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Publicado em março-abril de 2016 - ano 57 - número 308

O papado reformável

Por João Décio Passos

O Papa Francisco é um fruto maduro da primavera conciliar. Sua vida eclesial sintetiza os propósitos conciliares. Vindo do “fim do mundo”, distante dos mecanismos de autopreservação próprios das instituições tradicionais e das grandes burocracias, apresenta-se livre para fazer a “reforma inadiável” da Igreja, dentre as quais a reforma do papado.

 Uma reforma do papado está em curso e se apresenta também como um projeto do atual pontificado. De fato, as posturas do Papa Francisco permitem dizer que o papado já não é mais o mesmo; está modificado simbólica e institucionalmente. Por certo, no interior da aguardada reforma da Cúria Romana o papado passará por reformas diretas ou indiretas, uma vez que está intimamente ligada a essa estrutura, ao menos do ponto de vista do seu exercício operacional. Mas, até bem pouco, falar em reforma do papado tratava-se de algo quase proibido. Desnecessária ou incômoda, uma reforma do papado não passava de “bravata” de teólogos avançados, sem qualquer efeito concreto nos poderes instituídos da Igreja, que seguiam seu curso rotineiro sem maiores crises. A renúncia de Bento XVI, com suas causas já conhecidas, e a escolha do novo papa trouxeram à tona a necessidade de uma reforma da Cúria Romana, e mesmo da Igreja como um todo. O Papa Francisco a verbalizou de modo bastante espontâneo desde a sua posse em março de 2013 e, de modo oficial, na sua Exortação programática Evangelii gaudium.

Uma reforma do papado toca obviamente no centro visível da Igreja católica, no cerne da eclesiologia católica, que entende a Igreja de modo indissociável do papa, e na organização institucional dela. Trata-se, por essas razões, de uma reforma de grande alcance e de grande complexidade para a tradição e para o governo da Igreja, o que provoca reações diversas, seja dos que anseiam por um papa desvestido de poder politico e próximo do povo, seja para os que enxergam no Pontífice um poder sagrado quase transcendente, que se expressa politicamente na autoridade absoluta e esteticamente no triunfalismo e na pompa ritualística.

Qualquer reforma que venha acontecer ou que, em certa medida, já esteja acontecendo não somente se sustentará pela teologia do serviço – concretamente do serviço do testemunho e da unidade –, mas também pelo princípio da colegialidade, retomado pelo Vaticano II. As posturas de Francisco já expressam, de fato, esses dois fundamentos. Porém, um governo colegiado, que supere as várias formas de centralismo congeladas no exercício do papado, ainda aguarda suas expressões estruturais. Francisco tem, de fato, acolhido os temas não concluídos ou evitados pelo Concílio, dentre os quais a reforma da Cúria. É verdade que, para os defensores de uma eclesiologia pré-conciliar, centrada na figura do Papa que foi retomada nas décadas posteriores ao Concílio Vaticano II, a reforma do papado se apresenta como um terrível paradoxo: uma vez que a autoridade suprema está disposta a fazer a reforma, restaria unicamente aos bispos aderir a ela, sob pena de praticarem a infidelidade explícita ou o cisma disfarçado. O fato é que hoje o papado se apresenta dentro e fora da Igreja como reformável. Eis o ponto zero do que poderá acontecer de mudança no exercício e na concepção do ministério petrino exercido pelo bispo de Roma.

