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Publicado em setembro-outubro de 2023 - ano 64 - número 353 - pp.: 12-19

Efésios 2,19: A Comunidade Cristã Como “espaço De Concidadania”, Ontem E Hoje!

Por Antônio César Seganfredo* e Wellington Barros**

Em Efésios 2,19 o autor proclama que, pela obra de reconciliação de Jesus na cruz, na Igreja não há estrangeiros nem forasteiros; todos são “concidadãos dos santos”. O artigo procura iluminar a compreensão dessa afirmação, estudando o conceito de cidadania no contexto grego, romano e israelítico. No versículo, a comunidade cristã é proposta como um “espaço de cidadania alternativa”. Esse é também grande desafio para as comunidades atuais, sobretudo em relação aos imigrantes e refugiados.

 

 

Introdução

O autor da carta aos Efésios proclama que os cristãos são “concidadãos dos santos” (Ef 2,19) – não por mérito próprio, mas pela obra de reconciliação que Cristo Jesus realizou “no seu sangue”. Isso equivale a dizer que, na Igreja, todos gozam de igual dignidade; na prática, no contexto da sociedade efésia do final do século I d.C., significava apresentar a Igreja como um “espaço alternativo de cidadania” para pessoas que cidadãs não eram, mas imigrantes, escravos, ex-escravos, pobres, mulheres (I Parte). Na sociedade atual, a Igreja também é desafiada a continuar a ser “espaço de cidadania alternativa” para todos os que têm o reconhecimento de sua dignidade diminuído ou pisoteado; entre eles, aqueles que hoje são “estrangeiros e forasteiros”, imigrantes, refugiados (II Parte).

I Parte: “Já não sois estrangeiros e forasteiros, mas concidadãos dos santos”

Propomos a seguir um estudo prévio do modo como a “cidadania” era concebida no contexto grego, romano e israelítico do século I d.C., a fim de assentar as bases para melhor compreensão do alcance da metáfora citada em Ef 2,19.

1.1. Cidadania das “cidades gregas” (politeia)

Como se percebe, utilizamos a expressão “cidadania das ‘cidades gregas’”. De fato, no período clássico (V-IV a.C.), não havia um direito de cidadania válido para todas as cidades gregas, mas cada cidadão o era apenas da própria pólis. Paulo, em Jerusalém, espelha tal realidade, quando afirma: “Eu sou judeu, cidadão de Tarso, uma cidade importante da Cilícia” (At 21,39).

Para Aristóteles (1999, III, 1275a, 4), o cidadão é um sujeito político: aquele que participa da vida da pólis. Nem todos, porém, eram cidadãos da pólis. O simples fato de nascer em uma cidade não conferia esse direito. Aquele que era cidadão (polítēs) tinha o direito de participar das instituições em que as decisões eram tomadas (por exemplo, a “assembleia” [ekklēsía]). Tal modelo de cidadania somente podia ser atuado em cidades pequenas. A própria Atenas de Aristóteles (IV a.C.) não contava com mais de 25 mil habitantes.

Um início de flexibilização se deu pela necessidade de realizar alianças de caráter militar, unindo diversas cidades em ligas (koiná). Não obstante, mesmo assim o cidadão continuava como tal apenas na própria pólis. Com o período helenístico (Alexandre Magno) e, depois, com o domínio romano, diminuiu a necessidade de defender a própria pólis, o que deu espaço ao crescimento do chamado “evergetismo”: uma pessoa particularmente rica, ao beneficiar determinada pólis, recebia como recompensa o “título de cidadania”.

1.2. Cidadania romana (civitas)

Há uma diferença entre os conceitos grego e romano de cidadania. No modelo grego, o cidadão era aquele que participava das instituições da pólis; no modelo romano, era o concidadão de outros cidadãos (BENVENISTE, 1974, p. 272-280). No que se refere à civitas, a “cidadania”, no tempo da fundação de Roma (VIII a.C.), era unicamente para romanos. Todavia, com o advento do período imperial, surgiu a possibilidade da “dupla” ou “múltipla” cidadania. Na prática, a questão emergiu quando o império cresceu e expandiu-se para fora da Península Itálica, alcançando também o Oriente grego; aliás, a concessão da cidadania às elites foi um dos meios principais pelos quais o Império Romano se expandiu (GARNSEY, 2006, p. 135-136), fomentando a dominação, onde fosse possível, sem a necessidade de presença militar maciça.

