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Publicado em número 204 - (pp. 25-30)

Vocação para a liberdade

Por Pe. José Comblin

O presente artigo reproduz a introdução do novo livro de J. Comblin “Vocação para a liberdade”, recém-publicado pela Paulus Editora.

 

O tema da liberdade é inesgotável. Quem escreve sobre a liberdade parte de um ponto de vista bem determinado. Nesse sentido, partimos de um ponto onde convergem quatro preocupações — pois, de alguma maneira, o tema da vocação para a liberdade oferece resposta para quatro necessidades da reflexão cristã no presente da América Latina.

Em primeiro lugar, na América Latina, os movimentos de libertação descobriram a liberdade. Acabou o conflito ideológico entre liberdade e libertação. A teologia cristã da liberdade pode iluminar e orientar a busca de uma nova teoria da libertação.

Em segundo lugar, desde a década de 80, a Igreja latino-americana anda buscando uma identidade perdida. Teve identidade clara nos tempos de Medellín e de Puebla. Logo em seguida essa identidade foi diluindo-se e, na atualidade, parece ter-se perdido. Consciente ou inconscientemente, muitos trabalham como se quisessem refazer a cristandade, procurando apagar — como parêntese inútil — trinta anos de história.

Alguns acham que a Igreja recuperaria identidade na inculturação. Porém, na atualidade, inculturação significa integração na sociedade pós-moderna inspiradora da Nova Era. Esta é a nova cultura, na atual fase do capitalismo mundial — também no Brasil.

A identidade da Igreja somente pode ser recuperada a partir da identidade do cristianismo. A Igreja não é um fim em si própria, mas está à serviço do Reino. Somente um retorno ao evangelho pode fornecer base sólida a uma identidade firme no meio do mundo atual. O evangelho cristão é sinônimo de vocação para a liberdade.

Em terceiro lugar, durante séculos, o evangelho permaneceu muitas vezes recoberto por revestimentos culturais que ocultavam aspectos importantes. No segundo milênio, sobretudo a partir do século XIV, o evangelho da liberdade ficou quase esquecido diante do triunfo de um catolicismo clerical, patriarcal, verticalista e de inspiração imperial. Esse tipo de catolicismo foi enfrentado pelo Vaticano II, mas não pôde vencê-lo.

No entanto, em todas as épocas da história da Igreja o evangelho autêntico sempre permaneceu vivo e foi vivido intensamente por minorias fervorosas que não se conformavam com o esquema dominante. Precisamos refazer a conexão com toda essa tradição muitas vezes subterrânea, que, no meio de tanta invasão cultural, manteve a fidelidade ao evangelho de Paulo e de João, ao evangelho de Jesus nos sinóticos, ao evangelho dos mártires e dos santos. Essa é a tradição que mantém viva a chama da liberdade evangélica.

Em quarto lugar, muitos católicos estão cada vez mais conscientes de que não se pode anunciar o evangelho da liberdade evangélica a partir das estruturas eclesiásticas arcaicas que parecem totalmente alheias à evolução dos povos e, sobretudo, ao surgimento de um laicato que quer ser tratado como adulto. O fato cultural dominante do século XX foi a universalização da alfabetização e cada vez mais a ampla difusão do ensino secundário e da formação universitária. Ora, as estruturas eclesiásticas da Igreja romana correspondem a uma fase histórica em que quase todos os leigos eram analfabetos e somente os clérigos eram letrados. Uma Igreja que não é capaz de instalar a liberdade nas suas estruturas não poderá anunciar o verdadeiro evangelho. Poderá manipular o sentimento religioso, recorrer às emoções religiosas, mas tudo isso é precário e desvia os responsáveis pela evangelização do seu verdadeiro objetivo.

Esse é o contexto no qual queremos estudar o evangelho da liberdade, isto é, o evangelho que proclama a vocação humana para a liberdade, a vocação de cada um dos seres humanos e da humanidade na sua totalidade.

 

1. Liberdade e libertação na América Latina

O primeiro sinal de mudança radical nos rumos da libertação latino-americana foi dado pelo exército zapatista de libertação nacional (EZLN), revelando-se na ocupação militar de várias cidades do Estado de Chiapas, no sul do México (1º de janeiro de 1994). O subcomandante Marcos, líder efetivo e porta-voz do movimento, declara: “Aprendemos que não se pode impor um tipo de política às pessoas, porque cedo ou tarde termina-se fazendo o que se criticou”.