  1. O papado irreformável

Para certas visões muito assentadas sobre o ministério papal, falar em reforma do papado pode ser uma heresia que atenta contra a Igreja, senão contra o próprio Cristo. Seria modificar aquilo que Cristo instituiu para a sua Igreja e para ela desejou. Essa teologia do papado edifica-se sobre a ligação direta da compreensão, da prática e da figura atuais do papa com as referências bíblicas a Pedro, sem qualquer recurso à história do papado e de suas sucessivas compreensões e construções. Essa retrojeção é recorrente nas instituições religiosas, na medida em que se apresentam como portadoras fiéis dos princípios fundadores e, por conseguinte, de uma identidade permanente e estável, que não sofreu nem sofrerá mudanças. Tratar-se-ia, no caso, de um fundamentalismo papal, postura que dispensa o exame dos textos bíblicos e do processo histórico, e se rege por uma fé ingênua, fundada mais na imaginação que na verificação dos dados. A fé exige, ao contrário, que se busquem, por meio da razão, os seus modos de expressão. Há, por certo, nessa postura um ingrediente psicológico muito confortável ao relativismo reinante na sociedade atual: conforto ao desamparo individual que clama por autoridade, por segurança perante as dúvidas e por símbolos identitários definidos, atitudes que salvam das dispersões e dispensam a autonomia da escolha pessoal. As quebras de protocolo por parte do Papa Francisco foram vistas por muitos como dessacralização do papado. O termo dessacralização é emblemático: indica uma concepção de papado ligada a um modelo histórico monárquico, quando o sagrado, em oposição ao profano, estruturava a vida política e religiosa e distinguia ontologicamente as pessoas sagradas das demais, profanas. Posturas como essas afirmam que o papado é irreformável, embora estejam sempre fixadas em determinado modelo teológico, datado no tempo e no espaço.

Como se sabe, a partir do Concílio Vaticano I uma concepção e, ao mesmo tempo, a prática do papado adquiriram total centralidade na Igreja. Indo além do que, de fato, definiu o Concílio, o papa passa a ser o centro da Igreja e uma espécie de bispo universal, sem dizer da prerrogativa da infalibilidade que, na prática, se estende cada vez mais para todos os pronunciamentos papais. A recepção do Vaticano I cristalizou essa visão eclesiológica de uma Igreja do papa, e não de um papa da Igreja, e, por conseguinte, de um poder central que coordena todos os aspectos da vida eclesial e dispensa e rejeita as identidades eclesiais locais. Para essa visão, a decisão e a orientação do papa constituiria a palavra única e definitiva que dispensaria até mesmo a convocação de um Concílio. O que no passado era atribuição dos Concílios seria, desde o Vaticano I, prerrogativa do papa. Nessa visão, não caberia reforma no papado. E, ao que parece, nem mesmo um papa poderia reformar o papado, apenas executar a sua missão segundo a doutrina e a função já estabelecidas. Apesar das evidências históricas da construção do papado e da eclesiologia conciliar, essa visão ainda persiste dentro de setores da Igreja católica. A ilusão de um poder absoluto e imutável oferece, por certo, seguranças à sociedade pluralista e mesmo para uma Igreja feita de diversidades: o papa personificaria uma imagem sólida para os tempos líquidos e expressaria uma verdade certa para a cultura relativista. Qualquer reforma viria a ser um risco à estabilidade e provocaria insegurança.

O Vaticano II depara-se com essa eclesiologia “papocêntrica” e com ela travará uma disputa, na busca de uma Igreja de comunhão, traduzida em seu governo pelo princípio da colegialidade. No entanto, as orientações conciliares não foram traduzidas efetivamente em um modo de governo da Igreja no qual o papa exercesse um governo colegiado, na condição de primus iter pares (cf. LEGRAND, 2013, p. 71-86). Não somente o Vaticano II, mas também o papa João Paulo II e, de modo claro e insistente, Francisco falam em reforma do papado, sem dizer do testemunho da própria história desse ministério, que tem sua fonte de sentido no apóstolo Pedro. É o que se verá nos próximos itens. 

  1. A palavra da história

O papado é uma construção histórica indissociável da história do Ocidente. Do ponto de vista institucional e teológico, encaixa-se no processo de racionalização que constrói as mentalidades e as práticas políticas ocidentais no longo percurso temporal que se arranca do encontro das tradições greco-latinas e judaico-cristãs até a chamada modernidade (cf. NEMO, 2005, p. 59-82). Esse dado histórico-social revela em seu bojo as dinâmicas propriamente cristãs: as sucessivas leituras do carisma cristão, feitas nos diversos tempos e espaços e que nesses contextos vão construindo/transmitindo a tradição. O cristianismo compôs a sua história como desdobramento de suas fontes e assim edificou-se em seus modos de expressão e de organização. Como sistema religioso baseado na fé na revelação de Deus na história, tem suas peculiaridades no tocante ao processo de racionalização. Antes de tudo, há que preservar algo de original acolhido como oferecido pelo próprio Deus em uma dupla dinâmica: a) como um tempo contínuo, na medida em que a revelação de Deus é salvação sempre presente e se realiza como graça acessível pela fé; b) como um tempo primordial que se torna regra para o tempo presente e, portanto, se distingue desse e se institui em tradições canônicas. A consciência de historicidade combina com a experiência de salvação em cada tempo e lugar e cria a experiência da transmissão do passado no presente, da recepção do carisma no presente e, portanto, de sucessivas construções históricas que afirmam ser a transmissão fiel do passado. O cristianismo racionaliza-se – institucionaliza seus padrões doutrinais, rituais e organizacionais – como movimento de fidelidade, transmissão e concretização de seu carisma fundante. É esse elo que rege sua evolução histórica e legitima suas ações no presente. As igrejas são o resultado desse processo histórico. O papado é, por sua vez, o resultado ocidental de organização dos papéis de liderança cristã, em nome de um carisma preservado que se liga ao próprio Jesus Cristo, que delega aos seus apóstolos uma missão e dentre esses, uma missão própria a Pedro.

