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Publicado em número 198 - (pp. 21-26)

Educar na modernidade e pós-modernidade

Por Pe. João Batista Libânio

A propósito da Campanha da Fraternidade de 1998

As categorias de pensamento buscam clareza em suas definições. Os sentimentos, intuições, percepções, clima geral, por sua vez, não se deixam enquadrar em ideias claras e distintas. Viver no lusco-fusco da modernidade e pós-modernidade implica sofrer a dilaceração de querer a clareza e racionalidade da modernidade e, ao mesmo tempo, sentir o clima desconcertante e fragmentado da pós-modernidade. Como educar nesse momento de encruzilhada?

 

I. Os paradoxos da modernidade

Os projetos ambiciosos terminam frustrando. Propõem-se metas tão elevadas que as conquistas permanecem sempre aquém. É como o aluno que só aceita tirar a nota máxima e se decepciona toda a vez que não a alcança, embora obtenha uma qualificação que faria muito feliz outro companheiro menos pretensioso.

Complica-se mais ainda o quadro quando os objetivos mantêm entre si certa tensão e a medida do equilíbrio não é estabelecida de antemão. Os defensores dos polos opostos puxam então cada um para seu lado em disputa cerrada. Ora, a modernidade estabeleceu uma série de binômios como objetivos, cujo ponto de equilíbrio não soube determinar.

Na elaboração dos Direitos Humanos, naturais e universais, pretendeu criar uma sociedade justa e autônoma. A justiça visava ao conjunto, a autonomia defendia o indivíduo. Ao açular a autonomia, ameaçou a justiça. Os indivíduos buscaram seus caminhos econômicos e políticos e deixaram para trás aqueles que não conseguiam acompanhá-los, e a justiça foi minguando. Quando, porém, quis restabelecer a justiça, bateu-se tão fortemente contra a autonomia, que robotizou as pessoas, enquadrando-as na camisa de força dos projetos autoritariamente decididos.

No horizonte da modernidade estão a identidade e a solidariedade. A identidade reforça a originalidade, a singularidade das pessoas. Em seu extremo, lemos uma multidão de ilhas sem pontes. Cada uma bem cuidada, mas fechada em si mesma. Por outro lado, ao fomentar sempre mais a solidariedade, as identidades se esfumaram no cinzento do conjunto humano sem face própria.

A modernidade advogou a emancipação social, a libertação das peias que retinham os indivíduos presos a uma ordem ultrapassada. Novos corpos sociais se formaram com sua dinâmica própria. Aliaram-se na luta por um estatuto reconhecido. Ao mesmo tempo, cada pessoa descobria sua própria subjetividade, arredia aos vínculos grupais.

Igualdade e liberdade também engalfinharam-se, buscando cada uma impor-se à outra. Para fazer valer a igualdade, sentia-se a necessidade de limitar liberdades ávidas de espaços sempre maiores, gerando desigualdades. E na defesa da liberdade, a igualdade sempre sofria.

Numa palavra, o projeto da modernidade não soube escolher nem organizar prioridades. Faltou-lhe a pedagogia do equilíbrio ou da mola de forçar o lado mais fraco para que o fiel da balança ficasse no meio.

 

II. A pujança econômica e a crise da existência

A modernidade engendrou dois sistemas econômicos. O capitalismo liberal forçou o lado da autonomia, da identidade, da subjetividade, da liberdade. O socialismo, por sua vez, deslocou o peso para o prato da justiça, da solidariedade, da emancipação grupal, da igualdade. Enquanto os dois sistemas se digladiavam procurando cada um exibir mais mérito e sucesso, o efeito-demonstração conseguia diminuir o desequilíbrio dos polos. Sem dúvida, o capitalismo foi o que mais se beneficiou desse jogo ideológico. Conseguiu assimilar muitos elementos do polo oposto pela pressão dos partidos de esquerda, dos movimentos operários e de exigências da Doutrina Social da Igreja. O socialismo encastelou-se em seu mundo fechado, arredio aos influxos liberalizantes. Reprimiu-os com violência. Isso custou-lhe o colapso.