O exército zapatista abandona o tema da revolução que prevalecera na América Latina desde 1959 com a entrada de Fidel Castro em Havana e com a figura emblemática de Che Guevara. O subcomandante Marcos suplanta Che Guevara, sendo reformista e não revolucionário. Não quer o poder. Suas armas não são para vencer o exército mexicano. Essa seria uma tarefa impossível. As armas prestam-se para efeito de demonstração: para a TV divulgar as imagens do movimento. Os zapatistas não querem conquistar o poder do Estado. Querem a reforma da sociedade pela pressão da opinião pública, e por isso recorrem à publicidade e aos meios de difusão de massa.

Com isso fica patente que os novos rumos da América Latina rejeitam o caminho leninista de imposição do socialismo pela força do Estado supostamente popular e na realidade dirigido por uma nomenclatura de intelectuais. Os novos movimentos sociais descobriram que o único caminho válido para instituir a democracia é a própria democracia. O caminho da liberdade é a própria liberdade.

É verdade que Paulo Freire tinha ensinado à geração anterior que a libertação somente pode surgir da conscientização do povo, isto é, do despertar da liberdade no povo latino-americano. No entanto, na prática, atuou-se uma forma de conscientização que consistia em introjetar no povo a consciência dos intelectuais revolucionários, tentativa que fracassou rotundamente.

Hoje fica patente que as “liberdades burguesas” ou “liberdades formais”, tantas vezes denunciadas pelos revolucionários, não eram puramente formais nem burguesas. Podiam ser deformadas pela burguesia, confiscadas de alguma maneira por ela, mas em si mesmas eram um progresso da consciência da humanidade. Eram, até mesmo, uma parte da herança cristã no mundo ocidental, ainda que essa procedência permanecesse bastante desconhecida.

De alguma maneira a fundação do Partido dos Trabalhadores (PT) no Brasil já tinha antecipado a mudança. O PT foi o primeiro movimento esquerdista fundado depois de 1959 sem que tivesse “braço armado” e se declarando radicalmente democrático no sentido ocidental da palavra.

Dessa maneira, os movimentos de libertação reconciliaram-se com a tradição ocidental da “liberdade”. Abrem-se para a problemática mais ampla da liberdade. Com isso, pode iniciar-se um diálogo com a tradição cristã da liberdade.

Um segundo sinal veio reforçar a orientação acima lembrada. Trata-se da famosa carta aberta de Fernando Cardenal. Fernando Cardenal foi uma personalidade muito significativa: jesuíta expulso da Companhia de Jesus por se ter negado a renunciar à função de ministro da educação do governo sandinista (hoje foi reintegrado oficialmente na Companhia de Jesus). A educação tinha sido uma das grandes bandeiras do sandinismo e Fernando Cardenal estava colocado no centro da atuação da revolução sandinista. A carta foi uma avaliação não somente da educação, mas do conjunto da ação social do sandinismo, especialmente da reforma agrária.

Fernando Cardenal procurou as causas do fracasso da reforma agrária na Nicarágua. Encontrou-as na falta de educação básica. Por isso, deixou o sandinismo e vem se dedicando até hoje a essa educação básica de camponeses nicaraguenses.

O que Fernando Cardenal chama de “educação de base” nada mais é do que a “liberdade”. O que faltou aos camponeses foi uma educação para a liberdade, para a verdadeira liberdade que é assumir responsabilidades, colocar-se voluntariamente a serviço do bem dos outros, buscar a plena realização de si próprio no amor efetivo ao próximo. Os camponeses eram cristãos, mas não tinham assimilado o evangelho da liberdade. Tudo indica que nunca haviam sido informados desse evangelho e o cristianismo que tinham recebido era um cristianismo infantil, de submissão a uma religião concebida como lei e imposta pelos sacerdotes sem que houvesse uma verdadeira opção pessoal. No fundo, a educação de base era a verdadeira evangelização. Sentiu-se a falta dela. Daí a abertura para a problemática da vocação e da formação para a liberdade.

Esses dois sinais — confirmados por outros numerosos sinais convergentes, que estão na memória dos leitores — orientam o evangelho cristão da liberdade. Daí o primeiro motivo para estudarmos o tema da liberdade.

