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Publicado em número 189 - (pp. 19-24)

Enfoques antropológico-cristãos do pecado

Por Prof. Roque Frangiotti

1. O homem no centro

Há milênios que o ser humano vem sendo estudado. Do homem já foi dito praticamente tudo: um ser religioso, sapiens, erectus, econômico, instintivo, angustiado, utópico, problemático, cultural, social e político. Desde o empenho socrático em torno do “conhece-te a ti mesmo”, rompendo com a preocupação naturalista dos filósofos precedentes, até os estruturalistas atuais — passando pelos idealistas, aristotelistas, tomistas, evolucionistas, marxistas, existencialistas, espiritualistas —, o homem esteve sempre no centro das preocupações. Para o evolucionista inglês, T. H. Huxley, “a interrogação de todas as interrogações para a humanidade — o problema que subjaz a todos os outros e mais do que qualquer outro suscita o nosso interesse — é a determinação do lugar que o homem ocupa na natureza e das espécies; quais são os limites do nosso poder sobre a natureza e do poder da natureza sobre nós; qual é o fim para o qual caminhamos; esses são os problemas que se deparam novamente e com imutável interesse a cada homem que vem ao mundo”[1]. O fenomenólogo Max Scheler expressa o mesmo pensamento: “Num certo sentido todos os problemas fundamentais da filosofia podem reconduzir-se à questão seguinte: o que é o homem e que lugar e posição metafísica ele ocupa dentro da totalidade do ser, do mundo, de Deus”. Por isso, “se há um problema filosófico cuja solução é requerida com urgência pela nossa época, este problema é o da antropologia filosófica. Entendo por isso uma ciência fundamental acerca da essência e da estrutura eidética do homem; da sua relação com os reinos da natureza (minerais, plantas e animais) e com o princípio de todas as coisas; da sua origem essencial metafísica e ao seu início físico, psíquico e espiritual no mundo; das forças e potências que agem sobre ele e aquelas sobre as quais ele age; das direções e das leis fundamentais do seu desenvolvimento biológico, psíquico, espiritual e social, consideradas nas suas possibilidades e realidades essenciais. Os problemas da relação entre alma e corpo (entre psíquico e físico) e a relação entre o espírito e a vida estão compreendidos em tal antropologia, única a dar um válido fundamento de natureza filosófica e, juntamente, finalidades determinadas e seguras à pesquisa de todas as ciências que têm por objeto o homem: ciências naturais e médicas, pré-história, etnologia, ciências históricas e sociais, psicologia normal e evolutiva, caracteriologia”[2]. Autor de uma das mais influentes análises do homem, M. Heidegger, diz, sobre a complexidade do problema do homem, que “nenhuma época teve noções tão variadas e numerosas sobre o homem como a atual. Nenhuma época conseguiu, como a nossa, apresentar o seu conhecimento acerca do homem de um modo tão eficaz e fascinante, nem comunicá-lo de um modo tão fácil e rápido. Mas também é verdade que nenhuma época soube menos que a nossa o que é o homem. Nunca o homem assumiu um aspecto tão problemático como atualmente”[3]. Na opinião do papa João Paulo II: “a nossa é, sem dúvida, a época em que mais se escreveu e falou sobre o homem, a época dos humanismos e do antropocentrismo sem embargo, paradoxalmente, é também a época das mais fundas angústias do homem a respeito de sua identidade e de seu destino, a época do rebaixamento do homem em níveis insuspeitados, época de valores humanos conculcados como jamais o foram antes”[4].

 

2. A morte do homem

De fato, depois das humilhações impostas por Copérnico e Darwin, Freud infligiu ao “homem” sua terceira grande humilhação. O homem é um ser agitado, vivido e habitado por um inconsciente que o percorre, e que ele não entende. O sujeito e a consciência não estão mais no centro do mundo do homem. A consciência é “deslocada” e o sujeito é “descentrado”. Há outro centro que fala e estrutura a consciência. O inconsciente é a verdadeira voz do ser humano, que é preciso saber escutar, é a verdadeira linguagem da humanidade. O homem não é senhor de sua história. Não age, mas “se deixa agir” por forças estruturantes inconscientes. Assim, para Foucault, o homem está por desaparecer. Em “As palavras e as coisas”, diz que o homem é uma invenção que a arqueologia do nosso pensamento não tem dificuldade em atribuir a, uma época recente, pois, “antes do fim do século XVIII o homem não existia, diversamente da força vital, da fecundidade do trabalho, e, talvez, hoje, não tenha dificuldade em declarar próximo o seu fim”. Mais do que a ausência ou morte de Deus, proclama-se o fim do homem. O homem está por desaparecer. Segundo Lévi-Strauss: “No início do mundo o homem não existia — e não existirá também no fim”. Por isso, fala-se hoje, em linguagem pós-moderna, da cultura do niilismo. Seria este efeito tardio de uma antropologia pessimista, centrada no pecado, na miséria, na caducidade do homem?