Hoje temos a vitória provisória do capitalismo liberal, que, sem a provocação oposta, apresenta uma economia pujante, mas à custa dos valores básicos da justiça social, solidariedade, emancipação e igualdade. É o paradoxo do momento. Apesar de economistas dizerem o contrário, parece que a economia capitalista vai bem. Os países do Centro acumulam saldos. Desta sorte, ela se firma sob a égide do neoliberalismo, estabelecendo um jogo mútuo em que se criam certos comportamentos que são, ao mesmo tempo, consequência e estímulo desse tipo de economia. Ao colocar no centro do sistema o livre mercado, segue-se a necessidade de favorecer o consumo, a troca, a concentração do capital, a valorização da iniciativa privada, a eficiência, a competência, o aumento de lucro com consequente restrição de gastos. Esse conjunto de medidas coerentes tem produzido um crescimento ainda maior da economia com um desgaste de valores fundamentais da existência. Temos, pois, o paradoxo da expansão da economia e crise da existência.

 

III. Sintomas da crise pós-moderna da existência

As crises nos assaltam de fora e de dentro. Inseridos numa sociedade e numa cultura, sentimo-nos abalados quando os seus elementos estruturantes se desintegram. Semelhante a alguém habituado a fazer determinado percurso todos os dias e, de repente, defronta-se com uma mudança radical do panorama. Fica desnorteado.

Há sinais externos crescentes de uma desestabilização social que está atingindo cada vez mais pessoas. Está a mudar fortemente a concepção de trabalho, de emprego. Não é tanto o desemprego, como tal, que não deixa de ser grave e sério, mas a nova maneira de inserção das pessoas no mundo do trabalho.

Na sociedade tradicional e industrial, as pessoas, bem ou mal, escolhiam uma profissão ou assumiam determinado trabalho que lhes garantia por toda a vida o sustento, salvo algum percalço mais raro. Hoje a mobilidade no emprego cresceu enormemente em todos os níveis sociais. De maneira cortante, um professor do Instituto de Tecnologia de Massachusetts dos Estados Unidos dizia que o término do curso superior habilitava a pessoa para um ano de trabalho. Depois, deveria submeter-se a contínuas atualizações, que, não raro, são verdadeiras mudanças profissionais. Além disso, o tipo de desenvolvimento tecnológico em curso tem produzido um deslocamento massivo das pessoas, ora substituindo-as por máquinas, ora exigindo delas reaprendizado permanente.

A mobilidade profissional desgasta profundamente e gera insegurança nos trabalhadores. Uma contínua atitude de vigilância a respeito das mudanças em movimento no mundo do trabalho e do emprego absorve energia e demanda uma estrutura psíquica mais estável. E, precisamente hoje, as pessoas são mais frágeis psicologicamente.

A tendência do deslocamento dos setores agrícola e industrial para os serviços afeta fortemente os empregados. Pois os serviços pedem das pessoas mais habilidades e capacidades mentais, criativas. Além disso, gera uma concorrência mais acirrada. De novo incerteza, dúvidas e angústias.

De fora vêm também as pressões da mídia. Esta dilacera as pessoas, sobretudo as mais pobres, aprofundando ainda mais o corte entre desejo e realidade, sonhos e possibilidades reais. Todo ser humano, por ser “espírito em matéria”, portanto, terra aberta ao céu, horizonte onde se encontram as aspirações transcendentes e imanentes, vive já uma tensão insanável. Santo Agostinho formulou-a com a famosa frase das Confissões: “Inquieto, Senhor, está o nosso coração até que descanse em ti”.

A mídia amplia os desejos, já não da Pátria Celeste que nos é garantida pela fé para além da morte, mas da materialidade da terra. Ora, os bens celestes são gratuitamente dados por Deus. Os bens da terra precisam ser adquiridos a peso de dinheiro. A mídia provoca os desejos, mas não dá o dinheiro para adquiri-los.

Esse jogo engendra vários efeitos nefastos. Aumenta a tensão social, a insatisfação das pessoas. Não sem razão dizem alguns psicólogos que na origem de muitos atos de violência, de pequenos roubos, de assaltos fugazes, especialmente feitos por crianças e adolescentes, está o desejo de satisfazer um consumismo estimulado pela propaganda e para o qual não dispõem de recursos econômicos.

A sede do consumismo e do materialismo, mesmo satisfeita, provoca outro gênero de insatisfação existencial. Um adolescente alemão, mimado por seus pais, escrevia:

“Eu queria leite

e recebi a garrafa.

Eu queria pais

e recebi brinquedos.

Eu queria falar

e recebi um livro.

Eu queria aprender

e recebi diploma.

Eu queria pensar

e recebi conhecimentos.

Eu queria uma visão de conjunto

e recebi informações.

