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Publicado em número 265 - (pp. 21-27)

O poder do Estado e a construção da justiça e da paz

Por Pe. José Boeing

“Nós, seres humanos, somos animais que dependem do amor.”

(Humberto Maturana, biólogo chileno)

 

Para os seres humanos, não pode haver coisa mais valiosa do que o respeito aos direitos da pessoa. Pessoa que, por suas características naturais, por ser dotada de inteligência, consciência e vontade, por ser mais do que simples porção de matéria, tem uma dignidade que a situa acima de todas as coisas da natureza. Mesmo as teorias chamadas materialistas, que não querem aceitar a espiritualidade da pessoa, sempre foram forçadas a reconhecer a existência, em todos os seres humanos, de uma parte não material. Existe uma dignidade inerente à condição humana, e a preservação dessa dignidade faz parte dos direitos humanos.

O respeito pela dignidade da pessoa humana deve existir sempre, em todos os lugares e de maneira igual para todos. O crescimento econômico e o progresso material de um povo têm valor negativo se forem conseguidos à custa do desrespeito aos direitos humanos. O sucesso político ou militar de uma pessoa ou de um povo, bem como o prestígio social ou a conquista de riquezas, nada disso é válido ou merecedor de respeito se for conseguido mediante ofensas à dignidade e aos direitos fundamentais dos seres humanos.[1]

Considerando a centralidade dos direitos humanos na organização da sociedade, este texto analisa o poder do Estado e a construção da justiça e da paz, com os seguintes destaques: a ordem econômica mundial e a exclusão social; a identificação da problemática da segurança pública; princípios para um novo Estado; possíveis caminhos de resistência e potencialização dos direitos humanos; justiça restaurativa. A reflexão parte do princípio de que só com base na garantia dos direitos humanos será possível efetivar a justiça e a paz.

 

1. A ordem econômica mundial e a exclusão social

Na atualidade, verifica-se que o neoliberalismo se afirmou como um esquema ortodoxo de dimensões sem precedentes históricos em virtude da sua amplitude e da sua força em nível mundial. Na “nova ordem mundial”, existe uma única base sobre a qual se discutem os problemas do mundo: a economia neoclássica. Proclama-se, praticamente como um dogma, a existência de um só caminho de “salvação” para todos os povos, sejam quais forem as suas tradições, valores, histórias ou costumes, do norte ao sul. O caminho apresentado chama-se mercado. A economia determina a vida coletiva do planeta, onde as empresas transnacionais são as instituições de controle privilegiadas e dominantes. Em tal lógica, os sistemas financeiros exercem maior controle do que as próprias transnacionais. Todos os mercados financeiros do mundo estão interligados. Essa nova “realidade” do biopoder (uso da vida como mercadoria e lucro) está transformando a face da comunidade internacional e gerando cada vez mais pobreza e destruição do meio ambiente.

Em toda parte se ouve o mesmo refrão: o único caminho para o progresso é o “mercado livre” global. Para poder concorrer nessa nova economia global, sublinha-se que: as empresas devem tornar-se mais eficientes por meio do redimensionamento e da reestruturação da sua mão de obra; os impostos e os regulamentos dos Estados criam obstáculos à iniciativa empresarial; os programas estatais de assistência tendem a criar dependências; os direitos sindicais e outras legislações interferem negativamente na flexibilidade laboral. Com base nesses princípios, os direitos dos trabalhadores são drasticamente reduzidos ou eliminados em favor dos grupos econômicos e seus lucros.[2]

A “ética” do capital pode ser lida com base na maneira pela qual os capitalistas se comportam na prática socioeconômica. Para eles, é bom tudo aquilo que estimula e facilita a maximização de lucros e a acumulação de riqueza material; e é mau tudo aquilo que os impede de alcançar esses objetivos. Por conseguinte, rejeitam toda regulação e controle pelo Estado que visem à redistribuição dos benefícios da criação de riquezas e limitem a liberdade do capital; por outro lado, acolhem alegremente toda intervenção estatal que concentra riqueza e poder nas mãos do capital e mantém sob controle o mundo do trabalho. O Estado brasileiro tem sido bom para o capital: em 1980, a partilha da riqueza nacional medida pelo PIB estava dividida pelo meio entre capital e trabalho; já em 2005, a proporção havia passado para 64% para o capital e 36% para o trabalho.