 

3. O pessimismo grego

Entre os gregos, era convicção comum conceber o homem como um ser a meio caminho entre o mundo divino e o terreno, um ser no qual ambos tinham um ponto de convergência. Tal concepção encontrou seu fundamento na antropologia platônica. De fato, nela o homem é um composto de elementos provindos de dois mundos. Um elemento espiritual, princípio racional, incorruptível, divino, inteligente — a alma. Outro terreno, princípio de corrupção, sensitivo, provindo da esfera material — o corpo (sôma). Resultado de elementos assim tão diversos, o homem vivia em contínuo conflito interior entre os anseios da alma e as paixões da carne. Conflito que no plano ético se traduzia numa luta permanente entre o bem e o mal. A salvação consistia, portanto, na libertação da alma dos laços da carne. A morte era entendida como obtenção de tal meta. Nela, o corpo se dissolvia e a alma voltava àquele mundo superior, divino, ao qual pertencia.

O pessimismo de Platão se localiza particularmente em relação ao corpo, isto é, ao homem enquanto existente neste mundo de baixo. O corpo não tem nenhum valor. Pelo contrário, é elemento de perdição, de atraso. É a prisão da alma ou seu túmulo. Assim o homem sábio, o filósofo, vive pensando continuamente e desejando ardentemente se libertar do corpo, fugir da matéria para estar no mundo das ideias, mundo verdadeiro, autêntico, consistente, de beleza e pureza.

Não é difícil ver como essa concepção criou a base para a desvalorização total da realidade terrena e o esvaziamento da história. Num texto de sua obra “O banquete” (210 e 221 a.C.), Platão expressa o quanto o corpo contamina a alma neste mundo: “Se a alma parte pura do corpo, não levando consigo nada do próprio corpo, como quem, durante a vida, na medida do que lhe foi possível, não quis ter nada em comum com ele, antes, fez tudo para evitá-lo e permanecer recolhido em si mesmo; (…) ela tornará ao que lhe é semelhante, isto é, ao invisível, ao imortal, ao divino, ao inteligível, onde poderá ser realmente feliz, livre enfim de sonhos, de estultícias, do medo, de paixões desordenadas; em suma, de todos os males humanos. E, como se diz dos iniciados, poderá verdadeiramente passar o tempo remanescente em companhia dos deuses (…). Mas, se ela parte do corpo contaminada e impura como quem esteve sempre com o corpo, serviu-o, amou-o e se deixou fascinar por ele, isto é, pelas suas paixões e pelos seus prazeres (…), então, uma alma em tal estado partirá do corpo toda impregnada do que é corpóreo e, por isso, será trazida de novo para baixo, para a região visível (…) até que a insaciabilidade do elemento corpóreo que sempre a acompanha não a faça encarnar-se novamente em um corpo”.

O que faz Platão desprezar e fugir do corpo não é nenhuma noção de pecado, mas um conceito pervertido da matéria. Concebida como má em si mesma, princípio de corrupção, é o maior obstáculo para que a alma alcance o gozo, a felicidade, sua plena realização. Assim, o que se enfatiza não é a distinção dos elementos, mas sua oposição. O corpo é a raiz do mal, da concupiscência, fonte de amores insensatos, das paixões, inimizades, discórdias, ignorância e loucura. Tudo isso representa fatores de morte para a alma. Fugir do corpo é fugir do mal do corpo mediante a virtude e o conhecimento. A missão da alma é livrar-se do corpo e dos estorvos deste mundo material.