Eu queria ser livre

e recebi disciplina.

 

Eu queria amor

e recebi uma moral.

Eu queria uma profissão

e recebi um trabalho.

Eu queria felicidade

e recebi dinheiro.

Eu queria liberdade

e recebi um auto.

Eu queria sentido para a vida

e recebi uma carreira.

Eu queria esperança

e recebi medo.

Eu queria transformar

e recebi compaixão.

Eu queria viver.”

 

Esse é o sentimento de muitos jovens. Os bens materiais não suprem, em profundidade, as suas necessidades psicoafetivas. Os pais, que possuem recursos financeiros, mas que não têm tempo para os filhos, sobretudo por causa da vida urbana, agitada e superenvolvente, terminam por suprir essa carência, satisfazendo todos os desejos consumistas dos filhos. Um desastre pedagógico pelos dois lados, de falta de presença afetiva e de não saber colocar limites aos jovens em suas aspirações. É exatamente o que o adolescente alemão quis exprimir com seus versos realistas e doloridos.

Mais! O acesso à realidade faz-se cada vez mais na “versão mediática”, na simulação, na imagem. Mais exatamente, cada vez menos se consegue distinguir realidade e imagem, verdade e simulação, certeza e opinião.

A mídia produz “efeitos especiais”, fragmenta os objetos, embaralha as notícias, mistura as dimensões de tempo e espaço, sequestra os acontecimentos de seus contextos reais, e projeta tudo isso numa terrível simultaneidade e instantaneidade. Não há tempo para a reflexão, para a volta, para a distância crítica. Não se consegue recuperar o significado dos acontecimentos, tal é a abundância veloz de informações sem nenhuma referência de valores. A existência humana transforma-se em imenso vídeo, numa sucessão de clipes.

Conta-se que, por ocasião da Guerra das Malvinas, jovens argentinos reuniram-se diante da Casa Rosada, residência do presidente argentino. Naquele momento um militar, em clamorosos gritos, pediu a esses jovens para ir fazer a guerra. Eles foram. Na volta, estavam tristes e literalmente chorando por terem passado por tanto sofrimento e dor. Então um jornalista perguntou a um deles: “Como explicar o fato de passarem dos gritos eufóricos de guerra às lágrimas da tristeza?”. Um deles, na maior inocência, disse: “Pensávamos que a guerra fosse um grande videogame em que se pudesse brincar com a vida e com a morte. Mas quando vi tombar realmente morto a meu lado um companheiro e amigo, caí na real”. Aqueles jovens viviam a “realidade virtual” das telas e foram surpreendidos dolorosamente pela “realidade real”.

Acostumadas aos pseudoeventos espetaculares, apresentados na sucessão vertiginosa de imagens pela televisão, sem ligação entre si, sem lógica, sem origem e sem destino, sem ontem nem amanhã, só presas ao instante presente, as pessoas vivem sempre à espera de novidades. Desinteressam-se da verdade, prendem-se às emoções. Na linguagem juvenil, “pura adrenalina”. O telespectador goza da intensidade das sensações de superfície que as imagens oferecem, sem ativar consistentemente os mecanismos de identificação e projeção nos confrontos de personagens e caracteres.

Estamos imersos mais que numa “cultura de massa”, numa “cultura para as massas”, elaborada por elites interessadas, antes comercialmente que ideologicamente no sentido estrito. Tal cultura vem substituindo a “cultura popular”, criativa e autoexpressão do povo. Uma cultura para ocupar o lazer. Exerce controle sobre a sociedade, domesticando as pessoas na direção do consumo, do prazer, da idealização do real. A propaganda de um automóvel Renault dizia textual­mente: “Há um espaço reservado (alusão ao espaço interno do carro) para nós num país chamado amanhã (a compra do carro). O futuro nos pertence. Brilhará para nós uma luz (andar no carro Renault). Amanhã ultrapassaremos os limites do possível. Vamos compreender tudo o que hoje parece incompreensível. O tempo mudará em nosso favor. Amanhã (com o carro) a vida será mais fácil. Imperará a razão. O espaço será maior. Conseguiremos unir polos opostos: simples e racional; eficaz e ying/yang”.

