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Publicado em setembro-outubro de 2023 - ano 64 - número 353 - pp.: 28-34

Bendito Aquele Que Nos Abençoou Com Todas As Bênçãos

Por Márcio Pimentel* e Penha Carpanedo**

O hino de Efésios 1,3-14, embora de origem não litúrgica – no sentido de não proceder de uma prática celebrativa concreta nem pertencer a um repertório específico em uso na época –, provavelmente respire
algo de um ambiente ligado à iniciação cristã e seja ponto de partida para a teologia da carta aos Efésios sobre o mistério da Igreja. Neste artigo, a reflexão sobre o hino se faz na perspectiva do contexto litúrgico atual, no qual ele está inserido, como canto da assembleia em oração. O rito é tomado como intérprete do hino.

 

1. O rito como intérprete da Escritura

Nas páginas que seguem, propomo-nos discutir o “hino de Efésios” por meio da liturgia, numa perspectiva pastoral. Isso significa considerar o rito como intérprete da Escritura para estabelecer o conteúdo da fé, a modalidade de sua experiência e a configuração de seu sujeito – no caso, a Igreja. Esse procedimento é coerente com o conhecido adágio, que se tornou um axioma para quem se aventura pelos caminhos da teologia, na fidelidade à genuína Tradição tanto oriental quanto ocidental: lex orandi, lex credendi. Ou seja, se se deseja saber como e em que a Igreja crê, deve-se observar como ela reza (BAMBRILLA, 2003, p. 72).

O ditado lex orandi, lex credendi nasce do reconhecimento da liturgia como um fenômeno de significado originante para a fé. Ao fazê-lo, os ritos pelos quais o mistério de Cristo é celebrado nas comunidades cristãs são dotados de uma autoridade exegético-interpretativa própria. Com isso, queremos, sim, afirmar que o conjunto de orações da Igreja – a eucologia – é uma página de interpretação bíblica (SODI, 2013, p. 51-52). Mas não só isso. É o rito, enquanto uma operação simbólico-comunicativa dos fiéis, o procedimento pelo qual a revelação é estabelecida, experienciada

e conhecida. A celebração, portanto, é mais do que o Sitz im Leben, o lugar ou contexto vital no qual a Palavra de Deus ecoa, mas a forma por excelência de essa Palavra dar-se (Sacrosanctum Concilium, n. 7). O caráter institutivo e constitutivo, fundacional, portanto, da liturgia para a fé foi atestado recentemente pelo papa Francisco na carta Desiderio Desideravi, n. 7:

O conteúdo do pão partido é a cruz de Jesus, seu sacrifício em obediência de amor ao Pai. Se não houvesse tido a Última Ceia, ou seja, a antecipação ritual de sua morte, não poderíamos compreender como a execução de sua sentença de morte poderia ser o ato de culto perfeito e agradável ao Pai, o único e verdadeiro ato de culto.

Observando as narrativas evangélicas da Última Ceia, não é difícil verificar como o rito de Jesus estabelece a fé pascal. Se tomarmos um dos sinóticos – Mateus, por exemplo –, notaremos que o banquete ritual é o Sitz im Leben da fé: “Enquanto comiam…” (Mt 26,26), mas também é o “como” da fé: “‘Tomem, comam, isto é meu corpo…’. E, tomando um cálice e dando graças, deu a eles, dizendo: ‘Bebam dele todos’… E, tendo cantado o hino, saíram para o monte das Oliveiras” (Mt 26,26b-28a.30). As palavras com as quais Jesus dialoga com os discípulos e simboliza o pão e o vinho como seu corpo e sangue, respectivamente, são “pinçadas” da Escritura (quanto à menção sobre o sangue da aliança: Ex 24,28; Is 53,1-12). Não obstante, é o gesto que confere o novo conteúdo semântico, o significado não só do pão e vinho, mas da Escritura mesma: tomou, abençoou, partiu e deu; tomou, fez ação de graças e deu. Com isso, o rito interpreta a Escritura, interpreta a própria ceia na qual o cordeiro, as ervas amargas, os demais elementos da ceia judaica dão lugar ao pão e vinho compartidos e participados, e interpreta o próprio destino de Jesus.