Desse modo, percebe-se que a antropologia platônica é orientada por uma ética. Ele quer educar o homem a fugir dos prazeres, desprezar as riquezas e as honras, a renunciar aos bens do corpo para praticar a virtude e dedicar-se à contemplação. Prisioneira do corpo, neste mundo visível, a alma peregrina à procura de bens superiores. O homem está neste mundo como peregrino, e a vida terrena lhe é como uma grande prova. A vida verdadeira está no além, no outro mundo, no mundo de cima. No começo do diálogo (Fédon), Platão mostra a superioridade da alma sobre o corpo usando, para isso, uma série de razões argumentando que os prazeres do corpo são transitórios, ao passo que os da alma são duradouros. A alma deve superar as perturbações provocadas pelo corpo e adquirir as ideias de justiça, bondade, beleza e perfeição; ideias que jamais podem ser apreendidas pelo corpo.

 

4. O neoplatonismo radicaliza o pessimismo de Platão

Plotino, responsável pelo reavivamento do platonismo, reproduz em sua atitude o total desprezo pelo corpo. Segundo o filósofo Porfírio: “Plotino (…) tinha o aspecto de alguém que se envergonha de estar em um corpo. Em virtude dessa disposição de espírito, tinha reservas para falar de seu nascimento, de seus pais, de sua pátria. Desdenhava a tal ponto sujeitar-se a posar para um pintor ou um escultor que chegou a responder a Amélio, que solicitava seu consentimento para que lhe fizesse o retrato: ‘Assim, não basta arrastar este simulacro com o qual a natureza quis nos revestir: vós pretendeis ainda que eu permita deixar uma imagem mais durável desse simulacro, como se fosse algo que verdadeiramente valha a pena ver’”.

 

5. 0 pessimismo antropológico do cristianismo

Embora o cristianismo tenha introduzido, no Ocidente, uma grande novidade em relação às antropologias anteriores, o conceito de criação e nela o homem como “imagem e semelhança” de Deus, acabou também ele numa visão pessimista do homem. A primeira razão é devida, sem dúvida, aos empréstimos que a reflexão filosófico-teológica dos padres fez do helenismo, especialmente do neoplatonismo. Analisaremos esta questão a partir de Santo Agostinho pelo fato de que suas ideias marcaram decisivamente a doutrina na Igreja.

A antropologia cristã, especialmente após Agostinho, vem sendo elaborada sob o signo da tragédia edeniana: um ser superdotado, Adão, um super-homem prendado com dons preternaturais, não satisfeito com sua condição de criatura, pretendeu igualar-se ao Criador (“sereis como deuses”). A história posterior parece feita dessa concorrência. Sempre se procurou diminuir o homem para engrandecer a Deus. O lugar do homem não é o paraíso, mas o “vale de lágrimas”. Mas não é esta uma herança comum da cultura ocidental de base helênico-judaico-cristã? Essas narrativas teriam, na origem, a necessidade de indicar e manter os homens nos seus devidos limites, mostrando-lhes o castigo exemplar por toda transgressão? Não é o que acontece também com Prometeu, que, no ímpeto de ajudar os homens a melhorar suas condições de vida, rouba o fogo do céu? Qual é sua sorte? Os dois mitos têm em comum ensinar ao homem o castigo da transgressão imposta pelos deuses. Teríamos de dar razão a Nietzsche quando afirma que a cultura ocidental está sob a égide do pessimismo porque “é da ordem do pessimismo o pensamento que julga a essência da vida ser a dor, sob todas as formas, e que não há saída honrosa, fora da renúncia, do perfil baixo”.

Esse pessimismo antropológico produziu uma moral do medo, dura, impiedosa, que não ajudou o homem a crescer, a tornar-se adulto, responsável, mas o fez submeter-se, humilhar-se, infantilizar-se, mantendo-o num regime de forças ameaçadoras de sua liberdade.

De fato, desde então, a tradição cristã censurou as manifestações mais intensas da vitalidade, o prazer físico, a alegria, toda exaltação corpórea, e exigiu sacrifícios, renúncias, mortificação. De nada podemos nos orgulhar, salvo das humilhações. Esse tipo de moral tem sido quase um crime contra a humanidade, uma calúnia permanente contra a existência real humana do corpo, do sangue e do desejo. Essa moral não abençoou a vida como incondicionalmente boa, mas abençoou o aborrecimento, o nojo do mundo, a vergonha que o homem sente por estar num corpo cheio de desejos.