Mais que a mídia, invade-nos uma cultura niilista. Na análise lúcida do psicanalista Jurandir Freire Costa[1], os jovens de Brasília, que assassinaram o índio pataxó Galdino, não são monstros: “Não sabem mais distinguir entre o que é ou não monstruoso, pois foram educados num tempo em que o horror perdeu seu aspecto extraordinário”. Esses jovens vivem num mundo de fantasia, sonhos. A realidade “feia, pobre, desdentada, não branca” é como se não existisse. Por isso podem eliminá-la a seu bel-prazer, incendiando o índio, o mendigo.

O niilismo impõe-se sem tragédia[2]. O sentido da vida, da globalidade fragmenta-se em cacos. Uns sofrem tal angústia. Outros preferem assumir uma postura cínica, desconhecendo as desventuras alheias e atendo-se aos mínimos gozos que colhem no cotidiano. Niilismo da verdade que dispensa os fundamentos do real. Basta o provisório. Ninguém precisa incomodar-se com a verdade do outro e muito menos deixar-se questionar por ela. É suficiente a sua própria, posto sejam migalhas. É o triunfo do que se convencionou chamar de “pensamento débil” diante da verdade dura, absoluta. Como na ciência da informação cada vez mais a produção de programas lógicos (soft) triunfa sobre a máquina (hard), assim a leveza das pequenas verdades provisórias impõe-se sobre a dureza rígida dos dogmas, das morais. “A rosa prístina (do real, da verdade) só existe de palavra, só temos palavras vazias”, poderia traduzir o dístico com que U. Eco fecha seu romance O Nome da Rosa:

 

Stat rosa pristina nomine

nomina nada tenemus”.

 

Niilismo do Bem, do Valor, da Religião (com B, V e R maiúsculos) em expressões múltiplas, plurais de bem, valores e religiões no minúsculo do cotidiano. Por isso cabe às pessoas ir compondo seu próprio sistema ético, de valores e religioso. “É proibido proi­bir”, já anunciavam esse novo programa os jovens franceses de maio de 1968.

Poderíamos multiplicar os elementos que configuram a crise existencial da pós-modernidade. Eles não esgotam, evidentemente, o momento atual, fazendo dele um momento escuro. Ao mesmo tempo, abrem-se clareiras, embora nem sempre sejam estradas bem definidas. Explorá-las pode fazer brotar esperanças para o campo da educação.

 

IV. Desafios à educação cristã

 

1. Pensar os fundamentos do real

Ser inculturado em seu tempo não implica uma inserção tal que se perca a consciência critica diante de seus limites e falhas. Ora, a modernidade pretendeu ir fundo no conhecimento da realidade. Colocou no trono do absoluto a razão humana. As consequências foram desastrosas. A razão em forma de ciência moderna, em vez de tornar-se a solução cabal e global para os problemas da vida social e pessoal, tem gerado problemas sem solução, irracionalidades sempre mais numerosas e maiores com risco de exterminar toda a vida do planeta.

Em reação a esse triunfo da racionalidade moderna, a pós-modernidade, numa de suas vertentes, opta pelo festejo da sem-razão. Renuncia pensar os fundamentos do real. Deixa as pessoas entregues ao puro provisório de que referíamos há pouco.

Uma educação de base cristã não pode capitular diante da tarefa árdua de preparar as pessoas para enfrentarem-se com a realidade em toda a sua profundidade. É sua missão desenvolver uma consciência crítica para perceber onde a modernidade e a pós-modernidade se encarreiraram pelos descaminhos da pretensão absoluta da racionalidade ou da sua renúncia total respectivamente. A raiz parece ser a mesma. Ambas acentuaram o corte entre o sujeito e o objeto. O homem moderno prometeico pensou poder dominar totalmente o objeto com suas análises e esqueceu os limites criaturais do sujeito. O pós-moderno descrente fixou-se de tal modo nas fraquezas do sujeito que renunciou a ir até os fundamentos do real. A visão cristã apresenta uma compreensão, do ser humano como criatura — limites —, chamada, no entanto, por Deus não só para conhecê-lo como último fim e fundamento de tudo, como também para entrar numa comunhão profunda de amor com ele. Nem racionalidade absoluta, nem irracionalidade desconfortante.

Essa dimensão duplamente transcendente do ser humano — criação e vocação à comunhão com Deus — o habilita não para a pretensão onipotente da modernidade, mas para perceber, nos inúmeros sinais da realidade, da história e da vida, a presença do transcendente. Esse sentido maior alimenta-lhe os sentidos menores. Redime-o do niilismo.