 

2. A identidade do evangelho cristão

Na América Latina a Igreja católica está passando por uma crise de identidade visibilizada no mal-estar do clero e no silêncio dos episcopados. Não é que os bispos não falem. Falam, mas o conteúdo do que é dito é bastante frágil. Exemplo típico disso foram os documentos preparatórios e o documento final do Sínodo da América de 1997. Outro exemplo são os documentos para a celebração do terceiro milênio. Esses documentos falam muito da evangelização, mas se trata de uma evangelização sem conteúdo. Parece que a Igreja já não sabe mais qual é o evangelho que deve proclamar.

Há uma tendência muito forte para entrar na dinâmica do mercado. Atualmente há um mercado religioso. Há muita demanda religiosa e muitas religiões oferecem métodos de terapias religiosas ou caminhos para a felicidade. Daí a tentação de entrar nessa competição. Quem quer fazer sucesso procura temas cristãos que possam triunfar no mercado, satisfazendo a uma demanda. Há uma tendência muito forte nesse sentido por parte dos movimentos carismáticos e mesmo dos movimentos nascidos na geração passada. Oferecem um evangelho “ao gosto do consumidor” — como dizia um sacerdote missionário ancião que viveu muitos anos no Brasil.

Tal tendência cria uma forte tentação por parte de muitos bispos e sacerdotes, assustados pelo progresso das Igrejas pentecostais, chamadas por eles de “seitas”. Acham que é preciso competir com elas e recorrer aos mesmos métodos, oferecendo um evangelho que responda a um pedido imediato. O discurso da inculturação serve até mesmo para legitimar a entrada na competição.

Dessa maneira, o evangelho fica muito diluído. Muito amor a Jesus, mas a um Jesus emocional, afetivo, sem conteúdo racional, um Jesus suspeito de não ser nada mais do que uma projeção das frustrações afetivas tão comuns nos tempos atuais. Há uma tendência para aceitar qualquer evangelho, com a condição de que conquiste o mercado.

Sacrificar o conteúdo para reconquistar o poder. Essa não seria a primeira vez que a Igreja ocidental cairia nessa tentação. Quando a Igreja enfrenta problemas sérios — como, atualmente, a concorrência das Igrejas pentecostais — o velho reflexo clerical renasce: a vontade de poder torna-se mais forte do que o amor ao povo. Ou melhor, confunde-se a vontade de poder com o amor ao povo. Mais do que exercício de amor ao povo, a evangelização transforma-se em campanha para recuperar parte do poder perdido.

Conserva-se a opção pelos pobres. Porém, essa opção vai perdendo o seu conteúdo prático. Desaparecem as antigas práticas de libertação e a opção pelos pobres permanece mera fórmula sem aplicação efetiva. Houve pouca renovação das práticas. Há um grande número de agentes de pastoral desanimados, visto que as suas práticas sociais anteriores tornaram-se irrelevantes.

Por outro lado, muitos tinham aceito a opção pelos pobres como acréscimo ao discurso tradicional. A opção pelos pobres não afetava o discurso sobre Deus, Cristo, a Igreja e os sacramentos. Mantinha-se a teologia tradicional, e se fazia a justaposição do discurso de libertação na opção pelos pobres.

A opção pelos pobres será em breve pura fórmula sem conteúdo se não se aprofundarem as suas raízes no núcleo central do cristianismo. Esse núcleo central é o evangelho de Paulo e o de João, a vocação para a liberdade.

A Igreja somente poderá recuperar a sua identidade pelo retorno ao evangelho, independentemente do mercado. Não se trata de responder aos desejos imediatos do homem ou da mulher da pós-modernidade, mas de responder à expectativa mais profunda de verdadeira libertação. Não adianta montar uma evangelização a curto prazo que dará momentaneamente satisfação a aspirações religiosas. O que se faz necessário é preparar grupos de cristãos realmente transformados e libertos pelo evangelho que possam ser o fermento de uma nova sociedade no mundo.

As formas da antiga cristandade estão se apagando. Com o desaparecimento da cultura rural, o cristianismo dos avós já pertence ao passado. Não adianta querer ressuscitar o passado nem querer contar com os movimentos de “entusiasmo” religioso para fundar nova cristandade. O problema é como fazer para preparar um laicato adulto testemunha do verdadeiro evangelho de Jesus Cristo.

