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Publicado em número 164 - (pp. 15-20)

Deus e ídolo na economia

Por Prof. Jung Mo Sung

1. “Deus e economia?”: é estranho que se estranhe!

Algum tempo atrás, tive a alegria de ser convidado por estudantes de teologia de uma Igreja luterana, no sul do país, para colaborar na semana teológica promovida por eles. O tema escolhido era “Teologia e Economia”. Conversando com estudantes da comissão organizadora; eu lhes perguntei: “Qual ou quais perguntas vocês gostariam que fossem respondidas nas palestras?” Uma aluna, após uma pausa (para reflexão ou para tomar coragem), disse: “O que eu gostaria mesmo de saber é o que a teologia e Deus têm a ver com a economia”.

O(a) leitor(a) poderia estranhar essa pergunta, vinda da comissão organizadora que, após consulta, escolheu esse tema. Mas, em muitos outros lugares onde sou convidado para dar palestras ou curso sobre esse tema, essa pergunta é a primeira de todas. Até mesmo na Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção em São Paulo (curso noturno, para leigas[os] e religiosas[os]) onde leciono uma matéria chamada “Crítica teológica à economia política” para terceiro ano do bacharelado, são necessárias algumas aulas para responder a essa pergunta.

O interessante é que há muitos pedidos para cursos e palestras sobre esse tema. “Teologia/Deus e Economia”, apesar dos próprios solicitantes terem pouca ou nenhuma clareza sobre essa relação. Há uma intuição de que é preciso caminhar nessa direção, apesar da falta de clareza teórica.

Esse estranhamento em relação a Deus e Economia não significa, é óbvio, que os temas econômicos e políticos não estejam presentes nos estudos e reflexões dessas pessoas. Basta ver a quantidade de “análises de conjuntura” que se faz pelas Igrejas, institutos de teologia e comunidades. O que ocorre normalmente é que essas análises não estão articuladas dentro de uma reflexão teológica. Quando muito, fazem-se juízos éticos. Geralmente são conclusões do tipo: “Não é justo que…”, “a sociedade capitalista é uma sociedade injusta… etc. Raramente uma refle­xão teológica (discurso sobre Deus) sobre os problemas econômicos.

Se lembrarmos, entretanto, que a Igreja latino-americana fez a opção pelos pobres e a teologia da libertação tem insistido desde o seu início que esse pobre é pobre econômico e não “pobre espiritualizado”, o estranho é esse estranhamento em relação ao tema Deus e Economia.

Esse estranhamento não ocorre somente nas “bases” da Igreja, mas também em termos de produção teológica. Nunca se publicou tantos livros de teologia no Brasil como nos últimos vinte anos da teologia da libertação. Esses livros tratam, de uma forma ou de outra, do pobre. Entretanto, não passam de dez os livros que analisam teologicamente os problemas e as teorias econômicas[1].

É de estranhar que uma teologia que nasceu como objetivo de ser uma reflexão a partir e sobre a prática de libertação tenha deixado de lado tema tão importante como a economia (a ciência econômica e o processo/lógica da economia) e que os nossos livros “enfrentem” tão pouco os teóricos do capitalismo, que explicam, justificam e legitimam o processo de dominação capitalista. Afinal, a nossa luta pela libertação dos pobres se dá contra (toda luta é contra algo ou alguém) os que defendem o status quo, sejam eles “práticos” ou teóricos (economistas, filósofos, teólogos etc.). E a teologia da libertação, sendo uma teoria em função das práticas de libertação, deveria enfrentar mais as teorias que se opõem a essas práticas.

 

2. Deus da Vida e a economia

Voltando ao estranhamento sentido pelas próprias pessoas que acham importante discutir o tema economia e teologia, precisamos entender um pouco melhor essa contradição. Acredito que essa situação é um reflexo da contradição entre duas maneiras de ver a missão da Igreja e dos cristãos. Com a emergência do pobre na Igreja e da tomada de consciência de que a solidariedade com os empobrecidos é a causa da Igreja — “porque a considera como sua missão, seu serviço e como uma comprovação de sua fidelidade a Cristo, para assim ser verdadeiramente a ‘Igreja dos pobres’”[2] —, os cristãos assumiram a economia como um dos campos privilegiados de sua ação, ou, pelo menos, de preocupação.