Tal modelo econômico, justificado sob a “liberdade”, é pensado para poucos; por isso, a exclusão torna-se evidente e visível, uma vez que, para os defensores do modelo neoliberal, se muitos países pobres desaparecessem, isso não faria diferença para o mercado. Essa arrogância do modelo que exclui deve ser barrada por alternativas de justiça social.

 

2. Identificação da problemática da segurança pública

A segurança pública é questão bem complexa. Ela deveria ser garantida pelo Estado e pelas diferentes instituições que atuam dentro dele. O que se constata é a existência de grandes áreas, tanto urbanas como rurais, em que não é o Estado quem normatiza e define os princípios de organização e convivência social. As regras em tais espaços não seguem a legislação estabelecida no âmbito nacional, mas, sim, as impostas pelos que controlam o poder local. Essas organizações, no geral também criminosas, expressam-se quase como um Estado dentro do Estado. Há espaços urbanos em que o Estado só consegue marcar presença, ainda que frágil, por meio da força armada, seja do exército, seja da polícia. Quanto maior seu distanciamento, tanto maior será a exposição das populações às disputas locais por controle e hegemonia. No campo, não é diferente, pois um Estado centrado nos grandes aglomerados urbanos pouco ou nada capta dos reais problemas que atingem cada realidade. Só no Pará, são mais de 300 pessoas ameaçadas de morte, mas apenas 20 recebem proteção do Estado, como exigência do Programa de Proteção dos Defensores dos Direitos Humanos, aprovado pela ONU e em funcionamento em alguns estados do Brasil. Essa situação, em grande parte, ocorre em razão da ineficiência ou total ausência do Estado no gerenciamento da coletividade. As populações ficam expostas à boa vontade ou não dos líderes de grupos do crime organizado ou de “consórcios” montados para proteger a propriedade privada e seus negócios. O clima de insegurança instaurado inviabiliza a autonomia dos indivíduos e suas instituições.

A intervenção capaz de prevenir a violência e a criminalidade é aquela que busca alterar as condições propiciadoras imediatas diretamente ligadas às práticas que se deseja eliminar. Grande parte dos conflitos advém do processo de criminalização dos movimentos sociais e das pessoas defensoras dos direitos humanos. Segurança pública torna-se, assim, uma constelação de temas que dizem respeito a diversas áreas de atuação do Estado e da sociedade, seja no campo da educação, da saúde, da habitação, do esporte, do planejamento urbano etc. O novo sujeito da gestão de políticas de segurança pública tem de ocupar uma posição estratégica nos diversos níveis de governo. Deverá ser um colégio de ministros, no Governo Federal, de secretários de Estado, nos governos estaduais, e de secretários municipais, nas prefeituras, apresentando a mesma abrangência da política a ser formulada e executada. A sociedade civil deve ser convocada para uma mobilização nacional pela construção social da paz. O diálogo com as sociedades locais criará condições para a negociação democrática dos contratos de cogestão, envolvendo o compartilhamento de responsabilidades na elaboração do diagnóstico, na seleção das prioridades, na identificação das metas e na avaliação dos resultados.

 

3. Princípios para um novo Estado

O problema nacional da segurança pública passa por um Estado criado para proteger a burguesia. O sujeito histórico da burguesia criou-o como base para manter a propriedade privada. Isto é, o Estado, entendido como Poder Legislativo e Judiciário, surgiu para proteger a propriedade dos “burgos”.

Em debate realizado na 4ª Semana Social Brasileira (Brasília, novembro de 2006), Carlos Signorelli, falando sobre o Estado e o seu papel nas transformações sociais, apontou como necessidade a missão histórica de refundá-lo, erigir um novo, que questione o velho Estado fundamentado no Poder Legislativo e no Poder Judiciário corruptos e sem espaço para a fiscalização. Sem esse processo, o Brasil nunca terá um projeto de nação. A ponte entre o Estado burguês e o novo Estado exige estratégias que vão à raiz da cultura, superando uma estrutura estatal que já nasceu privada. Por isso, o Poder Legislativo, o Poder Judiciário e o poder policial atuam no sentido de proteger os privilégios da elite burguesa do país. Na mesma direção, Thomas Merton afirma:

o verdadeiro problema moral da violência no século XX está obscurecido por pressupostos arcaicos e míticos. Nós tendemos a calcular a violência em termos do que é individual, confuso, fisicamente perturbador e pessoalmente aterrador… Isso é razoável, mas tende a influenciar-nos demais. Leva-nos a pensar que o problema da violência se limita a esta muito pequena escala, e torna-nos incapazes de apreciar o problema muito maior da presença mais abstrata, mais global e mais organizada da violência em nível das massas e dos grupos. A violência de hoje é uma violência de “colarinho branco”, a da destruição sistematicamente organizada, burocrática e tecnológica do homem.[3] É diante dessa realidade que emerge a necessidade e a urgência de identificar novos sujeitos históricos capazes de desencadear as transformações que viabilizem um Estado que contemple a pluralidade de forças atuantes e portadoras de direitos.

 

Há, na sociedade atual, forte tendência para limitar a compreensão da violência ao que é físico e individual, não a igualando às suas formas organizadas, burocráticas e sistêmicas, responsáveis pela atual cultura da morte. A violência manifesta-se na forma de maus tratos aos pobres e aos marginalizados, às mulheres e às crianças, aos idosos e outros grupos excluídos; na pesada carga de dívidas dos países mais pobres; no desemprego e no subemprego, e na destruição do ambiente. Os contrastes geram desigualdade, que, segundo Bertrand de Jouvenel,

constitui o principal tema dos séculos XIX e XX. Sem dúvida, não se trata de um tema novo: a novidade consiste no fato de se ter transformado progressivamente no tema dominante. Não estaríamos cometendo um grande exagero se disséssemos que a maior parte dos trabalhos importantes desses dois séculos poderia trazer um título: Das causas das desigualdades de fato e dos remédios próprios para aboli-las ou atenuá-las.[4]

 

O novo Estado deve garantir e afirmar que o cidadão é o destinatário dos serviços de segurança pública, como consta no Plano Nacional de Segurança Pública.[5] Isso significa reconhecer a necessidade de promover a transição de uma cultura de guerra para uma cultura de paz. As ações policiais devem passar a respeitar as diferenças de gênero, classe, idade, pensamento, crenças, etnia e orientação sexual, criando instâncias de proteção aos direitos dos diferentes, e o uso da força deve ocorrer apenas quando necessário e pautado em princípios técnicos, racionais e éticos. Os policiais mal preparados ou que exercem outros trabalhos (“bicos”) deslegitimam a natureza pública da segurança. A cidadania deve estar presente por força da Constituição, mediante cursos permanentes de formação de conhecimento sobre os direitos humanos para policiais e agentes de segurança pública, e ouvidorias externas às polícias que tenham papel fundamental na proteção e defesa da vida dos cidadãos e cidadãs. Nesse sentido, impõe-se ainda que a Justiça Militar deixe de julgar delitos extramilitares, que deverão passar a ser objeto de prestações jurisdicionais de juízos cíveis.

Os principais instrumentos de mudança das polícias estão ligados à educação, à ética e aos direitos humanos, para que possam estar comprometidas com a paz e a cidadania, e conectadas com os avanços das ciências, superando a compreensão equivocada dos direitos humanos e trabalhando com as comunidades organizadas de forma legítima, a fim de viabilizar uma ação conjunta em defesa da vida. Assim, será possível implementar políticas integradas que focalizem os três domínios fundamentais para a vida social: a casa, a rua — ou a comunidade e o bairro — e a escola, incluindo seu desdobramento profissionalizante, que conduz ao trabalho. Com isso, o Estado cumprirá a sua função de garantir a segurança de toda a coletividade fundamentado nos direitos de cada cidadão e cidadã.