1.3. Cidadania israelítica

Desde o fim do período dos asmoneus (135-63 a.C.), não se pode falar de cidadania israelítica territorial, pois em 63 a.C. a região passou para o domínio romano. Não obstante, em Ef 2,12 o autor diz que os gentios estavam excluídos da “cidadania de Israel”. Ele se refere a uma cidadania real ou metafórica?
O vocabulário da “cidadania” está concentrado, sobretudo, nos quatro livros dos Macabeus (dois deles apócrifos; cf. 4Mc 17,9) e se refere à conduta que deve permear aqueles que se inspiram na Lei de Moisés. Trata-se, portanto, de cidadania entendida como “modo de vida”
(COHEN, 1999,
p. 125). Assim, também os judeus da diáspora podiam viver segundo a “cidadania de Israel”. Ao invés, no que se refere à abertura dos judeus aos gentios, seja na Palestina, seja na diáspora, as Escrituras testemunham pontos de vista contrastantes, que oscilam entre a rejeição e a valorização (CARDELLINI, 1992, p. 140-154). No próprio NT, para além de Ef 2,11-22, há ecos dessa problemática, por exemplo, quando Pedro, em casa de Cornélio, afirma: “Vocês sabem que é proibido para um judeu relacionar-se com um estrangeiro ou entrar na casa dele” (At 10,28; cf. Gl 2,11-14)

1.4. Efésios 2,19: “concidadania dos santos”

O texto de Ef 2,11-22 está dividido em três unidades: o autor começa apresentando a “distância” (exclusão) dos gentios da religião de Israel (v. 11-13), a qual então é superada por Cristo Jesus em seu sangue (v. 14-18), com a consequência de uma nova condição, na Igreja, tanto para judeus como para gentios (v. 19-22). O caráter de conclusão dessa terceira unidade é evidenciado, já em seu início, pela conjunção “portanto”.

A unidade é rica em metáforas, de três âmbitos diferentes: sociopolítico, familiar e da construção civil (GRANADOS ROJAS, 2016, p. 97). Em Ef 2,19 encontramos o primeiro âmbito em três das quatro expressões, duas negativas e uma positiva: “Vocês já não são (1) estrangeiros e (2) forasteiros, mas (3) concidadãos dos santos”. Segundo as duas primeiras expressões, aqueles que em Ef 2,12 viviam na condição de excluídos da “cidadania de Israel” já não são “estrangeiros e forasteiros”. Tais termos, note-se, apresentam uma diferença básica: o xénos é o estrangeiro que está apenas de passagem, enquanto o pároikos é o estrangeiro/imigrante residente, mas sem direito de cidadania.

Logo em seguida, o “mas” introduz a expressão positiva: os membros da comunidade cristã são “concidadãos dos santos” (sympolîtai tōn hagíōn). Na pólis grega do século V a.C., o termo “concidadania” indicava os direitos comuns aos cidadãos da pólis. É nesse sentido que o substantivo é usado em Ef 2,19. Contudo, note-se que os cristãos não se tornaram concidadãosdos judeus ou dos cidadãos de Éfeso, mas “dos santos”.

Trebilco (2012, p. 122-163) demonstrou que, no NT, o conceito de “santidade” não tem influência grega, mas vem das Escrituras de Israel. Nestas, porém, o termo “santo” é referido sobretudo a seres celestes (cf. Jó 5,1). Na literatura entre o AT e o NT (cf. 1Enoc 100,5) cresce a referência a seres humanos, mas em contexto escatológico. O NT, ao invés, começa a utilizá-loem modo novo: “santos” são os santificados pela ação de Cristo Jesus, que, ressuscitando dos mortos, inaugurou os últimos tempos. A salvação deixou de estar apenas no horizonte futuro! Assim, os cristãos, começando pela Igreja de Jerusalém, passaram a utilizar a palavra “santo” com referência uns aos outros já no presente (cf. Ef 2,6).

Entretanto, é preciso aclarar a compreensão da identidade desses “santos”. Seriam os judeus? Os judeu-cristãos? Os seres celestes? Os cristãos já glorificados? Segundo nossa linha de argumentação, os “santos” são todos os membros da comunidade cristã, já no presente. Entre os seguidores de Jesus, de fato, por intermédio da sua cruz, já não há diferença de dignidade; todos são “um só homem novo” (Ef 2,15) e, portanto, “concidadãos” entre si, mesmo que a realidade efésia não os considere assim (SEGANFREDO, 2019, p. 289).