O gesto eucarístico – leia-se, o rito eucarístico –, como dissemos, nasce como um fato originante da fé pascal, a qual, de acordo com Paulo, corresponde à seguinte afirmação: “Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras, foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras” (1Cor 15,4). Conclusão: a celebração transmite a fé. Desse modo, tem razão, mais uma vez, o papa Francisco ao nomear a liturgia, ao lado das Escrituras e dos Padres, como pilar da verdadeira Tradição (DD 14).

2. “Tendo cantado o hino”

Continuemos nossa tratativa de interpretar Ef 1,3-14 em perspectiva litúrgico-pastoral,
mantendo sob nosso olhar a narrativa mateana da Última Ceia. Faremos assim porque Mateus
mantém a redação de Marcos e cita o hino conclusivo do banquete ritual – como é esperado no
Seder pascal –, o que é interessante para nosso estudo.

Sobre esse hino, não sabemos muito. No caso de Mateus, que mistura elementos tradicionais referentes à ceia judaica à novidade do anfitrião Jesus, o hino conclusivo poderia ser a última parte do Hallel, hipótese que exprime uma tendência da ciência bíblica já a partir do século XVII. A exegese patrística, de todo modo, não enxergava nesse hino um uso judaico, mas, já na perspectiva da “novidade cristã” da Última Ceia, considerava-o um hino cristão de ação de graças, como aqueles que são usuais na missa, ligados aos ritos de comunhão (LUZ, 2005, p. 188, nota 11). Eusébio de Cesareia, no século IV, comentando o uso do incenso nas celebrações, testemunha que os hinos piedosos cantados na missa são eles mesmos oferecimento de ação de graças pela salvação (EUSÉBIO DE CESAREIA, 2003, p. 357).

3. O hino de Ef 1,3-14

A exegese bíblica, com base na crítica das formas, consegue, com certa facilidade, identificar na Escritura aquelas passagens comumente designadas hinos e cânticos. Seja pela fluidez, pela estrutura paralelística – própria da poesia bíblica – e pelo tom expressivo, os estudiosos têm

êxito em reconhecer aquele material que certamente derivou de uma experiência cultual comunitária e foi posteriormente inserido na trama literária.

A hinódia do Novo Testamento, particularmente do corpus paulino, aparece como composição nomeadamente cristã, em geral de conteúdo laudativo e cristológico. A classificação dos hinos é variada, e é de aceitar uma tipologia que os diferencie em: a) sacramentais, enquanto provenientes do ambiente ritual do batismo ou Eucaristia; b) meditativos, na medida em que discorrem sobre o significado da fé em Cristo; c) confessionais, como expressão do testemunho cristão; d) cristológicos, enquanto panegíricos, ou seja, discursos elogiosos da figura de Cristo Jesus, pondo em destaque sua natureza, identidade, vocação e missão; e) parenéticos, ao debruçar-se sobre o apelo ético da fé (MARTIN, 2008, p. 631-633).

No caso de Ef 1,3-14, há a opinião de que se trata de uma composição autoral que dialoga com a carta aos Colossenses (KOBELSKI, 2011, p. 622). A favor dessa suposição está o fato de comportar um vocabulário bastante elaborado (SCHÖKEL, 2011, p. 2804 – nota 1,3-14). Por conseguinte, é possível que sua origem não seja litúrgica, no sentido de não proceder de uma prática celebrativa concreta nem de pertencer a um repertório específico em uso à época. Nota- se a dependência da experiência cultual judaica, dado que o discurso todo se assenta na noção de bênção (berakah) e se estrutura com base nessa noção, o que nos faz pensar numa apropriação da forma litúrgica vigente, adaptada aos objetivos do autor de narrar liricamente o projeto de Deus que se realiza em Cristo e alcança a comunidade dos crentes.

No entanto, não é descartado que o autor respire algo de um ambiente composicional ligado à iniciação cristã (BAMBRILLA, 2003, p. 76). Isso poderia ser deduzido do conteúdo, ou seja, da letra do hino. A bênção é descrita como um elogio a Deus, que, em Cristo, seu Filho, predestinou o gênero humano à filiação (v. 3-6a), acontecimento que envolve a comunidade de fé (v. 6b-10), a qual se considera eleita à participação desse mistério (v. 11-13) que se antecipa na adesão e no testemunho, mas se orienta para uma plenificação escatológica (v. 14).