 

 

4. Possíveis caminhos de resistência e potencialização

dos direitos humanos

As alternativas no campo da segurança pública e do direito do cidadão exigem uma atitude crítica perante o modelo capitalista, concentrador de poder e privilégios, e gerador de carências na população. Felix Wilfred, ao analisar a globalização e o compromisso dos cristãos em defesa dos pobres, é categórico ao afirmar:

nenhum cristão pode ser defensor tácito dum sistema que marginaliza os pobres. Digo “defensor tácito” porque a falta da nossa tomada de posição equivale a uma defesa. Hoje em dia, devemos dar-nos conta de que a opção a favor dos pobres também significa, necessariamente, uma opção contra um sistema econômico que continua a fazer um crescente número de vítimas. A fé não pode comunicar a vida se não tiver nada para dizer sobre os elementos primordiais que designamos por alimento, água, terra, casa, segurança etc.[6]

 

A justiça no reconhecimento e respeito à igualdade de cada pessoa e de cada cultura resultará do trabalho contínuo para arrancar os preconceitos pela raiz, numa atitude de conversão permanente. Em cada comunidade, os membros têm a corresponsabilidade de se convocar uns aos outros para tomar os direitos humanos como uma realidade na vida cotidiana.

Uma política democrática consiste justamente em propiciar ações capazes de superar o distanciamento entre carências e privilégios, determinados pela desigualdade econômica, social e política, que contrariam o princípio da igualdade. O desafio é passar das carências para a defesa dos interesses comuns que garantam a cidadania. Por meio desse caminho, será possível a efetivação de uma sociedade que inclua a todos, garantindo a justiça social.

A revolução da cidadania é o caminho lento que todo cidadão deve percorrer para alcançar a cidadania plena. Daí o problema do desaparecimento dos valores positivos, como afirma Battista Mondin:

No âmbito da cultura, lugar privilegiado cabe aos valores; assim, podemos dizer que, se a cultura é a alma da sociedade, os valores são, por sua vez, a alma da cultura. Por esse motivo, a grandeza de uma cultura é sempre proporcional à grandeza de seus valores. Uma cultura cresce, progride e prospera na medida em que cresce, progride e prospera a sua assimilação dos valores fundamentais; e uma cultura entra em crise e se esfacela quando seus valores espirituais entram em crise e ficam esquecidos.[7]

 

Trata-se de mudanças que ocorrem lentamente, pois a gestação de novos princípios e valores que servirão de parâmetros para uma sociedade fundamentada no direito constitui um processo permanente e insistente. É preciso insistir para que os juízes, os promotores públicos, o Ministério Público, a Defensoria Pública garantam os direitos de cada indivíduo e da coletividade. O ponto de partida é o exercício da cidadania aqui e agora.

Atualmente, a fraternidade está sendo redescoberta como verdadeira categoria jurídica, também no direito internacional. É o que afirma Cury:

um campo no qual a ação da fraternidade aparece evidente é no reconhecimento dos direitos humanos em âmbito internacional, com um apelo aos Estados de respeitá-los, protegê-los e realizá-los, sem nenhuma forma de discriminação. O próprio ordenamento internacional é interpretado através dos direitos humanos. É nessa perspectiva também que estão definidas as estratégias para a cooperação entre os países, sobre o fundamento da dignidade humana e os valores a ela inerentes.[8]

 

Existe, portanto, uma solidariedade natural, decorrente da fragilidade da pessoa humana, que deve ser completada com o sentimento de fraternidade por meio da força construtiva. É preciso investir mais nessa direção para que algo novo se efetive e os direitos de todos os povos sejam garantidos.

 

5. Justiça restaurativa

Constata-se que, enquanto a doutrina e a praxe do direito na época contemporânea evidenciam a tutela jurídica do indivíduo e dos direitos fundamentais, o mesmo não ocorre com a comunidade humana e as suas exigências. Embora reconheça a existência de interesses egoístas na sociedade, assim como o ódio e a violência que provocam os conflitos — dados sociológicos por ele enfrentados —, o direito constitui um instrumento destinado à prevenção e à solução dos conflitos, importante meio de conquistar a unidade do grupo em litígio. Exprime, por conseguinte, a força construtiva e não destrutiva do homem.

Essa realidade se manifesta, com maior evidência, nos vários ramos do direito privado, entre os quais o direito penal e o direito de família. Nesses campos, o direito tem como finalidade a convivência, de forma que sejam reduzidos os conflitos existentes. Além disso, estes não se restringem às partes litigantes, mas se refletem em todo o grupo e no seu ordenamento, assim como, no âmbito familiar, os relacionamentos não se desenvolvem somente entre irmãos, mas comprometem toda a família. Por isso, o binômio ofensor-ofendido parece atingir também novo significado por meio de instâncias atualmente difundidas em vários países, fortalecendo-se gradativamente os princípios de uma “justiça restaurativa”, que torna possível recompor os relacionamentos por meio da mediação de conflitos, da conciliação e da reconciliação entre as partes. Esse parece ser um espaço privilegiado para a fraternidade, que poderá representar a pedra de toque para a solução de inúmeros conflitos.