Concluindo a I Parte, é importante evidenciar que os seguidores de Jesus espalhados em Éfeso e região são um grupo pequeno e socialmente irrelevante. Assim, o anúncio da “cidadania alternativa” tem significado sobretudo para a própria comunidade. Não obstante, à medida que oscristãos tomarem consciência do alcance da obra de reconciliação “no sangue” de Cristo (Ef 2,13), poderão tornar-se “fermento” na construção de uma realidade social nova.

II Parte: imigração e cidadania no Brasil e na Igreja

Segundo dados de 2020 da Organização Internacional para as Migrações (OIM), a maioria das pessoas continuam vivendo nos países em que nasceram – apenas uma em cada trinta deixa seu país natal. Embora os números possam esconder a vida e as histórias dos imigrantes, os dados estatísticos são importantes para compreendermos as tendências emergentes e a evolução das variáveis ​​demográficas que trazem consigo as transformações sociais e econômicas mundiais. Assim, é possível compreender melhor as mudanças do mundo em que vivemos e poder planejar melhor o futuro.

As estimativas mais recentes indicam que, em 2020, havia no mundo aproximadamente 281 milhões de imigrantes, equivalentes a 3,6% da população mundial. Globalmente, o número de imigrantes aumentou nas últimas cinco décadas, e o total estimado de 2020 é superior aos dados de 1990 (128 milhões) e o triplo de 1970. As mesmas fontes destacam que, em 2020, o Brasil acolheu pouco mais de um milhão de imigrantes.

2.1. Imigração e cidadania no Brasil

A cidadania é comumente entendida como o conjunto de direitos e deveres das pessoas nos diferentes contextos sociais, locais e globais. E quanto aos imigrantes, que, em princípio, não são cidadãos brasileiros? Nosso país teve recentemente um novo marco legal (Lei 16.445/2017), com a aprovação de uma nova lei migratória que superou o tão defasado estatuto do estrangeiro, da época da ditadura militar. A imigração tomou proporções inusitadas também no Brasil e tem sido foco de acentuada politização, marcada pela busca do difícil equilíbrio entre a defesa das próprias fronteiras e dos cidadãos(ãs) e o dever ético-moral de acolhida e proteção dos imigrantes. A realidade é que não existe um país sem fronteiras e não existe uma política de fronteiras incondicionalmente abertas. Existem, em vez disso, diversas formas de um país defender suas fronteiras e garantir a soberania nacional, sem deixar de acolher os imigrantes. Infelizmente, está sempre presente a tentação totalitária, xenofóbica, militarizante e de fechamento das fronteiras. Essas são formas graves e desumanas que desrespeitam os direitos humanos (VARESE, 2007, p. 9-10).

A atual política migratória brasileira se fundamenta nas convenções e tratados já celebrados pelo Brasil, como a Declaração de Direitos Humanos e a própria Constituição Federal de 1988. A lei vigente desde 2017 foi elaborada na perspectiva dos direitos humanos e trouxe importantes avanços, ao considerar a pessoa migrante como sujeito de direitos, com destaque para:

• não criminalização da migração;

impossibilidade de prisão por razões migratórias;

acolhida humanitária e reunião familiar como princípios;

universalização do conceito de autorização de residência, desvinculando-o dos modos de
entrada;

facilidade para emissão de documentos para migrantes em situação de vulnerabilidade;

garantia de acesso pleno a direitos, sem discriminação em razão da condição migratória;

proibição de deportação e expulsão coletivas;

garantia de ampla defesa em casos de deportação, repatriação e expulsão de migrantes.

É importante estarmos cientes dessa dinâmica migratória; muitos não sabem, por exemplo, que a ausência de documentos não é obstáculo para o acesso aos serviços públicos, como assistência social, saúde, educação, entre outros. No Brasil, imigrar não é crime! A legislação brasileira não criminaliza a imigração em situação irregular, tampouco os meios de entrada no país. Ninguém pode ser preso por falta de documentos ou por quaisquer razões migratórias.