“O homem é tão pobre, que não tem um bom pensamento, nem um bom desejo, que lhe não venha do alto. Por si mesmo nada pode, nem ainda desejar ser libertado de sua miséria, que ele não conhece senão por uma luz sobrenatural… Se a divina misericórdia o não prevenisse, não poderia nunca fazer algum bem” (Imitação de Cristo: Reflexões sobre o Cap. X do Livro segundo, S. Paulo, Paulus, 1974).

“A dor é a triste herança do homem; em dor se passa quase toda a sua vida. Sofrimentos do corpo, enfermidades da alma, pecados, fraquezas, consumições, tal é a gravosa carga que sobre nós pesa desde o berço até a sepultura; e, todavia, à força de trabalho, consegue o homem descobrir, no meio de suas misérias, não sei que insensatas alegrias de que avidamente se embriaga. Fujamos destas loucas alegrias do mundo: fixemos nosso pensamento nos castigos que as devem seguir, em nossas faltas tão repetidas… (Imitação de Cristo: Reflexões sobre o Cap. XXI do Livro primeiro).

De fato, assim se estabelece o drama da existência cristã: deve-se olhar a vida como um desterro, como perigo permanente, sob o signo do pecado e da ameaça do inferno. Só se enfatizou o lado negativo, os sofrimentos, a dor, a renúncia. Os prazeres e as alegrias são sinônimos de devassidão e leviandade. Só tem valor uma vida atribulada, o sentimento de estar no desterro, longe da pátria celeste. Para se chegar a Deus é preciso que a alma se sinta desolada, um peso para si mesma. Estabelece-se a tribulação como meio de prova para a alma. O mundo, segundo Agostinho, é um mar amargo. Nele só se dá amargura. Essa amargura nasce da concepção do homem como peregrino (cf. Enarrationes in psalmos, SI 86,6. Em breve este texto de Agostinho será publicado em português [com o título: Comentário aos Salmos] pela Paulus Editora na coleção “Patrística”). O homem deve viver suspirando continuamente pela pátria celeste, na nostalgia do outro mundo, das delícias da pátria verdadeira. A tribulação deve ser carga de todos os dias e horas (En. in psalmos, SI 85,11).

 

6. Antropologia e alienação

A antropologia do homem peregrino, “homo viator”, colaborou muito para a questão da alienação humana. Coração voltado para o alto, para a pátria celeste, verdadeira morada do homem, fez com que o cristão se alienasse, se desinteressasse desta terra transferindo seu poder de transformação do mundo para a busca exclusiva da eternidade.

“Se soubesses que havias de morrer amanhã, que te importariam as coisas da terra, o que se faz, o que se diz em roda de ti? Ora, morrerás amanhã porque a vida é apenas um dia. Sê, pois, desde esta hora, o que quererias ter sido, quando para ti se abrir a eternidade. Nem a ciência, nem a riqueza, nem coisa alguma de quanto há no mundo te servirá no juízo de Deus: não levarás senão tuas obras” (Imitação de Cristo: Reflexões sobre o Cap. XLIV do Livro terceiro).

Agostinho salva-se do pessimismo radical, apelando para a graça de Deus, pois, a própria vida é por si mesma uma ferida, uma contínua chaga e uma tribulação. Em En. in psalmos, SI 103, diz: “A vida da vida mortal é a esperança da vida imortal”. Nostalgia da vida eterna, um desejo ardente de viver no outro mundo, ideia que se reflete na Imitação de Cristo: Não temos neste mundo senão um só interesse, o da nossa salvação (…) tudo o mais é vaidade. (…) Riquezas, prazeres, honras, que é tudo isso quando se lança o corpo na sepultura, e a alma vai para a sua eternidade?” (Reflexões sobre o Cap. I do Livro primeiro).

É compreensível que a Igreja tenha recebido as mais severas críticas não só de ateus, materialista, cientistas, mas também dos próprios cristãos mais esclarecidos.