Outra fonte dessa dupla situação paradoxal de domínio total do real pode advir da separação exagerada entre meios e fins. De um lado, está o triunfo da razão instrumental que estabelece os fins segundo seus interesses e organiza os meios para sua obtenção com o tríplice critério da eficiência, competência e altos benefícios com baixos custos (modernidade)[3]. De outro lado, a renúncia a estabelecer fins autônomos, que valem por si mesmos, e viver mergulhado no mundo dos meios considerados neles mesmos (pós-modernidade). Mais uma vez, a educação cristã trabalha com dois princípios fundamentais que podem iluminar essa situação. Os fins devem ter seu valor por sua própria natureza e não por causa de interesses particulares. São os valores maiores da justiça, da liberdade, do amor etc. Não se justificam por nenhuma ideologia, mas por sua qualidade de participantes do Valor Supremo da Transcendência. E os meios, por sua vez, submetem-se também aos critérios dos mesmos valores, de modo que o fim não justifica os meios.

Em termos abstratos, isso parece evidente. Mas no concreto da história, vemo-nos frequentemente surpreendidos pela gravidade de tal questão. Tanto o estabelecimento dos fins autônomos, validados por eles, quanto a dignidade dos meios, não raro, escapam de nosso controle ético. Fins corporativos da Instituição Escola, até mesmo católica, justificam injustiças sociais em relação a funcionários, professores e alunos. Meios para salvar as suas finanças desconhecem a sua eticidade.

Ainda de modo mais concreto, os fundamentos da realidade na América Latina devem necessariamente ser pensados a partir dos pobres e excluídos. O terrível de nossa realidade é a gigantesca injustiça social, cujos dois pilares básicos são a péssima distribuição de renda sustentada por uma política econômica de longa data e a carência de reformas básicas (agrária, tributária, urbana, de saúde, educacional etc.), também elas impedidas por leis, judiciário, executivo e legislativo, envolvidos com as elites dominantes. Pensar o real é pensar a injustiça social nas suas causas estruturais e conjunturais. Pensar o real é pensar as saídas alternativas a curto e longo prazo. Portanto não é um exercício acadêmico filosófico de diletantes, mas uma tarefa grave e difícil de enfrentar a dura situação dos pobres num protesto ético e cristão.

 

2. Entre o desejável e o possível

Sob várias formas, a educação encontra-se hoje de braços dados com a tensão entre o princípio do prazer e o princípio da realidade, entre o universo do desejo e o da realidade possível, entre os sonhos e o realismo do concreto. A tensão não é simples de ser equacionada. E além do mais, houve, com o avanço da tecnologia, profunda mudança da relação entre o desejável, porque possível, e o indesejável, porque impossível.

O campo do desejável possível cresceu enormemente com as novas potencialidades tecnológicas que ampliaram muito o espaço do possível. Tal fato influenciou até mesmo o processo de secularização. Deus ocupava lugar importante como o realizador de muitos “desejáveis” percebidos, em dado momento, como impossíveis. Daí a frase tão repetida: “Para Deus nada é impossível”. Essa atitude embalava orações, promessas, devoções. Nutriu enorme comércio espiritual com Deus, procurando atraí-lo para nosso lado a fim de realizar os nossos desejos.

A tecnologia foi deslocando a Deus desse campo e foi rompendo sempre maiores horizontes. Graças a isso, muitos desejos tornaram-se possíveis. Às vezes eram desejos realmente legítimos, como o de uma criança que nunca conheceu os pais e consegue encontrá-los, usando os recursos da comunicação e dos exames laboratoriais de identificação.

Por outro lado, hoje existem muitas possibilidades abertas pela tecnologia que não são desejáveis. Nesse sentido, a educação tem a difícil tarefa de passar à nova geração que é falsa a igualdade possível (=desejável). É possível, tecnologicamente, que todos os seres humanos tenham automóvel próprio. Pode-se, no entanto, seriamente duvidar de que a realização dessa possibilidade seja realmente desejável. Esse questionamento vale para muitas pesquisas que afetam o campo da biologia, do controle sobre a vida e o comportamento humano, sobre o modo de produção, sobre o tipo de produto etc.

Sem ir tão longe, essa questão se levanta no dia a dia da educação. Há inúmeras possibilidades técnicas nesse campo. É possível que máquinas substituam professores. Será desejável? Muitos pais podem entupir seus filhos de bens de consumo, cada vez mais sofisticados, sobretudo no campo da eletrônica. Será desejável esse consumismo? A educação tem de fazer-se seriamente a pergunta de até onde, quais, em que medida tais “possibilidades” são realmente desejáveis.