2.2. A Igreja e a promoção da cidadania dos imigrantes

Apesar de notarmos avanços na legislação brasileira no tocante à imigração, sabemos que, na prática, os dramas vividos pelos imigrantes e refugiados são imensos; não é incomum, infelizmente, que se encontrem em situações nas quais sua dignidade é diminuída ou pisoteada. Como a Igreja tem se posicionado nesse âmbito? O cuidado pastoral com os imigrantes não é recente. Há um serviço já consolidado às pessoas em mobilidade, sobretudo a partir do século XIX, com base em importantes atuações, como a do bispo de Piacenza, São João Batista Scalabrini, e da Constituição Apostólica Exsul Familia (Pio XII), de 1952 (carta magna da Pastoral dos Migrantes). Desde então, a Igreja procura intervir de diversas maneiras, de acordo com cada realidade apresentada. A Santa Sé também se estruturou nesse sentido e conta, atualmente, com a Seção Migrantes e Refugiados do Dicastério para o Desenvolvimento Humano Integral, que apoia a Igreja, em todos os níveis, nas ações em prol das pessoas em mobilidade.

As conferências episcopais também têm criado meios para responder a essa dinâmica pastoral; não é diferente com a CNBB, por meio do Serviço Pastoral dos Migrantes (SPM). Além disso, existem congregações religiosas que trazem como carisma a atuação junto a imigrantes e refugiados, como é o caso da Congregação dos(as) Missionários(as) Scalabrinianos(as) e da Ordem dos Jesuítas, entre outras, que promovem a possibilidade da celebração da fé segundo a própria língua e cultura, oferecem centros de acolhida e assistência (“casa do migrante”), ajuda humanitária, regularização, ensino da língua portuguesa e acesso ao mercado de trabalho. Por fim, e não menos importante, há diversas associações étnicas que os próprios imigrantes têm fundado, “espaços de cidadania alternativa”, onde eles exercem o protagonismo, celebram a própria fé e cultura.

Na Igreja atual, assim como nas comunidades efésias do século I a.C., persiste o desafio de ser “espaço de cidadania alternativa”, enquanto se procura ser fermento para que a dignidade de cada ser humano seja reconhecida e respeitada pela sociedade civil. Não se trata, porém, de uma decisão que brota primeiramente da própria comunidade eclesial. A fonte é e permanece sendo a obra de reconciliação realizada por Cristo Jesus na cruz!

Referências bibliográficas

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CARDELLINI, Innocenzo. Stranieri ed “emigrati-residenti” in una sintesi di teologia storico-biblica. Rivista Biblica,
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COHEN, Shaye J. D. The beginnings of Jewishness: boundaries, varieties, uncertainties. Berkeley: University of
California Press, 1999.
GARNSEY, Peter. Roman citizenship and Roman law in the Late Empire. In: SWAIN, Simon; EDWARDS, Mark (ed.).
Approaching Late Antiquity: the transformation from Early to Late Empire. New York: Oxford University Press,
2006. p. 133-155.
GRANADOS ROJAS, Juan Manuel. La teología de la reconciliación en las cartas de San Pablo. Estella: Verbo Divino,
2016.
ORGANIZACIÓN INTERNACIONAL PARA LAS MIGRACIONES. Datos e investigación. Disponível em:
https://www.iom.int/es/datos-e-investigacion. Acesso em: 23 mar. 2023.
SEGANFREDO, Antônio César. Efesini 2,19: la concittadinanza dei santi come alternativa alla politeia greca e alla
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TREBILCO, Paul R. Self-designations and group identity in the New Testament. New York: Cambridge University
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VARESE, Luis. O futuro da cidadania, do refúgio e da migração em debate. Caderno de Debates Refúgio,
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Acesso em: 23 mar. 2023.

Antônio César Seganfredo* e Wellington Barros**

*Pe. Antônio César Seganfredo, missionário scalabriniano, é doutor em Teologia Bíblica pela Pontifícia
Universidade São Tomás de Aquino (Roma), com especialização pela Escola Bíblica e Arqueológica Francesa
de Jerusalém. É professor de Novo Testamento e diretor administrativo do Itesp (Instituto Teológico São Paulo),
bem como pároco da paróquia São João Batista (no bairro do Ipiranga, em São Paulo-SP). E-mail:
[email protected]
**Wellington Barros, leigo, é doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Urbaniana (Roma) e em
Ciência da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). É professor no Itesp e
colaborador das Irmãs Missionárias Scalabrinianas. E-mail: [email protected]