O evangelho é este: “Cristo nos libertou para que vivêssemos em liberdade (Gl 5,1). “Foi para a liberdade que vocês foram chamados” (Gl 5,13). Deus é liberdade e nos criou para a liberdade. Esta é a nossa vocação humana. O sentido da nossa vida é construir e conquistar a liberdade. Eis a maneira pela qual Paulo tornou compreensível para os gregos — e para nós — o evangelho do Reino de Deus, que na sua formulação nos sinóticos permanece incompreensível.

A vocação para a liberdade é o núcleo central do evangelho cristão e o ponto de partida da nova humanidade. No decurso do tempo, todavia, esse núcleo central foi muitas vezes obnubilado nas Igrejas — e na Igreja católica, sobretudo nos últimos 600 anos. Ao mesmo tempo, a vocação para a liberdade difundiu-se além das fronteiras das Igrejas históricas, invadiu outros povos e culturas e hoje, de alguma maneira, está presente na consciência de quase todos os povos, mesmo os que não têm nenhum contato com as Igrejas cristãs. Em certos casos, o evangelho cristão pode estar efetivamente mais presente e mais ativo fora da Igreja do que dentro dela. Nesses casos a Igreja pode não reconhecer o evangelho fora de suas fronteiras e, assim, perder a possibilidade de conversão.

A opção pelos pobres decorre da vocação para a liberdade. Não é orientação tomada ao lado da marcha principal da Igreja. Está dentro da caminhada fundamental, ainda que essa identificação tenha permanecido alheia à consciência de muitos cristãos, sobretudo nos últimos 600 anos — que incluem toda a história da Igreja na América Latina.

O imperativo de retorno ao evangelho leva ao tema da liberdade. Eis uma segunda razão que justifica o propósito desta reflexão.

 

3. A permanência da liberdade na história do cristianismo

Em 1888 o papa Leão XIII escreveu uma encíclica sobre a liberdade: “Libertas”. Da parte dele, era um sinal de aproximação ao mundo moderno. Ele sentiu a necessidade de reverter a situação de afastamento crescente entre a sociedade ocidental — que naquele tempo era o mundo — e a Igreja católica. O papa constatava essa situação com estranheza, afirmando: “Há um grande número de homens que creem que a Igreja é adversária da liberdade humana” (nº 1b). O papa atribuía essa situação a uma campanha de difamação da Igreja por parte dos liberais. Escandalizava-se porque ousavam “lançar à Igreja a censura que se lhe lança com soberana injustiça, a saber: que ela é inimiga da liberdade dos indivíduos ou da liberdade dos Estados” (nº 1a).

Como prova de que a Igreja sempre tinha defendido a liberdade com suma energia, o papa invocava a doutrina do livre-arbítrio (nn. 3-5). Porém, não se tratava disso. A questão era outra, a das “liberdades modernas”. Era aí que Leão XIII continuava manifestando a mesma incompreensão dos católicos, na sua maioria, nos últimos seis ou sete séculos.

A propósito das liberdades modernas, o papa dizia: “Tudo o que essas liberdades contêm de bom é tão antigo como a verdade. Tudo isso a Igreja aprovou sempre com ardor, e o admitiu efetivamente na prática. O que se lhe acrescentou de novo apresenta-se, a quem procura a verdade, como um elemento corrompido, produzido pela perturbação dos tempos e pelo desordenado amor da inovação” (nº 2a). Leão XIII fazia a aplicação desse princípio às distintas “liberdades modernas”: o culto, a palavra e a imprensa, o ensino e a consciência.

Apesar da fama de ter sido um espírito aberto, sensível ao mundo contemporâneo, Leão XIII não tinha entendido do que se tratava. Deixou de reconhecer o que havia de herança cristã exatamente naquilo que havia de novo nas liberdades modernas. O apelo de são Paulo passou incógnito. A sua formação consistiu na escolástica decadente que quis reformar.

O Vaticano II foi mais longe. A declaração sobre a liberdade religiosa (Dignitatis Humanae) e a constituição Gaudium et Spes reconhecem as liberdades modernas no essencial, assim como o tinha feito a encíclica Pacem in Terris de João XXIII. No Vaticano II, a Igreja reconhece que “os homens nunca tiveram um sentido de liberdade tão agudo como hoje” (GS 4d). A declaração Dignitatis Humanae proclama “esta exigência de liberdade na sociedade humana” (1a). O Vaticano II quis responder a essa exigência de liberdade aceita como positiva.

