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Publicado em número 176 - (pp. 9-13)

O Fundamentalismo questionado pelos Fundamentos Teológicos nos quais quer se fundamentar

Por Prof. Renold J. Blank

1. A fé bíblica: Uma fé marcada pela dinâmica de uma caminhada histórica, rumo a novos horizontes, acompanhada por Deus

Quem questiona os textos bíblicos sobre os fundamentos verdadeiros da fé não encontra um sistema de dogmas e definições cimentadas.

Quem questiona os textos bíblicos sobre onde encontrar a sua segurança absoluta e imutável não encontra um sistema fechado de receitas que — de uma vez por todas, desde a origem e para toda a eternidade —, nunca mais podem ser mudadas e adaptadas.

Quem questiona os textos bíblicos sobre onde encontrar a sua segurança e como viver a sua fé encontra um povo itinerante; um grupo de pessoas em busca de seu caminho, inseguros sobre o destino desta sua caminhada, errando, se perdendo e começando de novo, numa constante conquista daquilo que se chama: “O futuro”. E o único motivo para eles não desesperarem nas suas dúvidas e na sua insegurança é a confiança absoluta de que nunca estão sozinhos, porque Deus está junto com eles: Deus em cuja fidelidade eles tinham confiança; Deus que se revelou como sendo um Deus itinerante, um Deus a caminho, um Deus que compartilhava e que compartilha todos os altos e baixos desta caminhada.

Por causa de tal confiança caminhavam, e Deus caminhava com eles. Caminhando juntos, descobriram novos horizontes e responderam a novas situações, a novos desafios que nunca antes tinham conhecido. E eles responderam a partir de sua situação atual. Não se referiram ao passado, porque nunca, talvez, no passado, tais situações tinham acontecido. Confrontaram-se com o novo, e Deus estava com eles…

É assim que a história daquela caminhada se apresenta. É assim que os participantes da caminhada descobriram passo a passo aquilo que significa ter fé. E é isso, finalmente, que o observador de hoje descobre, quando questiona a Bíblia sobre o que deveria ser a sua fé, sobre onde deveria buscar o fundamento e a segurança nesta fé.

“Levante!” — diz Deus, “ai, você vai descobrir!”

“Levanta, assume o risco, não tenhas medo, porque eu, teu Deus, estarei contigo”! (cf. Ex 3,4; 4,12).

É assim que Deus fala, e com isso já estamos no centro da problemática de uma atitude fundamentalista.

O fundamentalismo não assume o risco. O fundamentalismo quer um fundamento seguro, histórico, definido uma vez para sempre e para todos; verdades absolutas, garantidas, na medida do possível, por um representante visível dessas verdades. Essa é a mentalidade fundamentalista, mas não a mentalidade de Deus. Devido a essa contradição, estamos perante o fato paradoxal de que é exatamente aquela mentalidade religiosa que mais se refere à ortodoxia, a mentalidade fundamentalista, que mais se afasta da verdadeira fé bíblica.

Queremos mostrar isso passo a passo, analisando os elementos-chave daquela mentalidade que chamamos fundamentalista, mostrando como ela, hoje, contradiz a atitude de Jesus Cristo exatamente da mesma maneira como, na época de Jesus, a concepção dos fariseus e sacerdotes contradizia a visão dele.

 

2. Para Jesus, o ser humano está acima de qualquer doutrina

Contra o legalismo doutrinário dos sacerdotes e doutores da lei, Jesus sempre afirma que antes de qualquer doutrina lhe interessa o ser humano concreto, histórico, que vive a sua vida. E à medida que uma doutrina ou uma lei esmaga aquela vida, Jesus rejeita a lei e rejeita a doutrina.

“O sábado é para o homem, e não o homem para o sábado” (Mc 2,27; cf. também Mt 12,1-8; 18,1-8; Jo 5,9-19; 7,23; 9,14-16).

A lei da pureza perde o seu valor, quando ela esmaga o homem (cf. Mc 7; Lc 10,30-37).

