazendo-nos participar da vida de Deus, assim como ele desejou habitar nossa história. É esse Amor que a segunda leitura nos chama a experimentar, a com ele nos relacionarmos, já não como escravos, mas livres, em Cristo Jesus, o Filho de Deus. A liberdade é a expressão da graça e da bênção de Deus, que criou o ser humano para a liberdade, para uma Páscoa definitiva chamada de céu.
II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
1. I leitura (Nm 6,22-27)
A primeira leitura está inserida no fim do capítulo 6 do livro dos Números, cuja temática central trata sobre o nazireato, o voto realizado por um homem ou mulher em sua consagração a Deus. Nm 6,22-27 corresponde ao ritual de bênção sacerdotal. Grosso modo, o livro dos Números pertence à tradição que conhecemos como Código Sacerdotal, Priestercodex. Esse ritual de bênção se associa ao múnus santificante do povo de Deus rumo à Terra Prometida, aludindo ao nosso múnus santificador da Igreja hoje, rumo à Páscoa definitiva em Cristo. Também nós somos convidados à mesma prece neste primeiro dia do ano. A fórmula da bênção remonta a Lv 9,22-23: o ato mesmo de Aarão, o sacerdote e irmão de Moisés, que levanta as mãos e abençoa o povo. Esse rito sacerdotal é também conhecido como cheirotonia (“ch” tem som de “r”), usado pelo presbítero ou epíscopo que presidem a celebração eucarística na epiclese sobre os dons do pão e do vinho e, no fim, para a bênção de envio do povo à missão. Nm 6,22-27 reflete a resposta de Deus, Adonai, à manutenção da pureza e à generosa dedicação voluntária em prol da comunidade. O texto hebraico preserva a tradição oral do pré-exílio e mostra um estilo poético como nos Salmos (cf. Sl 67,1). O direito de invocar o nome santo do Senhor está reservado a Aarão e a seus filhos sacerdotes. Os conceitos do guardião de Israel (v. 24), do resplandecimento do rosto de Deus ou de sua presença mesma (v. 25) e sua benignidade, da face divina e da paz (v. 26, o shalom), estão aqui arquitetados e arrematados em uma bênção, que deverá ser dada aos israelitas, e o Senhor os abençoará (v. 27), de modo confirmativo e afirmativo. Essa bênção tem como elemento-chave a ideia, corrente em tempos de angústia, de que o Senhor teria “escondido sua face” e abandonado seu povo (cf. Dt 31,18; Sl 30,8; 44,25; 104,29). O shalom, nessa bênção, tem sentido mais amplo, refletindo a “inteireza” e o “bem-estar”.
2. II leitura (Gl 4, 4-7)
A carta aos Gálatas é polêmica no sentido de que Paulo escreve aos irmãos e irmãs da Galácia a fim de evitarem os erros dos judaizantes: não se apegarem veementemente à Lei, pois foi para a liberdade que Cristo nos libertou (Gl 5,1). A passagem deste dia está inserida na temática da filiação divina de nosso Senhor Jesus Cristo, “nascido de mulher, nascido sob a Lei” (v. 4), para resgatar os que estavam sob a Lei, com a finalidade de que recebessem a adoção filial (v. 5). É pelo Espírito de Cristo, que clama em nós, que dizemos Abbá, traduzido por “Pai” (v. 6). Nessa passagem, como em outras, Paulo resgata o caráter pneumatológico da carta: é o Espírito Santo que vem em nosso socorro e nos ajuda a viver como filhos de Deus; foi dessa mesma forma que o Filho Jesus viveu, em toda a sua condição humana, exceto no pecado – que, infelizmente, habita em nós pela liberdade que temos de escolher, pois às vezes escolhemos errado. Paulo assim conclui: “porque sois filhos [...], somos também herdeiros” da salvação de Deus (v. 7). Nesse sentido, a carta aos Gálatas se define como uma espécie de “rascunho” da carta aos Romanos, pois somos todos justificados, no Espírito que habita em nós, por Cristo, junto ao Pai, perfazendo assim o mistério trinitário em nossa fé batismal.