Nesse sentido, o papado funda-se no carisma petrino, segundo as narrativas dos Evangelhos. A Pedro foi designada a função de dirigir a Igreja e confirmar os irmãos na fé, Pedro aparece exercendo essa função nos Evangelhos sinóticos (Mt 16,18-19, Lc 22,32), em João (21,15-17) e nos Atos dos Apóstolos (2,14-36). O papado é uma institucionalização desse carisma e, em nome dele, foi sendo configurado entre todas as controvérsias com o Oriente e, de modo frontal, com a Reforma Protestante. A história das controvérsias é longa e complexa, impossível de ser tocada neste pequeno texto. O fato é que, em nome de um carisma original, o papado se fez e adquiriu formas variadas no decorrer da história. A primazia do bispo de Roma é antiga e era exercida em conjunto com outros primazes já nos primeiros séculos. A ligação do bispo de Roma com Pedro é igualmente antiga e o fundamento primeiro do papado vem dela. Vale lembrar que a noção de bispo já está inscrita nas construções históricas posteriores aos tempos apostólicos. Aplicá-la a Pedro é, evidentemente, um anacronismo. Mas, muito cedo o bispo de Roma não somente exercia sua primazia no Ocidente, como também esteve associado à cátedra de Pedro e à função primacial em relação às demais Igrejas, quando solicitada por alguma razão eclesial da época (Cf. CONGAR, 1997, p. 11-32).

Com efeito, a volta ao carisma petrino para fundamentar a longa construção do papado, com todos os seus aparatos e atribuições, é um movimento comum no cristianismo: os textos que se tornaram canônicos foram assim considerados por serem autênticos, diretamente ligados aos apóstolos; os símbolos de fé dos primeiros Concílios foram promulgados como genuínas sínteses da tradição dos apóstolos; os patriarcas eram entendidos como ligados aos apóstolos. E vale observar que a Reforma Protestante entendeu ser um retorno aos fundamentos bíblicos mais originais, como expressão direta do carisma da salvação acolhido então pela fé como graça presente e operante.

É sobre esse carisma que o papado se assenta e se legitima como instituição. Falar de reforma do papado é, portanto, assumir suas configurações como construções e reconstruções permanentes, como consciência de sua fidelidade ao carisma original e como modo mais adequado de vivenciá-lo e comunicá-lo em cada tempo e lugar. O carisma petrino permanece, o papado muda.

  1. A palavra do Concílio

O papado foi uma das questões disputadas mais difíceis do Vaticano II. Como recepção do Vaticano I, em um novo contexto, o segundo Concílio, teve que conciliar duas cosmovisões políticas e eclesiais: a de uma Igreja definida pela sua hierarquia e de uma Igreja definida como comunhão do conjunto dos batizados. O primeiro modelo trazia no seu topo o papa, desde o qual se definiam todos os rumos da Igreja, sendo os bispos uma espécie de coadjutores do bispo universal. Aliás, esse modelo entendia ser desnecessário o próprio Concílio, tendo em vista a centralidade eclesial absoluta do governo papal e que trazia no seu núcleo a própria infalibilidade papal. Uma concepção maximizada da centralidade do papa na Igreja. O segundo modelo, gestado nas décadas anteriores ao Concílio Vaticano II e com raízes bíblicas e na tradição antiga, entendia o papado como uma função exercida na colegialidade episcopal: não há papa sem os demais bispos e é somente nessa comunhão que o papado é exercido e somente assim se pode falar de primado do bispo de Roma.