Entretanto, em muitos persiste uma teologia, assimilada desde a infância, que apresenta como a principal missão da Igreja o anúncio de Deus para os ateus, os não crentes. A conversão dos ateus seria a principal missão. Nesse tipo de teologia, Deus não tem nada, ou quase nada, a ver com os problemas econômicos e sociais. A experiência de Deus é reduzida ao foro íntimo ou, no máximo, ao nível das relações inter­pessoais. Por isso, as pessoas que assumiram a causa dos pobres, mas ainda não conseguiram superar essa visão teológica, vivem esta contradição e esse estranhamento.

Sem dúvida, a principal missão da Igreja é anunciar o Deus de Jesus Cristo. Mas, ao mesmo tempo, a solidariedade com os empobrecidos é, como diz o papa João Paulo II, a prova da nossa fidelidade a Cristo. E não há nenhuma contradição entre anunciar Deus às pessoas e ao mundo e assumir a causa dos pobres — e, portanto, enfronhar-se na economia. Muito pelo contrário, são dois lados de uma mesma moeda: não se pode anunciar o Deus de Jesus Cristo sem levar em conta a economia. A questão econômica não é simplesmente uma questão ética ou moral, uma decorrência da fé, uma derivação da fé, mas é uma questão teológica. Se admitíssemos que a economia é somente uma questão moral, derivada da fé, teríamos de admitir também que poderíamos anunciar a Deus sem necessariamente falar da economia. E se isso fosse possível, o nosso Deus seria um deus insensível aos sofrimentos dos bilhões de seus filhos que passam fome no mundo todo.

Por sabermos que isso não é evangélico, a Igreja tem anunciado o nosso Deus como o Deus da Vida: “Eu vim para que todos tenham a vida, e a vida em abundância (Jó 10,10). Contudo, precisamos prestar atenção para que essa caracterização enriquecedora, “da Vida”, não se perca novamente em generalidades e abstrações. O anúncio do Deus da Vida e a luta pela vida dos pobres e marginalizados não podem tornar-se mais um chavão que repetimos, como no passado repetíamos que “Deus é um Espírito perfeitíssimo criador do céu e da terra”, sem sabermos as implicações dessa formulação para nossa vida concreta.

Em cursos e palestras tenho perguntado: “Se Jesus veio trazer a vida em abundância para todos, o que é a vida? Como Jesus definiu a vida?” Geralmente, após a pergunta, o silêncio domina a sala! As pessoas se entreolham e não sabem responder. E são pessoas que lutam pela vida dos pobres em nome da fé em Jesus Cristo! Costumo lhes dizer que não sabem a definição dada por Jesus porque ele nunca definiu o que é a vida. Pois dar definições é um jeito acadêmico de ensinar. E Jesus ensinou de modo “popular”: contando estórias, parábolas, e de outros jeitos próprios dos pobres.

Mas, afinal, o que é Vida?

Podemos voltar ao famoso texto de Mt 25,31ss. Aqui Jesus não define a vida, mas ao falar das condições para “ir para a vida eterna” ele nos diz o que é a Vida que veio nos trazer. Todos sabemos de cor essa passagem: “Eu tive fome e me destes de comer. Eu tive sede e me destes de beber. Era forasteiro e me recolhestes. Estive nu e me vestistes, doente e me visitastes, preso e viestes ver-me”. Comida, bebida, roupa, casa, saúde, liberdade e afeto (da visita), isso é a vida.

Os ricos querem mais dinheiro para poderem continuar comendo do melhor, viajar, ter mansões, bebidas finas etc. Os pobres sofrem porque não têm o que comer, com que vestir, onde morar etc. Essas coisas, nós também sabemos, não caem do céu. Precisam ser produzidas. Produção, distribuição e consumo dos bens materiais necessários para a reprodução da vida é o campo da economia. Não se pode falar da vida sem falar da economia.