Do ponto de vista estrutural, é possível uma subdivisão trinitária, certamente lógica, se considerarmos três blocos distintos, destinados a louvar o Pai (v. 3-6), pelo Filho (v. 7-12), no Espírito (v. 13-14). Cada bloco é concluído com uma menção ao louvor da glória de Deus.

Entretanto, é notório que o hino é completamente centrado na figura de Cristo e na relação que se estabelece entre ele e o fiel que rejubila porque se vê mergulhado em seu mistério. Levando em consideração essa dimensão, o hino é uma peça eminentemente cristológico-eclesial, já que, do primeiro ao último versículo, a constância é o “nós” da comunidade experimentando a mediação de Cristo na sua relação filial com Deus.

4. O hino de Efésios nos livros litúrgicos

No Ofício Divino, o hino de Efésios é entoado como um rito em si mesmo, ou seja, como parte da salmodia no ofício da tarde, na segunda-feira da II, III e IV semanas; no comum de Nossa Senhora, I e II vésperas; no comum dos apóstolos, I e II vésperas; no comum das virgens, I e II vésperas; no comum dos pastores, I vésperas; no comum dos santos homens, I vésperas; no comum das santas mulheres, I e II vésperas. No Ofício das Comunidades, está inserido no ofício da tarde, na segunda-feira da I à IV semanas. Nesse contexto de ação de graças próprio do ofício da tarde, o hino é agradecimento a Deus por seu projeto de divinizar-nos em seu Filho.

No contexto da celebração eucarística, vamos encontrá-lo inteiro no Lecionário Dominical (Ano B, 15º domingo do Tempo Comum) e, em partes, na celebração da Imaculada Conceição e no segundo domingo depois do Natal (sempre como segunda leitura). Nas missas feriais, encontrá- lo-emos na liturgia da Palavra da quinta e sexta-feira da 28ª semana do Tempo Comum. Também figura nas missas para diversas necessidades, quando se reza pela Igreja e pelos fiéis leigos, bem como nas missas “em ação de graças”, como possibilidade de segunda leitura na missa votiva do Sagrado Coração de Jesus e, ainda, no comum da Bem-aventurada Virgem Maria e na celebração do Santíssimo Nome de Maria. Já como antífona para a missa, encontraremos, comocanto de comunhão, trechos dele na celebração da eleição e inscrição do nome, dentro da caminhada catecumenal e na missa da sexta-feira da 4ª semana da Quaresma; na missa pela Igreja, aparecerá, também, um versículo como antífona da entrada.

No Ritual de Bênçãos, curiosamente, ele é omitido, a não ser como uma citação na Introdução Geral, relacionada à afirmação de Cristo como máxima bênção de Deus para nós. No Ritual da Penitência, supreendentemente, aparece de maneira mais generosa: duas vezes é citado na Introdução Geral, uma vez como leitura e todas as outras vezes como canto (salmo responsorial ou louvor e ação de graças). No Ritual de Iniciação Cristã de Adultos, aparece como antífona da comunhão na celebração da eleição, conforme mencionado acima, e como versículo de aclamação, do mesmo modo que no Ritual da Unção dos Enfermos. O hino está ausente no Ritual do Matrimônio e no Pontifical Romano.

Não é possível aqui uma análise de todos os casos em que o hino aparece em parte ou integralmente. Em cada caso, o rito em questão nos forneceria uma abordagem hermenêutica diferente. Se pensássemos apenas em termos de contexto litúrgico enquanto um enquadramento ritual genérico, isso já seria suficiente para alterar a exegese e a interpretação do texto. Feitas essas observações, tomaremos o hino no uso de canto de comunhão, conforme aparece no Missal Romano.

5. Cantar a bênção

A prática ritual do hino de Efésios em nossos dias, conforme vem programada nos livros litúrgicos, é bastante diversificada. No entanto, na celebração eucarística predomina seu enquadramento relativo à filiação-eleição. Isso é particularmente acentuado na celebração da Imaculada Conceição e na missa do segundo domingo depois do Natal, quando ocorre como texto a ser proclamado na liturgia da Palavra. Desse modo, a hermenêutica do texto vê-se condicionada à forma proclamativa, cuja função linguística é predominantemente referencial e poética, ou seja, direcionada a abordar os ouvintes (a assembleia em oração), pondo-lhes a par do conteúdo, quase que “os informando”, mas simultaneamente se concentrando na mensagem, ao pô-la em destaque pelo ritmo, pelo tom de voz e pelos demais procedimentos comunicativos, expressões e palavras significativas.