Não obstante isso, o Vaticano II não conseguiu mudar a posição da Igreja católica no mundo contemporâneo em toda a sua extensão. O debate sobre a teologia da libertação mostrou que ainda havia resistência muito forte. O “sistema” católico não é sensível à liberdade. Quando evoca a liberdade, é com a preocupação de limitá-la pelos direitos da verdade e da autoridade do magistério. No todo, a liberdade é sentida como ameaça à estrutura da Igreja católica.

Essa situação vem de longe. É o resultado de séculos de história, e não se desfaz em poucos anos um esquema montado de modo perseverante ao longo do tempo. Por isso, sobretudo na América Latina, muitos católicos não têm lembrança de experiências de liberdade cristã vividas historicamente. E, no entanto, essas experiências existem. É bom lembrar que, debaixo de estruturas dominantes alheias à liberdade, sempre se manteve, com altos e baixos, a mensagem paulina da liberdade.

Evocamos (no livro Vocação para a liberdade) dois momentos importantes. Primeiro a experiência de sociedade livre, tanto no campo como na cidade, entre os séculos XI e XV, na cristandade ocidental. A história do Ocidente registra momentos altos de liberdade alcançando o campo e a cidade, e fornecendo milhões de pessoas livres para o interior da Igreja, apesar da estrutura autoritária que a revestia. Isso porque, durante séculos, a estrutura clerical atingiu pouco a massa de camponeses ou de citadinos. Foi somente nos últimos séculos que a estrutura clerical se tornou cada vez mais pesada na sociedade e na Igreja.

Por outro lado, a mística foi, durante muitos séculos, o refúgio da liberdade e, sobretudo, o refúgio em que as mulheres — afastadas da estrutura clerical — fizeram para si um mundo de liberdade. Infelizmente a partir do século XVI as mulheres perderam a autonomia e ficaram cada vez mais enquadradas em estruturas patriarcais e autoritárias. Na Igreja tridentina foram confinadas pela dominação dos homens clérigos — agora formando um espírito de corpo ameaçador. A vida mística foi cada vez mais vigiada, restringida e até posta em suspeita. No entanto, mesmo escondida, manteve a tradição de liberdade na Igreja — apesar da estrutura dominadora.

É imprescindível recordar que a história da Igreja não se reduz à história da hierarquia ou do clero, ou, ainda, das instituições reguladas pelo direito canônico. Há uma história escondida, registrada em poucos documentos. Porém, o que ficou registrado basta para reconstituir, ainda que de modo incompleto, a outra face da Igreja. Acontece com esta face da Igreja o que acontece na história das nações: a história baseada em muitos documentos é a história dos homens — a das mulheres fica nas entrelinhas, sendo necessário adivinhar o que os documentos queriam esconder.

O evangelho da liberdade nunca esteve ausente, mas há necessidade de renovar a continuidade com essa presença permanente na tradição. Isso porque a tradição do evangelho na história da Igreja é a verdadeira tradição, enquanto muitas estruturas que predominaram durante séculos não passam de revestimentos culturais. Em 2000 anos a Igreja inculturou-se tanto, que muitas vezes esteve a ponto de perder o evangelho. O perigo existe ainda hoje. Daí a urgência de se renovar a conexão com a tradição antiga do evangelho da liberdade.

Na história do Ocidente, no segundo milênio, quase todas as heresias ou cismas procederam de exigências de liberdade. A todas a hierarquia respondia com a excomunhão e a condenação como heresia. Por isso, grande parte da tradição de liberdade cristã encontra-se nas Igrejas separadas. A questão da liberdade está no centro do ecumenismo com as Igrejas separadas no Ocidente.

 

4. Liberdade na Igreja

Numa obra publicada em francês, em 1927, o filósofo-teólogo russo N. Berdiaeff escrevia: “A liberdade levou-me a Cristo e não conheço outro caminho que possa levar a ele. Não sou o único que tenha passado por essa experiência. Todos os que deixaram o cristianismo-autoridade somente poderão voltar quando houver um cristianismo-liberdade”.

Hoje em dia os tempos mudaram. É possível chegar a Cristo por outros caminhos: a emoção, o afeto e a segurança. Esses caminhos, porém, levam realmente a Cristo ou a uma projeção da mente humana identificada equivocadamente a Cristo?