No direito, é confiado aos juristas um papel muito especial: traduzir as exigências de direito em respostas de justiça. Especialistas de todo o mundo reconhecem que esse percurso pode ser facilitado por um diversificado sistema de medidas penais diferentes da prisão. As penas alternativas à prisão, entre as quais a prestação de serviços à comunidade, exigem colaboração e projetos para introduzir experiências significativas, em que os diversos componentes da comunidade social, as forças empresariais e as associações se tornam parte ativa para a reinserção social do condenado. Os seres humanos, bem como todo o conjunto do planeta, não podem ser privados da vida. A paixão pela justiça, o desejo de paz e não violência, a solicitude pela justiça, paz e integridade da criação (Jupic)[9] como um todo são essenciais para que se possa viver na fraternidade.

O debate acerca das violações dos direitos humanos compreende as dimensões de reparação, proteção e promoção dos Dhesca — direitos humanos econômicos, sociais, culturais e ambientais[10] —, pondo às claras as dificuldades e os limites para o acesso a esses direitos por parte dos povos indígenas, afrodescendentes e trabalhadores e trabalhadoras de várias partes do mundo — uma vez que os direitos humanos são universais.

Essa é a energia da mudança que move a ação da cidadania contra a miséria a favor da vida, revelada na adesão de pessoas de todas as classes, idades, tendências políticas e religiosas, de parlamentares e prefeitos, de empresas públicas e privadas, de artistas e meios de comunicação e, sobretudo, de jovens à tarefa de recolher e distribuir alimento. A juventude está descobrindo o gosto de romper o círculo de giz da solidão e abrir espaço fecundo à solidariedade. Ninguém deve viver na miséria, pois todos têm direito à vida digna e à cidadania. A sociedade existe para isso, ou então ela simplesmente não cumpre o seu papel. O Estado só tem sentido se é instrumento dessas garantias. A política, os partidos, as instituições, as leis servem para garantir o direito de todos. Assim, os direitos fundamentais do ser humano, como as garantias e os cuidados do planejamento, só serão efetivados se os espaços de fraternidade forem ampliados. Essa é uma tarefa de todos.[11]

Muitos são os projetos de busca por alternativas para superar as violências e construir uma cultura de paz. Na promoção da cidadania e na defesa da vida e dos direitos humanos na região de Santarém, no oeste do Pará, por exemplo, realizamos iniciativas democráticas de conciliação e mediação dos conflitos, por meio da formação de agentes comunitários de justiça e paz, organizada pelas entidades de direitos humanos do Pará, pela Comissão de Justiça e Paz da Diocese de Santarém e pela Comissão Verbita Jupic na Amazônia, com 100 horas/aula. Essa formação contribui para transformar os cidadãos comuns em sujeitos atuantes na sociedade, que tomam para si a tarefa de intervenção no aspecto de superação dos conflitos e, por isso, não a transferem às autoridades do Poder Judiciário, que, muitas vezes, apenas desenvolve um processo de investigação, condenação, detenção e punição dos infratores da norma jurídica. Com efeito, faz-se mister dar passos em direção à defesa da dignidade humana, repensando a “justiça punitiva”, e alargar os horizontes do comportamento humano, garantindo que aquele que pratica o delito possa experimentar o processo da justiça restaurativa. Podemos citar aqui o exemplo de Moisés em Ex 18,18-30, em que Jetro, seu sogro, o adverte sobre o perigo de querer solucionar as contendas a seu modo, não respeitando as tradições e costumes e impondo uma visão centralizadora e sem organização. Dividir tarefas é o caminho para quem acredita na fraternidade e na organização compartilhada em cada instância.

Essa iniciativa de trabalho, buscando resolver os conflitos por meio do diálogo e da comunicação da não violência, trouxe à Igreja e à sociedade civil organizada as consequências de seu próprio testemunho: o martírio. Quem trabalha para o reino de Deus encontrará oposição e até a morte. A história recente registrou exemplos de vidas entregues para o bem dos pobres e dos rejeitados, vidas de profetas e mártires do reino de Deus. O bispo Dien (do Vietnã) é citado muitas vezes por causa da declaração profética que fez no Concílio Vaticano II, ao dizer: “Nós temos muitos mártires, sim; mas teremos mártires da justiça?”. Homens e mulheres cheios do Espírito de justiça e de paz desafiaram os poderes.