Quando o hino de Efésios é empregado na liturgia como canto da assembleia – o que ocorre ao ser tomado como antífona da entrada ou da comunhão –, o processo hermenêutico é de outra ordem. Em primeiro lugar, o hino recobra sua densidade expressiva; será não apenas uma maneira de declarar conteúdos teológicos sobre Cristo e a Igreja, mas também de permitir que transborde a satisfação de estar envolvido(a) no acontecimento liricamente descrito. Atinge e ativa, por assim dizer, a emoção dos sujeitos do canto, isto é, os que se tornam assembleia ou se fazem comungantes. Depois, o emprego da função metalinguística potencializa o discurso teológico – o hino é uma bênção, uma oração que bendiz, elogia a Deus, por ser Ele uma bênção em seu Filho; e então o discurso se debruça sobre a própria bênção: com o compartilhar da sua filiação, Cristo abençoa os fiéis. Isso é notório na versão do Ofício Divino das Comunidades, de autoria de Reginaldo Veloso. O refrão “Bendito seja Deus, Pai do Senhor Jesus Cristo; por Cristo nos brindou (= abençoou) todas as bênçãos do espírito” cumpre essa função metalinguística, que ajuda a construir o significado da adesão dos fiéis ao mistério da filiação e eleição propostas como a maior das bênçãos de Deus, bem como da participação deles nesse mistério. Essa versão é proposta no Hinário Litúrgico da CNBB como canto de comunhão.

Conclusão: dimensão pastoral

O hino de Efésios, quando assume um lugar no exercício ritual da Igreja, especialmente como canto no rito da comunhão, alcança uma eficácia pastoral de primeira importância. Como
sacramento da iniciação, a Eucaristia é o momento no qual o fiel se vê dentro do mistério ao celebrá-lo; esse mistério não se apresenta como um “ente mental”, como um significado a ser colhido com o uso do raciocínio, e sim como uma relação a ser estabelecida na mediação dos sinais. Tal relação se chama koinonia, comunhão, com Deus e os irmãos e irmãs, e se forma como vínculo, como um laço familiar.

A apropriação do hino por parte dos fiéis poderia ainda ser impulsionada se o Ofício Divino fosse rezado pelo mesmo sujeito eclesial que depois celebra a Eucaristia. Por seu caráter preparatório em relação à missa, a Liturgia das Horas ajudaria a assembleia a executar o hino conscientemente, bebendo de sua riqueza teológico-espiritual e complexidade expressiva. Quando retornasse durante a comunhão, seria, de fato, a realização da bênção, que enlaça os fiéis entre si enquanto se orientam para a fonte de todas as bênçãos, à disposição na mesa-altar, como explica a Instrução Geral do Missal Romano sobre o canto de comunhão. Executar ritualmente o hino de Efésios colabora para que a comunidade se perceba dentro do mistério de Cristo, mergulhada, de fato, nas águas do batismo.

Referências Bibliográficas

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KOBELSKI, Paul J. Carta aos Efésios. In: BROWN, Raymond E.; FITZMYER, Joseph A.; MURPHY, Roland E. (ed.). Novo
comentario bíblico São Jerônimo: Novo Testamento e artigos sistemáticos. São Paulo: Paulus; Santo André:
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LUZ, Ulrich. El evangelio según San Mateo. Salamanca: Sígueme, 2005. t. 4.
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SCHÖKEL, Luís Alonso. Bíblia do peregrino. São Paulo: Paulus, 2011.
SODI, Manlio. Latinitas Liturgica: una pagina esemplare circa il raporto tra Scrittura ed eucologia. Latinitas: Series
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Márcio Pimentel* e Penha Carpanedo**

*Pe. Márcio Pimentel é presbítero da arquidiocese de Belo Horizonte, membro do Secretariado Arquidiocesano de Liturgia e da Celebra –
Rede de Animação Litúrgica. É licenciado em Música pela UEMG, especializado em Música Ritual, mestre em Teologia pela Faje e doutorando em
Liturgia Pastoral pelo Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Justina. E-mail: [email protected]

**Ir. Penha Carpanedo, da Congregação Discípulas do Divino Mestre, é redatora da Revista de Liturgia, dedicada à formação litúrgica nas
comunidades na perspectiva da iniciação cristã. E-mail: [email protected]