Alguém pode me contestar, com razão, que a proposta de Jesus não pode ser reduzida a algo tão “material”. Onde está a dimensão “espiritual”? Afinal, todos procuram comida, bebida, casa, afeto para si e os seus. Sabemos que os “poderosos” do mundo sempre oprimiram os fracos para terem mais vida, isto é, mais desses bens materiais. Além, é claro, do “afeto” de todos porque são ricos e poderosos. A boa-nova de Jesus não pode ser somente a “luta pela comida”. Isso não é nenhuma novidade. Diante dessa constatação, o perigo é cair na ingenuidade de achar que essas coisas materiais não são importantes na boa-nova de Jesus, como se pudesse haver vida sem esses bens materiais! Se prestarmos atenção no texto de Mateus, a novidade não está na luta pelo “pão”, mas sim na luta pelo “pão dos pequeninos”, dos mais fracos, dos que não são um dos nossos (da minha família, do nosso grupo de amigos ou de Igreja…), dos que não vão poder nos retribuir. A espiritualidade consiste exatamente em ser capaz de sair de si em direção aos mais pobres e fracos para lutar pela vida deles. Sem nada esperar em troca, de forma totalmente gratuita, porque eles não têm com que retribuir. Na experiência da “solidariedade” com os mais pobres, na experiência da gratuidade, é que experienciamos a graça de Deus[3].

Anunciar o Deus da Vida é propor, em primeiro lugar, uma economia onde os pobres e os marginalizados tenham condição de uma vida digna. É propor uma economia que “escute os clamores dos pobres” e coloque como um dos principais objetivos, senão o principal, o atendimento das necessidades dos mais fracos. É propor uma economia teologal, uma “economia espiritual”. É óbvio que o campo econômico não esgota toda a realidade humana, que a boa-nova de Jesus não pode ser reduzida à economia; mas também é claro que, sem a produção, distribuição e consumo dos bens materiais, não há vida, nem boa-nova.

Se anunciamos o Deus da Vida, isso significa que existe ou pode existir um deus da morte (ídolo). Um deus que propõe e legitima economia que produz vida só para os fortes, à custa da morte dos mais fracos. É isso que é colocado no primeiro mandamento: “Eu sou Iahweh teu Deus, aquele que te fez sair da terra do Egito, da casa da escravidão. Não terás outros deuses diante de mim” (Dt 5,6-7). Iahweh se apresenta como libertador da escravidão e da morte, para dar vida (“para dar uma terra onde corre leite e mel”, isto é, onde a terra é do povo e a produção econômica é abundante para todos), em oposição a outros deuses, da morte e opressão, que selecionam os que “têm direito” à vida e condenam os outros à morte.

Lógicas econômicas baseadas na morte dos pobres produzem também a sua religião idolátrica, que dá “boa-consciência” aos idólatras (cf. Sl 73,12), produzem valores morais e culturas que as legitimam e as operacionam. Como entender, por exemplo, a insensibilidade de grande parte da população diante dos sofrimentos dos pobres que vivem ou perambulam pelas ruas, ao mesmo tempo em que proliferam ambientes exclusivos, abertos só para integrados ao mercado consumidor e fechados para os pobres, como os shoppings, condomínios fechados, sem entender essa “cultura capitalista”? A importante discussão em torno da evangelização e cultura não pode esquecer que os valores morais, religiões e culturas são produzidos e vividos dentro de uma totalidade social que tem como base a economia.