A ênfase na corruptibilidade, na ordinariedade e vulgaridade da existência, na qual temos de peregrinar nesta terra, a noção absolutizada do pecado, que teria corrompido irremediavelmente o homem, não só deturparam, mas também o desviaram de sua verdadeira missão de transformar o mundo. A insistência da Igreja em apontar constantemente o pecado, em frisar demasiadamente o desprezo do mundo, os castigos de inferno como consequência de uma vida que não esteja voltada para os bens celestes, levou às críticas radicais do cristianismo. Pregando a pobreza, a submissão, a obediência, a humildade, a renúncia a todos os prazeres, aos bens terrenos (“dona terrena despicere”), a Igreja tornou-se obstáculo à realização do homem e de uma sociedade igualitária, ao mesmo tempo em que favorecia, desproporcionalmente, a classe dominante. A religião passa a ser vista como instrumento de evasão dos oprimidos e de justificação para os opressores. O homem alienado busca, nela, uma felicidade ilusória, artificial. Sua atitude é de desconfiança ante os valores mundanos e de omissão que o induz a aceitar as injustiças mistificadas como provas e punições por seus pecados, via de purgação, permitindo que a realidade histórico-social continue sem nenhuma modificação.

O cristianismo, paradoxalmente, ensina que o reino de Deus está no coração dos homens, mas expressiva parcela de cristãos renegou essa missão transferindo o reino para o outro mundo. Esqueceu que foi o homem quem deu nome às coisas, e, portanto, põe valor nas coisas. É ele quem dá sentido às coisas, um sentido humano. É ele quem aprecia, quem avalia, quem cria, quem cuida. Mas a única moral prática ensinada até recentemente foi a moral do desprezo da humanidade. A pretexto de querer melhorar a humanidade, revelou-se como castradora da própria vida. A fé substituiu a ação.

 

7. Uma antropologia otimista?

A polêmica entre Agostinho e Pelágio permaneceu na história como uma questão em torno da graça: enquanto o primeiro defendia a necessidade absoluta da graça, o segundo parecia dispensá-la. No entanto, a verdadeira questão está no modo de conceber o homem. É uma questão antropológica. Esta foi a síntese doutrinal que se alargou por muitas décadas sucessivamente e terminou na condenação dos pelagianos como heréticos e na glorificação de Agostinho como doutor da graça.

Pelágio exalta o primado e a eficácia do esforço humano, voluntário, na prática da virtude. Isso se apresenta para ele como instância de coerência ao evangelho, que reclamava ascese e empenho em todo setor da vida humana. Tratava-se de imitar Jesus Cristo com toda a seriedade. Julgava que estava em poder do homem viver sem pecado, bastando para isso que Deus lhe desse o livre-arbítrio. Nesse caso, a graça desempenha, no máximo, um papel coadjuvante. Com o pecado de Adão, a liberdade humana não sofreu, praticamente, nenhuma deficiência, a não ser o mau exemplo dele.

Pelágio negava, portanto, o nascimento da humanidade no “pecado original”. Não era necessário o batismo das crianças para a remissão dos pecados. Para Pelágio, a maior graça é a natureza humana. O homem tem muitos recursos que lhe vêm da natureza. Jesus é o modelo perfeito a ser imitado. A graça não opera nenhuma transformação no interior do homem. Só coopera, ajuda para a prática do bem. O poder da influência dos exemplos de Jesus é muito maior que a influência dos exemplos do pecado de Adão e dos maus. Se, conforme dizia Agostinho, a geração é pecado, as crianças nascem no pecado. Por lógica, os cristãos não deveriam se casar e ter filhos. Estariam contribuindo para a expansão do pecado no mundo. Mas, segundo Pelágio, a concupiscência, ao contrário do que representava para Agostinho, era um bem da natureza humana. O homem pode viver sem pecado por esforço próprio, sem a ajuda da graça, e cumprir os mandamentos.

O pelagianismo foi sistematizado por Juliano de Eclano. Este polemizou arduamente com Agostinho. Para Juliano, o “pecado original” é invenção de Agostinho, pois nenhum pecado pode ser transmitido por “via seminis. Pecado é obra da vontade perversa. Juliano pergunta: Como se instala na criança esta vontade? Não há por onde entrar este pecado, visto que a criança não tem livre-arbítrio. Não existe querer nela. Sua natureza é obra de Deus e a união dos esposos é nova criação. É boa. Consequentemente, diz Juliano, não pecam os pais quando engendram porque estão fazendo obra querida por Deus. Não peca a criança, que nasce sem vontade própria, muito menos com uma vontade perversa. Não peca Deus criador, porque seria absurdo. Por quais ocultas fendas entrou o pecado na criança? Conclui Juliano, o pecado original não existe.