As atitudes de amor e de misericórdia valem mais do que a realização dos sacrifícios prescritos pela lei (cf. Mt 9,13; 12,7; Os 6,6).

Resumindo tudo isso numa única concepção, constatamos que, para Jesus, a descoberta daquilo que é vontade de Deus não depende de uma lei ou de um sistema religioso estático. A vontade de Deus se descobre na situação concreta, histórica, na qual o ser humano se encontra. Essa atitude sofre repreensão pela mentalidade fundamentalista. “Este homem não observa o sábado!” (Jo 9,16). Este homem não observa a lei! Este homem não observa o fundamento sacrossanto, imutável, definido uma vez para sempre acima de qualquer situação ou constelação histórica e concreta.

Para uma mentalidade fundamentalista, a lei está acima das pessoas, e a instituição cimentada e imutável vale mais que os caminhos tortuosos da história. Isso porque esta história muitas vezes se apresenta de maneira incompreensível. Descobrir nela a presença de um Deus que, de alguma maneira, está presente, é bem mais difícil do que referir-se a uma ordem imutável, revelada por Deus para todos os tempos. É isso, porém, que o fundamentalismo faz, e na sua tentativa de fundamentar a reta ordem unicamente no passado, ele se revela como sendo um sistema a-histórico e anti-histórico.

 

3. A fundamentação histórica do fundamentalismo ofusca uma atitude anti-histórica e a-histórica

O fundamentalismo, que tanto acentua a história como a base do sistema religioso ou moral, se revela como sendo, no fundo, totalmente a-histórico. Isso porque história significa sempre movimento, caminhada, aparecimento de algo novo, abertura de novas portas. É a revelação de algo que até agora não era conhecido.

Uma verdadeira atitude histórica deve levar em consideração esta dinâmica da história rumo a um futuro novo. Essa dinâmica, aliás, marca a história do povo de Israel e o pensamento escatológico de Jesus.

O fundamentalismo se fecha exatamente perante esse novo. Ele se fixa no histórico, vendo nesse histórico só o lado do passado. História, porém, tem também o aspecto de um futuro que virá. A história está aberta para o futuro e para o novo. E, quando dizemos que Deus é um Deus histórico, queremos acentuar esse aspecto. O aspecto de uma dinâmica progressiva rumo ao novo. Queremos acentuar que, em algum lugar dentro deste pro-gredir, está Deus. Escondido nos acontecimentos, chamando os seres humanos para que eles o des-cubram, construindo, assim, o mundo que este Deus quer. O fundamentalismo, porém, carece dessa visão dinâmica da história. A sua referência histórica é estática e dirigida unilateralmente para o passado. Em consequência disso, o fundamentalismo quer manter um sistema religioso fechado, dentro de uma realidade histórica de sistemas abertos.

 

4. A concepção de um sistema religioso fechado contradiz a vontade salvífica de Deus

Hoje em dia a história do mundo se apresenta de maneira multiforme como pluralismo quase ilimitado de opiniões e de atitudes. Uma tal estrutura pluralista do mundo, no entanto, ameaça aquele tipo de consciência que se identificou com uma concepção religiosa estática, em que de antemão se tem a convicção de ter a verdade nas mãos.

Baseada numa tal concepção, a religião forma um sistema fechado que se distancia do pluralismo caótico de um mundo cada vez mais complexo, alegando que este mundo só deveria aceitar a verdade que o sistema religioso oferece.

Tal atitude, porém, não é diálogo, mas imposição que, no fundo, não mudou ainda a pretensão de ser o único caminho de salvação. O passo para uma atitude elitista, na qual o sistema religioso se vê como o grupo daqueles que foram eleitos de maneira exclusiva, não está longe. Além disso, é claro que todos aqueles que questionam o sistema construído se tornam uma ameaça. E, no “zelo santo” de eliminar essa ameaça, o passo para a intolerância, o fanatismo e a atitude inquisitorial não está longe.