 

3. “Idolatria do dinheiro e do lucro”: uma crítica insuficiente

O tema da idolatria já faz parte do discurso religioso e teológico das nossas comunidades[4]. Há tempo superamos uma visão ingênua da idolatria que a identificava com a adoração de imagens religiosas. Idolatria é a adoração de um deus, obra de mãos humanas (Is 44,12-17; Jr 16,20 e outros), que coloca o sofrimento, a opressão e a morte como o único caminho para a salvação. É o deus que exige sacrifício dos pobres, o seu “sangue”, para poder viver e crescer. O ídolo não é nada, não salva e não é capaz de ouvir os clamores dos pobres. Seu único fruto é a morte dos pobres e fracos. Mas, para aqueles que o adoram, o ídolo é Deus e o sofrimento/morte é o caminho da salvação.

Na análise da idolatria presente em nossa sociedade, é comum ouvirmos críticas contra a “idolatria do dinheiro” ou a “idolatria do lucro”. Esse tipo de crítica tem a vantagem de visualizar o ídolo, “o dinheiro”, e assim responder de certa forma à expectativa nascida da compreensão da idolatria como adoração de imagens. Antigamente, a idolatria consistia em adoração de imagens visíveis de deuses ou de santos; hoje, consistiria na adoração de uma outra coisa visível: dinheiro. Ou, então, tem a vantagem de trabalhar com uma ideia conhecida por todos: o lucro. É uma visão que identifica o ídolo a uma coisa e a idolatria à absolutização dessa coisa. Essa crítica tem, entretanto, limites. Analisemos alguns.

Em primeiro lugar, o dinheiro não tem uma única forma de ser, uma única função nas economias modernas. O dinheiro, quando é utilizado para comprar e vender, é um meio de troca útil e essencial à economia. Dizer, como muita gente diz, que uma das causas dos nossos problemas foi a invenção do dinheiro é ignorar as dificuldades de uma economia baseada em simples troca de mercadorias. Além disso, o dinheiro pode ser guardado de uma forma bem mais segura e fácil do que as mercadorias, como bois, alimentos e outros bens perecíveis. Quando o dinheiro é guardado para futura utilização, está assumindo a forma de poupança. Essas duas formas já estavam presentes nas economias pré-capitalistas, como o feudalismo, por exemplo. Com o capitalismo surge, ou assume uma importância antes inexistente, a forma capital. O capital é riqueza investida no mercado, correndo o risco de prejuízo, como objetivo de obter lucros e assim acumular mais capital. Visto isso, fica patente as insuficiências de uma crítica abstrata de “idolatria do dinheiro”.

Quanto à “idolatria do lucro”, a referência é ao dinheiro na forma de capital. O capital não é simplesmente um conjunto de bens econômicos (fábricas, máquinas, dinheiro etc.); na verdade, o capital não pode ser compreendido fora das relações econômicas e sociais que se estabelecem no ato de investimento. O conjunto de bens econômicos simplesmente guardados no “baú” não é capital. O problema é que não conseguimos ver essas relações, mas só as coisas. Por isso é que confundimos o capital, um conjunto de relações sociais intermediadas por coisas, com as próprias coisas. É o fenômeno conhecido como “fetichização”[5].

Lucro é o objetivo que leva indivíduos ou grupos a investirem o seu dinheiro, na forma de capital, em produção e venda de produtos ou de serviços. Se criticarmos de uma forma abstrata o lucro, estamos pedindo que as pessoas ou grupos invistam o seu dinheiro para produzir bens (materiais ou simbólicos) correndo o risco de terem prejuízo, sem a possibilidade de ganharem. Só teriam a possibilidade de perder ou empatar, mas nunca de ganhar. Além disso, uma sociedade precisa de excedentes (em forma de lucro privado ou “lucro público ou social”) para investir em novos projetos econômicos ou em novos serviços e bens materiais (como escolas, hospitais públicos, casas, estradas, novas fábricas etc.) necessários para a reprodução da própria sociedade.