Pode-se ver a questão desde outro ângulo. Há um impossível que é desejável, não no sentido dos tempos de Cristandade de entregá-lo unicamente a Deus, mas na perspectiva de criar utopias. Pertence precisamente à ideologia do momento presente dizer que, com a queda do socialismo, morreram as utopias.

Com efeito, no final da década de 60, H. Marcuse escrevia um livro sobre o “Fim da Utopia”[4] no sentido de que a tecnologia realizava já o que antes se tinha por utópico. E não mais surgiriam novas utopias exatamente porque o espaço do desejável utópico já estaria ocupado pelas realizações tecnológicas. Mais recentemente, F. Fukuyama, no muito badalado livro O Fim da História[5], não se acanhou de dizer que a democracia liberal americana, em conúbio indissolúvel com o capitalismo, realizou definitivamente a melhor expressão histórica da convivência política. Por isso não cabe lugar para o utópico. E, finalmente, a pós-modernidade também passou atestado de óbito às utopias a partir de outro ponto de vista. Tantas lutas e esforços das esquerdas e dos movimentos populares, para mudarem o sistema capitalista e a formação social atual, terminaram em rotundas derrotas. Portanto é melhor acomodar-se.

Para definir tal situação de descrédito utópico, o recurso à mitologia grega ilustra. A modernidade entronizou Prometeu na sua dupla forma hegeliana e marxista de conquista do real, como Prometeu roubou o fogo dos deuses. Com Hegel, pretendeu desvelar totalmente a racionalidade da realidade: “O que é real, é racional; o que é racional, é real”. Com Marx, ambicionou mudá-la: “Os filósofos limitaram-se a interpretar o mundo de modos diferentes; o que importa, porém, é transformá-lo”[6]. Ironicamente escrevia um autor espanhol, referindo-se à modernidade: “No calendário filosófico, Prometeu ocupa o lugar mais distinto entre os santos e mártires”[7].

Paulatinamente o espírito de Sísifo foi invadindo a modernidade. É inútil embarcar na dura tarefa hegeliana e marxista de dominar o real pelo conhecimento e transformá-lo pela ação. Ele resiste a ambos. Seria o mesmo que tentar levar uma pedra até o alto da montanha que, antes de atingi-lo, despenca. Então, que fazer? Responde outro pensador: “Prometeu é Sísifo. Deixemos a pedra rolar, desfrutemos a vida!”[8]. É melhor olhar narciseamente nosso belo rosto no espelho do lago. É a pós-modernidade cética e narcisista, sem utopia.

Nesse clima, interfere a educação. O sociólogo português Boaventura de Sousa Santos[9] sugere a criação de uma escola pragmática com duas classes. Uma classe da consciência do excesso para ensinar a não desejar tudo o que é possível, só porque é possível. Outra classe da consciência do déficit para ensinar a desejar também o impossível.

Na América Latina, de novo, essa classe da consciência do déficit necessita pensar o impossível no momento presente. Sua tarefa é imaginar saídas para a situação de pobreza e exclusão das maiorias do país. Só a partir daí tem sentido falar de utopia. O não lugar é ainda dos pobres e excluídos. Encontrar para eles um lugar de dignidade, de valor, de trabalho, de realização deve provocar a fantasia criativa dos políticos, economistas e de todos os que sonham com sociedade alternativa. Ao pensar uma utopia a partir dos pobres e principalmente para eles, certamente intervirão fatores e elementos que afetarão a todos. Ela obrigará modificações na concepção mesma do trabalho, do desenvolvimento da tecnologia, do significado do mercado e do capital, do tipo de relações sociais entre as pessoas. Não significa desconhecer que a sociedade visa ao bem-estar de todos. A novidade consiste em que o segredo desse bem-estar para todos não está no prosseguimento de um modelo excludente e voltado para estreitas camadas de privilegiados, mas, pelo contrário, na ampliação dos sujeitos participantes dessa situação.

 

3. Educar no horizonte dos limites

A crise da modernidade se acentua à medida que a razão instrumental desconhece os seus limites e a pós-modernidade também se enrosca em problemas toda a vez que a subjetividade franqueia todas as barreiras. Numa palavra, não reconhecer os limites tanto por parte da razão quanto da subjetividade gera para o indivíduo e para a sociedade riscos enormes, até mesmo de destruição de toda a vida.