Hoje, a sociedade civil organizada exige respostas mais concretas à questão da segurança pública no Brasil. Está comprovado que o sistema penal não recupera o preso, a não ser que este mesmo faça o firme propósito de melhorar. Ao contrário, a justiça restaurativa tem a força de superar o ódio e a vingança, colocar agressor e vítima frente a frente e reparar o mal. O que se busca é, por meio do diálogo e da mediação do juiz ou de pessoas preparadas para exercer essa função, realizar um pacto, estabelecendo uma restauração da vida humana e promovendo a justiça.

São muitos os lutadores da paz e da esperança, entre os quais se destaca o grande líder pacifista Martin Luther King, que nasceu nos Estados Unidos em 1929. Advogado, negro, defensor dos direitos humanos, principalmente dos negros, sonhou com um país unificado pelo amor e pelo espírito, sem os impedimentos das barreiras da cor ou da raça. Entre outras profecias, proclamou: “Eu tenho um sonho: o de que os meus quatro filhos haverão de viver, um dia, numa nação onde não serão julgados pela cor da sua pele, mas pelo conteúdo do seu caráter. É esta a nossa esperança. É esta a fé que tenho… E, com esta fé, nós conseguiremos cortar, da montanha do desespero, uma pedra de esperança”. Por isso foi assassinado em 1968. Imensa é a lista de martirizados pela causa do reino da justiça e da paz: irmã Dorothy Stang, dom Oscar Romero, Gandhi, inúmeros leigos e leigas da América. Vale recordar a lucidez de Nelson Mandela, na luta contra o apartheid na África do Sul: “Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender; e, se podem aprender a odiar, podem ser ensinadas a amar”.[12]

Construir um Estado de direito fundamentado na justiça e na paz é missão permanente. Nesse processo, a fraternidade é excelente caminho, o qual, por isso, é preciso urgentemente seguir.



[1] Débora Borges. Cartilha de direitos humanos. Palmas: Primavera, 2003, p. 6.

[2] Relatório do Desenvolvimento Humano. Publicação anual do UNDP (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento).

[3] Terry Miller; Marie Dennis. “The global face of violence”, in: Conference of Major Mens, Superiors. 1996, Washington, D.C. Shalom strategy: a manual to promote nonviolence, reconciliation and peacemaking. Washington, D.C., 1996, pp. 164-172. Sobre o Estado burguês, cf. Mutirão por um Novo Brasil. 4. Semana Social Brasileira. Brasil: Verbo Filmes; Comissão Episcopal Pastoral, 2006. 2 DVDs (200 min.).

[4] Terry Miller; Marie Dennis, op. cit., p. 172.

[5] IPEA. Boletim de Políticas Sociais: acompanhamento e análise, nº 7, ago., 2003.

[6] Felix Wilfred. No salvation outside globalization. Sedos, Roma, nº 305, 1996.

[7] B. Mondin. Quem é Deus?: elementos de teologia filosófica. São Paulo: Paulus, 1997, p. 249. Cf. Dirceu Galdino Cardin. A revolução da cidadania. Florianópolis: OAB, 2006, pp. 20-21.

[8] Afife Cury; Munir Cury. “Direito e fraternidade se abraçam”. Cidade Nova, São Paulo, nº 1, jan.-fev., 2006, pp. 22-23.

[9] Salmo 85,14; JOÃO XXIII. Pacem in Terris. 48ª ed. São Paulo: Paulinas, 2000, p. 9.

[10] Sérgio Sauer. Violação dos direitos humanos na Amazônia: conflito e violência na fronteira paraense. Goiânia: CPT; Rio de Janeiro: Justiça Global; Curitiba: Terra de Direitos, 2005, pp. 51-66.

[11] J. Baptista Herkenhoff. Justiça, direito do povo. Rio de Janeiro: Thex, 2002, pp. 61-81.

[12] Diversidade religiosa e direitos humanos. Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Brasília: Abril, 2007. 1 DVD.

Pe. José Boeing