Esses dois modos de pensar o papado se confrontaram nas sessões conciliares e tiveram que produzir uma orientação conciliada que fosse capaz de preservar a teologia do papado em sua essência, conforme havia formulado o Concílio anterior, e resgatar a colegialidade episcopal como constitutiva da herança apostólica e do governo da Igreja universal. A teologia da colegialidade ganhou evidência e foi formulada como princípio fundamental que possibilitou a colocação do primado petrino do bispo de Roma e da autoridade apostólica de todos os bispos como práticas complementares de um único corpo eclesial. As dimensões universal e local da Igreja, a unidade e a diversidade se completam, então, de modo circular no exercício concreto de um consenso de fé e, em termos práticos, em modos de organização dos governos eclesiais.

Contudo, se em termos teológicos primado e colegialidade constituem, desde então, dimensões de um mesmo exercício da tradição apostólica, em termos organizacionais o papado deveria passar por uma revisão de forma a superar a práxis e a concepção anteriores. Os padres conciliares viam a necessidade de organizar um governo colegiado da Igreja sob a condução do papa, o que exigia, evidentemente, repensar a estrutura e o funcionamento da Cúria Romana que há muito se estruturara como uma espécie de terceiro poder estabelecido entre o papa e os bispos. Para tanto, seria urgente uma reforma da Cúria e de revisão das funções dos núncios e das Conferências Episcopais (Cf. FAGGIOLI, 2013, p. 24-34). A colegialidade deveria ser traduzida em novas formas de exercício do poder central em relação direta com os poderes locais dos bispos. A Cúria Romana reagiu de modo estridente às possibilidades de uma reforma pensada pelo Concílio. Paulo VI chama para si essa tarefa, garantindo que não haveria uma reforma estrutural (Cf. Kloppenburg, 1966, p. 447). De fato, a reforma por ele empreendida foi parcial e superficial. O Concílio resgatou a prática dos Sínodos como um modo de concretizar a colegialidade. Contudo, as regras e as práticas dos Sínodos continuaram reproduzindo a centralidade do papa e da Cúria Romana: tornou-se uma assembleia meramente consultiva, que pode ou não ser acolhida pelo papa. O Concílio não chegou nem à Cúria, nem ao exercício do papado.

  1. A palavra de João Paulo II

A reforma do papado permaneceu como uma questão deixada sob cinzas pelo Concílio. Era natural que tivesse havido uma mudança efetiva no exercício do primado expressando uma comunhão efetiva com os episcopados locais. Seria, evidentemente, uma nova construção do papado em nome da fidelidade ao carisma petrino a ser mantido vivo e operante nesse novo momento histórico com o qual se esforçou o Concílio para fazer o aggiornamento. Do ponto de vista institucional, o papado e a Cúria romana permaneceram “de fora” do processo de recepção conciliar, com suas estruturas e práticas pré-conciliares, embora inseridos no mesmo rio que corria desde a mesma fonte renovadora de toda a Igreja.

A reforma do papado constitui, na verdade, um dos pontos da recepção do Concílio Vaticano II, inserida numa cadeia cujos primeiros elos foram tecidos dentro do evento conciliar e formalizados pela Constituição Lumen gentium e pelo Decreto Christus dominus. O eco mais explícito dessa chamada à renovação se deu com o Papa João Paulo II, quando pensou o exercício do papado no contexto da unidade dos cristãos.[1] O contexto em que a temática emerge como necessária é revelador: a partir de fora, e não de dentro. O Decreto Unitatis Redintegratio já havia afirmado a importância ecumênica de uma reforma perene da Igreja (cf. 6). É na medida em que a Igreja olha para outros modos de transmitir a fé e de organizar seus serviços que certas compreensões e práticas do papado tornam-se impeditivas da unidade e clamam por modificações. A Encíclica Ut unum sint (Para que todos sejam um), de 1995, tira uma das últimas consequências das renovações conciliares ao apresentar o ministério do bispo de Roma como sinal da unidade que deve preservar a sua essência, porém abrindo-se para a atualidade. Diz o papa no número 95:

Estou convicto de ter a este propósito uma responsabilidade particular, sobretudo quando constato a aspiração ecumênica da maior parte das comunidades cristãs, e quando ouço a solicitação que me é dirigida para encontrar uma forma de exercício do primado que, sem renunciar de modo algum ao que é essencial da sua missão, se abra a uma situação nova.