É claro que as pessoas que criticam a “idolatria do lucro” não criticam dessa forma. Elas criticam a absolutização do lucro, isto é, que todas as coisas são feitas em função do lucro. Mas numa economia de mercado, como é o capitalismo, onde as empresas competem com as outras no mercado para obter mais lucros, não se pode pedir outro objetivo norteador das suas atividades econômicas que não seja a maximização do lucro. A proposta de um “lucro razoável” é impraticável no capitalismo. Primeiro, porque é quase impossível determinar o que seja esse “lucro razoável”. Segundo, se uma empresa a pratica, mas outros concorrentes não, o “bom” empresário corre sérios riscos de ser passado para trás pelos concorrentes que conseguem aplicar mais em novas tecnologias, fruto de maiores lucros.

Uma hipótese para entender a utilização dessa forma não “eficaz” de crítica anti-idolátrica pode ser a transposição, para as sociedades modernas, das críticas feitas pela Bíblia, principalmente os livros proféticos, e pelos Padres nas suas sociedades tradicionais, de economia estática pré-capitalista. Nessas sociedades, as relações econômicas são mais simples é mais visí­veis. Sendo assim, o “ídolo” tende a ser mais visível. Nas economias modernas, capitalista e socialista, as relações econômicas se tornam invisíveis. Daí a necessidade da ciência econômica para poder “ver” o processo econômico. Nessas sociedades os ídolos também se tornam invisíveis[6].

 

4. Idolatria do capital e do mercado

Como desmascarar o ídolo invisível? A partir das manifestações da sua ação no mundo e das palavras dos seus sacerdotes e profetas. Mas este tema transcende a extensão deste artigo. Remeto os leitores à bibliografia citada na nota número 1. Aqui quero levantar apenas algumas ideias.

Nesses últimos anos estamos sendo bombardeados por algumas ideias-chave do neoliberalismo: a crise econômico-social brasileira é fruto de desmandos do Estado na economia; a salvação está na livre iniciativa, no sistema de mercado (menos Estado, mais mercado, ou como diz a propaganda do governo sobre a privatização das empresas estatais: “Menos Estado, mais Brasil”); a falência do socialismo “real” é a prova definitiva da superioridade natural do capitalismo; não há saída além do capitalismo (sistema de mercado onde o principal agente econômico é o capital). Alguns chegam a comparar essa “transição econômica” à “travessia do deserto rumo a uma economia de mercado aberta e estável [isto é, sem intervenção do Estado e da sociedade civil]. O desafio é […] atenuar os sacrifícios da travessia”[7]. A importante revista econômica The Economist diz, por sua vez, que “o deus fracassado da economia de comando [socialismo de modelo soviético] foi finalmente deposto” e que o moderno sistema de comunicação está transmitindo a “boa-nova da democracia liberal [capitalismo] para praticamente todos os cantos do globo”[8].

E depois eles dizem que a economia e a ciência econômica não têm nada a ver com religião! Mas o que é a “lógica do mercado” que é apresentado como a boa-nova e o único caminho de salvação com sacrifícios necessários mas redentores — e o que é esse paraíso chamado “sistema de livre mercado”?

Para respondera a essa pergunta, vou citar um texto de Paul A. Samuelson, ganhador do Prêmio Nobel de Economia, que não é um neoliberal como M. Friedman ou Hayek. Após defender a ideia de que a melhor forma de organizar uma economia é o sistema de mercado, ele diz que nesse sistema

“[…] as mercadorias vão para onde há maior número de votos ou de dólares. O cachorro pertencente a J. D. Rockefeller pode receber o leite que uma criança pobre necessita para evitar o raquitismo. Por quê? Por que a oferta e a procura [mecanismo básico do sistema de mercado] estão com defeito em seu funcionamento? É possível que esteja funcionando de uma maneira terrível, do ponto de vista ético, mas não do ponto de vista daquilo que só o mecanismo do mercado é preparado para realizar”[9].