Os representantes de um sistema religioso fechado, os assim chamados fundamentalistas, esquecem uma verdade sociológica indiscutível: todo sistema fechado está sujeito à estagnação. Todo sistema fechado tem a raiz de sua própria morte dentro de si. A busca de segurança que motiva o fechamento de um sistema dentro de si-mesmo, é, ao mesmo tempo, o início de seu desaparecimento. Isso vale para sistemas biológicos, para sistemas sociológicos, e até para as tentativas de uma reestruturação tradicionalista, como nós encontramos seja no fundamentalismo muçulmano, nas muitas seitas americanas, e também nas exigências de reconstruir uma Igreja tradicional, una, santa, católica e romana. Todas essas tentativas se afastam da verdade fundamental de que nenhum sistema religioso é um valor em si. O valor dele é ser instrumento do agir salvífico de Deus; e esse agir não se dirige exclusivamente a um grupo fechado, mas sempre ao mundo inteiro, global e total.

A globalização do agir de Deus é um dos elementos-chave da mensagem de Jesus. O Deus de Jesus não é o Deus de uma pequena elite de eleitos, ele é o Deus de todos e quer a salvação de todos (cf. Rm 3,29; 4; 2Cor 5,20; Gl 3).

A sigla para esta vontade de Deus é o REINO DE DEUS. E este Reino, outra vez, não é sistema fechado, mas, bem pelo contrário, aberto para todos.

Reino de Deus não se constrói pela aplicação de sistemas legalistas, mas dentro de uma dinâmica histórica e pluralista.

No entanto, é exatamente esse pluralismo que questiona e ameaça um sistema religioso fechado. Os adeptos de um tal sistema sentem medo. E, por causa de seu medo, eles buscam seguranças dentro do sistema e atrás do sistema, fazendo, assim, exatamente a coisa errada. Porque Deus, em vez de cimentar sistemas, chama as pessoas a saírem de seus sistemas fechados, para formar sistemas abertos e dinâmicos, em uma palavra, a se porem a caminho. A caminhada de Abraão e a caminhada de Moisés com o povo se apresentam como paradigmas inquestionáveis de uma tal atitude. O fundamentalismo, porém, tem medo exatamente disso. Ele tem medo de deixar para trás as seguranças de seu sistema cimentado. Ele tem medo de abrir o sistema, de assumir os riscos de uma caminhada na qual entrará em contato com uma pluralidade imensa de opiniões e de concepções.

No fundo, o fundamentalismo apresenta uma falta tremenda de fé. Por causa dessa falta de fé, tem medo. E, devido ao medo, quer construir sistemas de segurança absoluta. Sistemas supostamente baseados em Deus, mas na realidade fundamentados num ídolo construído pelos próprios homens.

 

5. O fundamentalismo é idolátrico

Na sua tentativa de ter um fundamento inquestionável e absoluto, os adeptos de uma mentalidade fundamentalista se sentem muito facilmente os representantes desse absoluto, agindo em seu nome, como únicos representantes legítimos e legitimados.

A consequência de uma tal atitude já se vê nos confrontos de Jesus Cristo com os representantes do templo: um legalismo fechado, a partir do qual, o próprio sistema se torna o parâmetro absoluto de tudo. O ser humano, consequentemente, está sendo compreendido, cada vez mais, como sendo o servidor deste sistema absoluto, que com vigor transmite a imagem de um deus de vigor. A partir do momento, porém, que o sistema se torna absoluto, ele assume características de um deus, um deus falso, um ídolo, mas nem por isso um deus que exige obediência absoluta. E já estamos outra vez perante a situação de um sistema religioso que se autodenominou a última instância e que degradou o ser humano a se tornar seu servidor.

Nesse sentido, o confronto entre Jesus e os fariseus, sacerdotes e escribas se estende até os dias de hoje.