Milhões deixaram a Igreja devido à forma de como nela se exerce a autoridade. O único caminho certo é voltar pelo caminho da liberdade. Sem liberdade, a Igreja poderá fazer propaganda, recrutar novos membros, vencer no mercado das religiões. Porém, não poderá anunciar o verdadeiro evangelho, que é a sua razão de ser. Poderá ser poderosa, mas não será fiel à sua missão.

Nas suas Memórias improvisadas, Alceu Amoroso Lima — quem poderia falar com mais autoridade do que ele? — dizia: “Hoje estou convencido de que a exigência maior do Brasil não é apenas desenvolvimento, mas também e, sobretudo a liberdade. A dignidade humana exige a liberdade, e a liberdade exige a justiça. A justiça e a liberdade exigem responsabilidade”. Mais adiante: “A minha conversão se fez contra a minha vontade. Por quê? Porque eu temia que, me convertendo, perdesse a liberdade. Daí ter levado quatro anos meu debate a respeito com Jackson de Figueiredo. Pela ortodoxia católica, converti-me pela graça divina. Mas desde o começo sentia que ia ser duro. O fato é que encontrei na Igreja mais liberdade do que esperava, mas também mais dureza do que se pensa”.

Essa dureza ainda permanece e mantém muitas pessoas afastadas. Como pregar uma mensagem de liberdade sem praticar a liberdade dentro da Igreja? Remover as estruturas de dominação e substituí-las por espaços de liberdade torna-se tarefa cada vez mais urgente e inadiável. Nas estruturas atuais, a Igreja não pode gerar leigos adultos e livres, dando testemunho válido no meio do mundo, o que equivale a dizer que não pode evangelizar profundamente. Também por isso é necessário abordar a questão da liberdade na Igreja.

Na sua encíclica Ut Unum Sint, o papa João Paulo II escreve estas palavras comovedoras: “O bispo de Roma há de ser o primeiro a fazer sua, com fervor, a prece de Cristo pela conversão que é indispensável a ‘Pedro’ para poder servir aos irmãos. Com todo o coração, peço que se associem a esta súplica os fiéis da Igreja católica e todos os cristãos. Rezem todos juntamente comigo por esta conversão” (nº 4b).

Claro que a conversão de que se fala nesse texto não se refere a defeitos ou falhas pessoais do papa atual. As falhas estão na estrutura, e não na pessoa, e a conversão necessária refere-se à estrutura, e não à pessoa. Unanimemente todos reconhecem e admiram a santidade pessoal do papa. Porém, o problema está na estrutura e a conversão dar-se-ia na mudança de estrutura. O problema é passar de estruturas de autoridade para estruturas de liberdade.

 

5. Terceiro Milênio

Na carta apostólica Tertio Millennio Adveniente, João Paulo II insiste muito na necessidade de um sério “exame de consciência” (nº 36). A expressão “exame de consciência” refere-se tradicionalmente a um exercício individual que tem por objeto fatos de consciência. É um exercício da consciência subjetiva. Nesse contexto o papa usa a expressão por falta de outra mais abrangente. Na realidade, ele pede uma revisão não só das ações individuais, mas também uma revisão coletiva de todo o agir da Igreja.

É exatamente isso que nos propomos a fazer aqui, mas, claro, a título de sugestões e evocando algumas vertentes importantes.

Já que estamos numa fase de preparação para um novo milênio, somos convocados a revisar os milênios passados. O terceiro milênio será bem diferente dos anteriores. O papa convida-nos a ver no Concílio Vaticano II a entrada da Igreja no terceiro milênio (TMA 20). Como se diferencia o terceiro milênio do segundo e do primeiro?

Essa comparação entre os milênios servirá de referência para localizar a caminhada da liberdade cristã.

O primeiro milênio do cristianismo foi essencialmente oriental. Teve por quadro o Império romano do Oriente, cujo centro foi Constantinopla. No segundo milênio, o Império do Oriente entrou em decadência e acabou sendo conquistado pelo Islã. A Igreja oriental ficou reduzida e não renovou os seus princípios fundamentais. Até hoje as Igrejas orientais transmitem o testemunho do primeiro milênio. Em muitos aspectos mantêm uma herança insubstituível.