Agostinho julga que a doutrina pelagiana esvazia e priva o cristianismo do mistério profundo da redenção, suprime o significado da cruz, rompe a solidariedade e dá origem a nova heresia. Ataca Juliano na interpretação de Rm 5,12: “Por um homem entrou o pecado”. “Existiu Adão e nele todos existimos, pecou Adão e nele todos pecamos” lembra Agostinho, citando Ambrósio. “Por um homem…”, isto se diz por causa da geração, não da imitação. Logo, segundo Agostinho geração é o canal da fonte de crimes, instrumento do diabo (cf. Opus Imperfectum 2,44). Agostinho insere Rm 5,12 no contexto bíblico da redenção. Para Juliano, Rm 5,12 indica o pecado por imitação, pois, “um” quer dizer que não é por dois, isto é, por geração. Juliano acusa Agostinho de tirar consequência do resto de maniqueísmo de sua juventude, que tem a corrupção como nativa no homem. Ao contrário de Juliano, Agostinho vê tanto em Cristo como em Adão uma influência causal, propagação da natureza humana corrompida e infusão da graça, isto é, geração e regeneração: todos nascem em Adão; todos renascem em Cristo. Por este influxo causal, todos somos em Adão “massa damnata”, e, em Cristo, “massa redempta”.

Segundo Agostinho, o pecado original foi introduzido pelo princípio da solidariedade. Está em nós por causa da unidade de origem. Unidade em Adão que se baseia na unidade de natureza. Unidade seminal permite existir em Adão antes de ter existência própria e é precisamente em virtude desta unidade que todos incorremos no pecado quando Adão pecou. Condenado Adão, todos fomos condenados (cf. Opus Iniperfectum 1,57). Essa condição histórica explica no homem sua tendência ao mal. Pelo pecado dos pais, foram as crianças constituídas pecadoras.

O pelagianismo, atacado duramente por Agostinho com sua doutrina do pecado original, afirmava a possibilidade da colaboração da pessoa na obra de sua divinização. A graça-natureza iniciava um processo que a pessoa podia completar com suas obras, dependendo de seu empenho. A consequência última da antropologia agostiniana pode-se ver em Lutero para quem a liberdade humana e a prática das obras ficam totalmente anuladas.

Os escritos teológicos e exegéticos de Pelágio podem ser agrupados em torno do De Natura, de 414, no qual ele sustenta a fundamental possibilidade do homem, congênita à sua natureza, de poder orientar as próprias escolhas segundo os mandamentos de Deus, vivendo sem pecado. Pelágio aprofundou tal ideia baseado na doutrina da criação, no De libero arbitrio, de 415. A liberdade vem plantada no homem no momento da criação, como uma raiz, a qual é determinada nos frutos que produz pelas suas escolhas. A graça de Deus se insere no ajudar tal decisão primária à guisa de uma provocação da vontade a seguir o exemplo de Jesus Cristo. Outros escritos seus determinam concretamente tal ideia, em particular sua literatura sobre a castidade e sobre a virgindade.

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Não seria hora de suspeitar do discurso teológico-antropológico de impotência e entrever outra forma de pensamento, intermediária entre o esforço próprio do homem, seu empenho pessoal na busca de sua perfeição e da transformação deste mundo? A partir do Concílio Vaticano II, com base em alguns documentos fundamentais, como a Gaudium et Spes, muitos cristãos começaram a trabalhar uma antropologia mais afirmativa, construtiva, otimista, empenhativa na transformação do mundo, apelando justamente para o argumento da solidariedade. Ninguém se salva sozinho. Houve, paralelamente, uma mudança de direção da ética e da moral. Enfatiza-se o aspecto social, solidário, construtivo, comunitário. Os pecados pessoais não deixam de existir, não são desconhecidos, mas a ênfase é dada no pecado coletivo, na injustiça, na corrupção dos negócios. Nova antropologia, nova ética, nova moral.



[1] T. H. Huxley, Man’s place in nature and others essays, Londres, 1963, p. 52.

[2] M. Scheler, “Mensch und Geschischte”, in Philosophische Weltanschaung, Berna, 1954, p. 48.

[3] M. Heidegger, Kant und das Problem der Metaphysik, parágr. 37.

[4] J. Paulo II, Discurso inaugural da Conferência de Puebla, 28/01/1979.

Prof. Roque Frangiotti