 

6. O fundamentalismo busca segurança absoluta

O fundamentalismo busca segurança nas instituições, porque ele se sente ameaçado. Num mundo caótico, marcado pela perda de valores fixos, ameaçado por catástrofes sociais, climáticas, atômicas e de meio-ambiente; num mundo onde a instabilidade social, a fome, o divórcio, as drogas, o desemprego, a violência e a destruição da camada de ozônio ameaçam todas as seguranças antigas, o ser humano está no perigo de perder a sua identidade. Não há mais orientação e união, tudo parece flutuar, tudo é questionado. Numa tal situação, a busca acentuada de valores tradicionais parece prometer a recuperação de toda aquela segurança que se perdeu. E é exatamente nessa perda de segurança, nessa perda de identidade em frente de um mundo em total reestruturação, que nós devemos ver a raiz mais profunda do fundamentalismo. Nele se manifesta a impossibilidade de pessoas ou de instituições aceitarem os desafios da situação histórica, confrontarem-se com esses desafios e construírem no meio desses desafios um projeto aberto para o futuro e aberto para Deus.

O fundamentalismo não tem perspectiva aberta para o futuro, e, por causa disso, se dirige ao passado, buscando ali o fundamento para “uma ordem eterna, imutável” que pode ser o fundamento em cima do qual a pessoa ou a instituição possa recuperar a sua identidade perdida.

Nada melhor quando, nessa busca de uma ordem cimentada e estática, se encontra até uma justificação divina dela. Nesse caso, estamos perante aquilo que chamamos “fundamentalismo religioso”, atitude crescente também em muitos cristãos.

Quanto mais a pessoa ou a instituição se sentem inseguros, tanto maior é a tendência de acentuar esse fundamento através de um sistema legalista, imutável e fechado em si-mesmo. Uma tal ordem, é claro, fica acima do ser humano, fica acima de seus problemas pessoais, fica acima da história e de seus desvios, e quem não a quer aceitar deve ser expulso, o que também é lógico dentro dessa mentalidade — ou, se não expulso, “recuperado”, caso necessário com força e contra a sua vontade —, e já estamos no contexto de novas fogueiras, de novas inquisições e de uma intolerância agressiva contra todos e tudo que não participa da mesma opinião. O fundamentalismo é intolerante, e por trás dessa intolerância se esconde mais uma vez o medo.

O fundamentalismo foge dos desafios históricos, porque esses desafios questionam a sua própria identidade.

O fundamentalismo pode-se tornar agressivo, porque tudo aquilo que não é como ele questiona a segurança tão desesperadamente buscada.

É exatamente na busca desesperada de segurança que o fundamentalismo se afasta de Deus; daquele Deus que ele mesmo tanto reclama como sendo o fundamento de sua atitude. Porque o Deus bíblico não optou pela segurança estática de um sistema cimentado, mas pela dinâmica histórica daquilo que Jesus Cristo chama o Reino de Deus.

O Deus bíblico, em vez de se basear em ordens estáticas, optou pela dinâmica de uma caminhada histórica. Ele nos chamou para agir nessa caminhada, em meio aos desafios, às dúvidas e respostas pluralistas. A única segurança que ele nos dá é a sua palavra: “Eu estarei com vocês!”.

Aí está o verdadeiro fundamento daqueles que têm fé. Baseados nesse fundamento, eles podem jogar-se no meio da história e de seus desafios; baseando-se nessa fé, eles podem descobrir futuros novos e entrar em diálogo com qualquer opinião. Baseados nessa fé, podemos abrir o nosso sistema religioso aos desafios do mundo, porque é neste mundo e nesta história que Deus nos chamou para a realização de seu grande sonho: Um sonho aberto para o futuro. Um sonho em cujo centro se encontra o ser humano e a sua história. Um sonho dinâmico e processual, que Deus vai realizar através de nós no meio dos conflitos dialéticos deste mundo. Um sonho para o qual Jesus Cristo usou o nome de REINO DE DEUS. E esse REINO, como o próprio Jesus falou, já está se formando de maneira dinâmica no meio de nós (cf. Lc 17,21).

 

Prof. Renold J. Blank