E faz uma convocação inédita:

O Espírito Santo nos dê a sua luz, e ilumine todos os pastores e os teólogos das nossas Igrejas, para que possamos procurar, evidentemente juntos, as formas mediante as quais este ministério possa realizar um serviço de amor, reconhecido por uns e por outros.

 A chamada para se repensar o papado é dirigida a todos, incluindo os teólogos de outras Igrejas. O olhar a Igreja a partir de fora foi a postura constitutiva do Vaticano II, postura que regeu as discussões e as deliberações, e fez a Igreja repensar a si mesma na medida em que refletia sobre o mundo moderno e sobre as outras Igrejas e religiões. Essa postura é retomada por João Paulo II e mostra mais uma vez a possibilidade de abrir as janelas da Igreja para poder renovar-se. As janelas do papado foram abertas para a renovação. A chamada para tal tarefa urgente permanece viva no Magistério papal.

  1. A palavra de Francisco

O Papa Francisco é o fruto maduro do Vaticano II. Encarna em seus gestos e palavras a renovação proposta pelo grande Concílio a partir do que vivenciou como recepção na América Latina. Traz para o papado a experiência difícil da colegialidade vivenciada a partir da periferia da Igreja, como também a prática concreta da Igreja dos pobres, do protagonismo eclesial do leigo. A eclesiologia do povo de Deus, assumida sem ponderações, dá o tom de uma reforma inadiável da Igreja. A reforma do papado emerge como pauta natural de uma reforma geral da Igreja. A Igreja missionária está sempre em saída para o mundo e deve repensar a si mesma por fidelidade ao evangelho, para colocar-se em diálogo com os que estão fora e para servir aos mais necessitados. “Sonho com uma opção missionária capaz de transformar tudo, para que os costumes, os estilo, os horários, a linguagem e toda a estrutura eclesial se tornem um canal proporcionado mais à evangelização do mundo atual  que à autopreservação” (EG 27). Após nominar a paróquia, as comunidades e movimentos, as dioceses e os bispos como instâncias a serem renovadas, inclui o papado. Retoma aquela chamada de João Paulo II à renovação do papado e reconhece que, de fato, “pouco temos avançado nesse sentido”. Relaciona a reforma do papado à reforma das estruturas centrais da Igreja universal e ao protagonismo das Conferências Episcopais. Reconhece que as indicações do Vaticano II a respeito das conferências como exercício de colegialidade não se concretizaram e conclui dizendo que “uma centralização excessiva, em vez de ajudar, complica a vida da Igreja e a sua dinâmica missionária” (EG 31).

A chamada franciscana está lançada e permanece no horizonte da comunidade eclesial e da própria sociedade como possibilidade e, até mesmo, como urgência. O papado se encontra em estado permanente de reforma, com as atitudes surpreendentes de Francisco e com decisões pontuais que vão sendo anunciadas. A renúncia do papa, segundo ele próprio definiu, já está institucionalizada com a saída de Bento XVI. A colegialidade está sendo exercida de modo mais efetivo com a Comissão dos Cardeais encarregados de elaborar o Projeto de reforma da Igreja. Os documentos promulgados revelam uma conexão direta do magistério papal com os magistérios locais. O Motu Proprio Mitis Iudex Dominus Iesus de 15 de agosto de 2015, embasado em uma teologia da Igreja particular e do bispo local, reforma de atacado vários aspectos da vida eclesial: faz a primeira reforma estrutural de uma prática secular, descentraliza as decisões referentes aos processos de nulidade matrimonial, desloca a decisão do âmbito estritamente jurídico para o pastoral e legisla de modo mais real com os problemas urgentes da vida matrimonial atual (cf. w2.vatican.va). Essa reforma pontual poderá ser indicativa para outras que poderão vir por meio da iniciativa pessoal do papa.