Educar hoje implica mais do que nunca saber trabalhar o limite. As sociedades tradicionais, mesmo que quisessem, não conseguiriam ultrapassar fronteiras e ameaçar a sobrevivência da humanidade e a incolumidade do planeta Terra. Hoje podemos. Tão grave situação ainda não acordou suficientemente os educadores — família, escola, igrejas, mídia — para enfrentarem a questão da educação no, com e para o limite.

A onda de criminalidade entre adolescentes e jovens, para não dizer crianças, tem muito a ver com a absoluta carência de limite em sua consciência. Fazem o que querem. Há uma permissividade e impunidade que favorece esse estado de espírito. A famigerada “Lei de Gerson” — levar vantagem em tudo —, aplicada à vida social, é um desastre total.

A educação para o limite implica, antes de tudo, ir construindo um consenso ético a respeito do poder da razão instrumental, manejada pela ciência e pela tecnologia. Já há avanços na formulação de tais princípios. H. Küng formula-os de modo claro e apodíctico. Vale recordar em forma sucinta. Nenhum progresso científico pode causar mais problemas do que soluções. A inovação tecnológica ou industrial deve provar que não provocará danos sociais nem ecológicos. O interesse da comunidade tem preferência sobre o interesse individual à medida que a dignidade e os direitos humanos forem preservados. A urgência da sobrevivência de uma pessoa ou da humanidade prevalece sobre o valor em si mais elevado (realização de uma pessoa ou grupo). O sistema ecológico, que não pode ser destruído, tem preferência sobre o sistema social. Sobreviver é mais importante que viver melhor. Os avanços reversíveis têm preferência aos não reversíveis[10].

Referente às subjetividades individuais, a questão do limite é de relevância psicanalítica. A consciência do limite pertence ao estofo da normalidade psíquica. Se o homem prometeico da modernidade se coaliza com o hedonista narcisista da pós-modernidade, temos explosão detonante. Nada o detém na busca sôfrega do prazer de si, da aventura, das sensações violentas. Mais uma vez, vale recordar o exemplo-demonstração dos jovens criminosos de Brasília.

Na educação no e para o limite, há um equilíbrio difícil entre a repressão — sempre negativa — e a concessão desmedida, não menos prejudicial. Ceder sempre sem razão deforma o educando. Negar-lhe também sem motivo, reprime e diminui a credibilidade e a presença do educador. O limite deve ser posto, aduzindo sempre razão, que pode ser de diversas ordens, desde a impossibilidade material dos pais de concederem o pedido até os riscos desproporcionados previsíveis. Quanto mais clara, razoável e honesta é a razão do limite, tanto mais formativa.

 

Conclusão

A tarefa de educar cristãmente assume as cores do momento cultural. Haveria outras tantas a ser mencionadas. As indicadas aqui não são as mais importantes, nem as mais urgentes. Talvez sejam menos trabalhadas. A Campanha da Fraternidade tem o condão de suscitar discussões, provocar análises e encaminhar pistas de ação. Nesse movimento vão estas linhas de reflexão na esperança de que no final do ano a Igreja tenha crescido com o esforço de todos os que se empenharam no alerta lançado pela Campanha da Fraternidade.



[1] “A inocente face do terror”, in Jornal do Brasil, 22/6/1997.

[2] L. González-Carvajal, Ideal y creencias del hombre actual, Santander, Sal Terrae, 1992, 2ª ed.: 68.

[3] Charles Taylor, Le malaise de Ia modernité, Paris, Du Cerf, 1994: 12-16.

[4] H. Marcuse, Das Ende der Utopie, Berlim, Peter von Maikowski, 1967; trad. bras., Rio, Paz e Terra, 1969.

[5] Francis Fukuyama, O fim da história e o último homem, Rio, Rocco, 1992.

[6] K. Mam – E Engels, Textos filosóficos. Teses sobre Feuerbach, Lisboa, Presença, s/d: 13.

[7] L. Gonzálex-Carvajal, op. cit.: 161.

[8] Ibid., 162.

[9] Boaventura de Sousa Santos, Pela mão de Alice. O social e o político na pós-modernidade, São Paulo, Cortez, 1995: 106.

[10] H. Küng, Projeto de Ética Mundial. Uma moral ecumênica em vista da sobrevivência humana, São Paulo, Paulinas, 1992: 77/78.

Pe. João Batista Libânio