3. Evangelho (Lc 2,16-21)
O Evangelho da infância, no qual o texto de hoje está inserido, constitui um midrash, uma forma rabínica de interpretar e escarafunchar, na história do povo, o sentido do nascimento de Jesus. Belém – do hebraico, Bet Helem – é a “Casa do Pão” onde nasce o menino Jesus, numa manjedoura. Os pastores (cf. Lc 2,15) vão até lá para ver o Senhor. O verbo utilizado por Lucas é ídomen, derivado de eidén, e traduz o sentido de “identificar”, “conhecer”. Trata-se de verbo frequentemente utilizado nos Evangelhos para traduzir essa relação estrita entre as pessoas que se conhecem, se identificam umas com as outras e estabelecem amizade. É interessante notar que esse verbo é o mesmo utilizado por Jesus quando olha tanto para seus discípulos quanto para o povo que estava como ovelhas sem pastor (Mc 6,34).
Os pastores chegam às pressas, a exemplo de Maria, que também saiu apressadamente para visitar sua prima Isabel (Lc 1,39). Trata-se da expectativa feliz por se encontrarem com o Messias. Lá eles encontram Maria, José e o menino recém-nascido, deitado na manjedoura (v. 16). O verbo “ver” aparece novamente no v. 17: ao verem o menino, contaram o que já haviam ouvido sobre ele, desde os tempos antigos. Trata-se aqui de uma interpretação, um DeRaSh, retirando do passado as melhores recordações, aquilo que ficou na memória do povo. Os pastores deixavam todos maravilhados com o que diziam (v. 18). Maria conservava todas as coisas, misteriosamente, em seu coração e nelas meditava (v. 19). O coração – em hebraico, lev –, para os judeus, é lugar das decisões mais importantes, lugar onde se assentam a Lei e o amor. Os pastores voltaram glorificando e louvando a Deus por tudo o que viram e ouviram, conforme lhes tinham dito (v. 20). O texto conclui com o cumprimento ritual da Lei no oitavo dia, a circuncisão do menino e a purificação da mãe. Foi dado ao menino o nome Jesus, que significa “Deus salva”, conforme o anjo indicara anteriormente (v. 21).
Lucas assim entretece no relato do nascimento de Jesus a tradição sobre os pastores, a visitação do anjo e a alegria típica de seu Evangelho, como uma colcha de retalhos na qual se destaca a maternidade de Maria, Mãe de Jesus e nossa Mãe.
III. PISTAS PARA REFLEXÃO
Mostrar a relação entre as três leituras, destacando que a bênção do passado dada pelos sacerdotes agora se traduz no nascimento de Jesus tanto para a vida de Maria e José quanto para todos nós, que celebramos recentemente seu Natal. Destacar que Cristo nos libertou para vivermos não um conglomerado de leis e rituais, mas o verdadeiro amor a Deus e aos irmãos. Perceber que a maternidade de Maria foi anteriormente vivida na fé, pois ela acolheu a Palavra de Deus pelo ouvido e agora essa Palavra nasce entre nós, renovando nossa alegria, como outrora a alegria dos pastores.
Junior Vasconcelos do Amaral*
*é presbítero da arquidiocese de Belo Horizonte-MG e vigário episcopal da Região Episcopal Nossa Senhora da Esperança (Rense). Doutor em Teologia Bíblica pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje), realizou parte de seus estudos de doutorado na modalidade “sanduíche”, estudando Narratologia Bíblica na Université Catholique de Louvain (Louvain-la-Neuve, Bélgica). Atualmente, é professor de Antigo e Novo Testamentos na PUC-Minas, em Belo Horizonte, e desenvolve pesquisa sobre psicanálise e Bíblia. É psicanalista clínico. E-mail: [email protected]