Considerações finais

A questão da reforma do papado não causa ou não deveria causar mais temores, como até bem pouco. As posturas simples e francas de Francisco quebraram, por si mesmas, o tabu a respeito do assunto e descriminalizaram os debates. Uma reforma do papado está posta como necessária: como questão pública e como tarefa eclesial. A história é mestra; mostra que os modos de conceber o primado foram sendo construídos no decorrer da história e assumindo diferentes formatos em função dos diversos contextos. Contudo, valeria perguntar: A quem interessaria uma reforma do papado? Em nome de que ela deveria ser realizada? Sem dúvida, uma reforma se legitima unicamente em nome da fidelidade da Igreja às suas fontes e, por conseguinte, a sua missão primordial. Francisco fala do “coração do evangelho” como a referência da vida da Igreja. As estruturas instituídas da Igreja – mesmo com suas teologias bem arquitetadas – não querem e, por certo, nem necessitam de reformas. Ao contrário, veem nela uma ameaça. Por conseguinte, os sujeitos institucionais, ou seja, aqueles que estão inseridos de modo funcional e burocrático na estrutura organizacional da Igreja, serão defensores da continuidade em nome da tradição e da estabilidade e verão as reformas como perigo; buscarão, ainda, os meios políticos de evitá-la, de minimizá-la ou de traduzi-la. As normas, os mecanismos e as teologias institucionais existem para preservar a instituição, jamais para modificá-la.

 Somente uma leitura de fé da Igreja pode legitimar uma reforma do papado, embora ela possa estar bem adequada aos modos modernos de exercer o poder de modo mais participativo e descentralizado. A tomada de consciência eclesial do contexto histórico é uma chamada feita pelo Concílio Vaticano II. Os cristãos precisam discernir os sinais dos tempos em cada época e lugar para melhor exercer sua missão (cf. GS 4 e 11). Os tempos atuais – a sociedade e a Igreja – levantam mais uma vez a importância da reforma da Igreja. A reforma do papado deve ser vista a partir da fé: como um sopro do Espírito que impulsiona a comunidade eclesial a refazer-se em meio à crise em que se encontra. Eis o recado atual de Francisco sobre uma reforma inadiável da Igreja (cf. EG 27). O papado pode ser renovado para que a Igreja continue sua marcha na história, para que o ministério petrino seja exercido de modo mais coerente com as fontes evangélicas, com a longa tradição cristã, com a eclesiologia conciliar e em sintonia com as aspirações do mundo atual.

Bibliografia

CONGAR, Yves. Igreja e papado. São Paulo: Loyola, 1997.

DOCUMENTOS DO CONCÍLIO ECUMÊNICO VATICANO II. São Paulo: Paulus, 1997.

Faggioli, Masssimo. Reforma da Cúria no Vaticano II e depois do Vaticano II. Concilium 353 (2013/5). Petrópolis: Vozes, 2013.

FRANCISCO. Exortação Evangelii gaudium. São Paulo: Paulinas, 2013.

_______. Carta Apostólica Mitis Iudex Dominus Iesus. <http://w2.vatican.va/content/francesco/it/motu_proprio/documents/papa-francesco-motu-proprio_20150815_mitis-iudex-dominus-iesus.html>.

JOÃO PAULO II. Encíclica Ut unum sint. <http://w2.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/encyclicals.index.html>.

Kloppenburg, Boaventura. Concílio Vaticano II, vol. V. Petrópolis: Vozes, 1966.

LEGRAND, Hervé. O primado Romano, a comunhão entre as Igrejas e a comunhão entre os bispos. Concilium 353 (2013/5). Petrópolis: Vozes, 2013.

NEMO, Philippe. O que é o Ocidente? São Paulo: Martins, 2005.

QUINN, John R. Reforma do papado: indispensável para a unidade cristã. Aparecida: Santuário, 2002.

WEBER, Max. Economía y sociedade. Mexico: Fondo de Cultura Económica, 1987.

[1] Uma reflexão precisa e profética sobre essa convocação foi feita pelo arcebispo de S. Francisco (EUA), D. John R. Quinn. Seu livro é uma leitura obrigatória e atualíssima sobre o assunto. Cf. Reforma do papado: indispensável para a unidade cristã. Aparecida: Santuário, 2002.

João Décio Passos

Doutor em Ciências Sociais e livre docente em teologia. Professor do Departamento de Ciência da Religião da PUC-SP e do Instituto São Paulo de Estudos Superiores. É autor de diversos livros, dentre os quais Concílio Vaticano II – Reflexões sobre um carisma em curso (Paulus). Email: [email protected].