 

Esse é o sistema de mercado. Esse modelo de sociedade nos é apresentado como a única salvação para os nossos problemas sociais. Um sistema econômico que é incapaz de ouvir o pobre e atender às suas necessidades. Incapaz não por causa de algumas falhas de funcionamento, mas porque pela sua própria lógica só vê e ouve os consumidores, os que têm dinheiro para “votar”. Não somente isso, um sistema que exige sacrifícios necessários (obviamente dos mais pobres) para atingir a salvação: a estabilidade do mercado. É importante notar que o verdadeiro sujeito da ação salvífica não é a sociedade organizada ou algum grupo, mas é o mercado capitalista. Basta que cada um lute pelos seus interesses econômicos egoísticos que o mercado, livre das intervenções humanas conscientes, produzirá o “bem comum”. Como dizem muitos economistas neoliberais, a melhor forma de amar ao próximo é ser egoísta no mercado. Uma ótima teoria para dar “boa-consciência” para os idólatras, numa sociedade que elimina as suas crianças pobres, de fome ou a tiro.

Anunciar Deus? Sim. Mas não um deus qualquer. Anunciar o Deus da Vida!

Deus da Vida, sim, mas não de uma forma genérica: o Deus da Vida dos pobres, para que “todos tenham vida”. Deus da Vida dos pobres, sim, mas não “vida” e “pobre” abstratos: o Deus que desmascara e destrona a idolatria do capital e do mercado, com sua lógica sacrificial, e propõe uma economia teologal, uma economia que atenda os clamores dos pobres e propicie vida em abundância para todos.



[1] Por exemplo, Franz Hinkelammert, As armas ideológicas da morte, Ed. Paulinas, 1983, e Crítica à razão utópica, Ed. Paulinas, 1986; Hugo Assmann e F. Hinkelammert, A idolatria do mercado, Vozes, 1989; Hugo Assmann, Clamor dos pobres e “racionalidade” econômica, Ed. Paulinas, 1990, e Desafios e falácias: ensaios sobre a conjuntura atual, Ed. Paulinas, 1991; Júlio de Santa Ana, O amor e as paixões: crítica teológica à economia política, Santuário, 1989; Jung Mo Sung, A idolatria do capital e a morte dos pobres: uma reflexão teológica a partir da dívida externa, Ed. Paulinas, 2ª ed., 1991.

[2] João Paulo II, Laboren Exerceras, nº 8.

[3] Ver, por exemplo, Jung Mo Sung, Experiência de Deus: ilusão ou realidade, FTD, 1991 (numa linguagem cotidiana, dirigido para jovens e adultos da “modernidade’); Juan Luis Segundo, Teologia aberta para o leigo adulto: graça e condição humana, vol. 2, Loyola, 2ª ed., 1987.

[4] Um livro clássico sobre esse tema, na perspectiva latino-americana, é: VV.AA., A luta dos deuses, Ed. Paulinas, 1982.

[5] Para compreender o fetiche da mercadoria, do dinheiro e do capital e ter uma visão de como os economistas burgueses o justificam, ver: Franz Hinkelammert, As armas ideológicas da morte, Ed. Paulinas, 1983.

[6] Sobre a diferença do papel da religião nas sociedades tradicionais e nas sociedades modernas, ver: Franz Hinkelammert, El subdesarrollo latinoamericano: un caso de desarrollo capitalista, Ed. Nueva Universidad, San­tiago, 1970, pp. 22-33. Sobre a invisibilidade das relações econômicas e dos ídolos, ver, por exemplo, Jung Mo Sung, “Luta contra a dívida externa: crítica profética ou apocalíptica?”, Revista de Interpretação Bíblica Latino-americana, nn. 5-6, Vozes, pp. 40-48.

[7] Eduardo Gainnetti da Fonseca, “Marx e Hegel envelheceram, Adam Smith e Hume ressuscitaram”, Gazeta Mercantil, São Paulo, 19/9/9 1, p. 5 (o grifo é nosso). O autor é professor de economia na Universidade de São Paulo.

[8] Reproduzido na Gazeta Mercantil, 9/10/91, pp. 1 e 7 (o grifo é nosso).

[9] Paul A. Samuelson, Introdução à análise econômica, 8ª ed., Agir, 1977, vol. I, p. 49.

Prof. Jung Mo Sung