O primeiro milênio foi marcado pelo sinal da vida monástica. O monaquismo foi o centro da vida cristã e a referência para todos. Apesar da rejeição radical à filosofia grega, a vida monástica acabou sendo profundamente influenciada por ela, sobretudo pelo platonismo e pelo estoicismo. Do platonismo herdou a distinção entre alma e corpo, o cultivo exclusivo da alma e a rejeição do corpo, considerado como prisão da alma, limitação e obstáculo antes do que instrumento. Do estoicismo aceitou a luta ascética contra o corpo, o individualismo, a busca da paz e da serenidade na apatheia, isto é, na paciência inabalável que tudo suporta, tudo aguenta e tudo acolhe.

Apesar da condenação à filosofia, os monges gregos acabaram definindo o cristianismo como ascensão da mente para Deus. A procura de Deus faz-se pela interioridade, pela separação do mundo exterior, por meios intelectuais — ainda que com muita desconfiança para com todas as formas de raciocínio conceitual. Praticamente não houve espaço para um evangelho da liberdade, que foi reduzido à plena autonomia da alma em relação ao corpo.

Quanto ao mundo exterior, os monges entregam-no ao imperador, considerado como um equivalente de bispo para o mundo exterior. Os cristãos não interferem nos assuntos políticos, menos ainda nas estruturas socioeconômicas. Não foi sem razão que os povos orientais entraram na modernização somente na época da invasão comunista. Não fizeram experiências de liberdade na vida social.

Essas são as linhas dominantes. Podemos contentar-nos com tal aproximação geral, visto que nosso objetivo aqui não é conhecer a Igreja oriental, e sim imaginar o terceiro milênio em contraposição com os milênios anteriores.

O segundo milênio foi o da cristandade ocidental na Europa e nas suas dependências. O fato que condicionou a história toda foi que a herança do Império romano ficou dividida entre o papa e o imperador. No Oriente jamais o papa teria tido essa pretensão. Mas o imperador do Ocidente era, até certo ponto, uma criação do papa. Este quis conservar a autoridade suprema do Império, mesmo depois da divisão em nações autônomas. Daí uma luta constante entre o “sacerdócio” e o “Império”, isto é, entre o papa e os Estados modernos: luta pela supremacia.

Pode-se dizer que essa luta foi feliz porque, em razão da rivalidade entre os dois poderes que queriam ser supremos, criaram-se brechas e espaços em que a liberdade pôde emergir — enquanto o império bizantino não deixava nenhuma brecha para isso. Houve, por exemplo, a brecha dos camponeses conquistando direitos de uma classe feudal enfraquecida — bem como a conquista da liberdade nas cidades — o que não ocorreu no Oriente.

Por outro lado, o papa, que tinha a pretensão de governar toda a cristandade, introduziu o esquema imperial na Igreja, fazendo do clero burocratizado o instrumento do seu governo. O papa esforçou-se para introduzir os monges no quadro do clero. Até as religiosas tiveram de integrar-se no sistema clerical pela vigilância exercida sobre elas pelo clero. O clero tornou-se o elemento realmente importante na Igreja, avalizando ao papa o governo de toda a cristandade.

A Igreja imperial atingiu o auge da sua extensão na véspera do Vaticano II, sob o pontificado de Pio XII, o papa imperial por excelência, embora o seu Império tenha sido reduzido ao recinto das paróquias ou das dioceses.

A Igreja do segundo milênio pretendeu controlar estreitamente a vida política, a vida econômica e a vida social. Pretendeu, por meio de leis, estabelecer na terra o Reino de Deus. Todos deviam aceitar a verdade revelada, que, por meio da teologia, governava todas as ciências; deviam seguir os preceitos da vida cristã, e seguir os mandamentos da Igreja numa disciplina rigorosa. Os sacramentos permitiam controlar a vida das famílias e dos indivíduos.

A pretensão de dirigir a sociedade e os indivíduos suscitou um movimento forte de oposição por parte do imperador, em seguida dos reis e, depois, dos Estados nacionais. Clericalismo e anticlericalismo foram correlativos e fizeram na sua luta a trama do segundo milênio.

E agora, o que será o terceiro milênio? O que acontecerá com o evangelho da liberdade? Iluminada por dois milênios de história, a Igreja poderá descobrir melhor a sua vocação e dedicar-se mais ao evangelho? Procurará inculturar-se de novo como o fez nas duas cristandades anteriores, a oriental e a ocidental? (O objetivo do livro Vocação para a liberdade, da editora Paulus, é responder a essas questões).

 

Pe. José Comblin