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Publicado em número 214 - (pp. 17-21)

O Sagrado na ótica feminina (2ª parte)

Por Ir. Lina Boff, smr

VI. O sagrado e a santidade na Sagrada Escritura

Para introduzir a segunda parte deste artigo, iniciado em número passado desta revista (pp. 13-18), fazemos duas considerações. A primeira é referente ao espaço sagrado. Este é um espaço dedicado e consagrado ao sacro. É qualitativamente diferente dos demais espaços. Quando Moisés quis aproximar-se da sarça ardente, Javé o chamou e disse-lhe: “Não te aproximes daqui; tira as sandálias dos pés porque o lugar em que estás é uma terra santa” (é lugar sagrado) (cf. Ex 3,5). Todo espaço no qual se dá uma irrupção do sagrado torna-se um espaço consagrado à divindade. O sonho de Jacó no qual viu a escada que se erguia da terra até o céu (cf. Gn 28,12-19), tem um simbolismo muito forte porque indica a sacralidade daquele lugar, que é consagrado a Javé por ser sagrado, lugar de passagem da terra para o céu.

A segunda consideração é referente à experiência religiosa da vida que tende a tornar-se cada vez mais concreta e mesclada com tudo aquilo que a pessoa pode sentir, ver, apalpar. E torna-se cada vez menos próxima da transcendência que ultrapassa a realidade concreta sem ofuscá-la ou encobri-la. No caso do povo hebreu, por exemplo, este dirigia-se a Javé só depois de haver sofrido sérias derrotas históricas (cf. 1Sm 12,10).

Tanto o povo hebreu como outros povos mais antigos, ao descobrirem a sacralidade da vida humana, deixaram-se arrastar por alienante e ingênuo entusiasmo, distanciando-se daquela sacralidade que transcendia suas necessidades imediatas e cotidianas. Consequentemente, distanciaram-se da origem do sagrado que nasce da santidade de Javé e que se dá na vida humana, sim, mas plenifica-se na aceitação de Deus e seu mistério, reconhecendo que este sagrado é impronunciável. Ver-se-á agora como a proposta cristã inclusiva se dá no Antigo e no Novo Testamento.

 

1. Antes de Jesus

Os escritos bíblicos do AT mostram que não existe uma noção abstrata do sagrado, nem uma teoria relativa ao sagrado. Este vem sempre colocado em relação com Javé, o Deus de Israel. Para os autores que, sob inspiração divina, escreveram os Livros que chamamos de Sagrada Escritura, acentuam-se alguns elementos sagrados, que, com o passar dos séculos e dos milênios, passam a ser considerados como elementos não só sagrados, mas santos, porque criam para as pessoas condições de santidade. Há nos escritos do AT certa abundância de determinações que distinguem a esfera sagrada da profana, sobretudo quando se fala dos sacerdotes do templo. Sabe-se que era função dos sacerdotes delimitar e proteger a esfera do sagrado. Na lei de santidade (Lv 17-26) encontramos claras determinações sobre o sacro. Por exemplo, todo o povo de Israel é sagrado (Lv 19,2), os sacerdotes, os sacrifícios e as festas são santos (Lv 17-23).

Os escritores vétero-testamentários situam o sagrado no contexto da transcendência de Deus. Uma das expressões fortes dessa transcendência é encontrada no capítulo 6 do Livro de Isaías quando este fala de sua vocação, do chamado que Javé lhe faz. O profeta descreve a revelação da santidade de Deus por ele mesmo e pelo seu nome. Diz o profeta: “Vi o Senhor sentado sobre um trono e acima dele, em pé, os serafins que clamavam uns para os outros e diziam Santo, Santo, Santo é o Senhor dos Exércitos, a sua glória enche toda a terra” (cf. Is 6,1-3). Compreende-se aqui que o verdadeiro sagrado é aquele que nós não somos capazes de pronunciar, e tudo o que era sagrado ao povo hebraico se relacionava com Javé. Por isso Javé é o Santo, Santo, Santo.

Encontramos críticas dos profetas às delimitações feitas entre o sagrado e o profano. Essas críticas são feitas em duas direções: a primeira expressa a esperança de que chegará o tempo em que o universo inteiro será sagrado. Zacarias prevê uma sacralização de todas as coisas em Israel: Algum dia serão santos não só o templo, mas também os objetos da vida cotidiana, e não haverá mais nenhum vendedor na casa de Javé (cf. Zc 14,21).

Os contemporâneos do tempo do profeta Amós acreditavam encontrar Deus nos santuários de Betel, Guilgal e Bersabeia. Fora dessa esfera sagrada não se preocupavam mais com nada que fosse referente à vontade de Javé. O profeta lhes grita: Procurai-me e vivereis! Não procureis Betel, não entreis em Guilgal e não passeis por Bersabeia. Procurai a Javé e vivereis (cf. Am 5,4-6). Buscar a Deus não significa obrigatoriamente imergir na esfera do sagrado, mas praticar o bem e evitar a injustiça que é o mal. Trata-se de seguir com fidelidade os ensinamentos de Javé e não esquecê-los, mas viver de acordo com o pacto feito com ele, pois a vontade de Javé se encontra em todas as partes.

A segunda crítica que os profetas fazem afirma que a santidade é encontrada só em Deus e considera tudo o resto como profano. Jeremias combate seus contemporâneos criticando a autossegurança com que proclamam a presença de Javé no templo, embora depois, fora dele, esquecessem dos preceitos do Senhor. Diz Jeremias: “Não vos fieis em palavras mentirosas proclamando: ‘Este é o Templo de Javé, Templo de Javé, Templo de Javé!’” (Jr 7,14). A vontade do Senhor se encontra em todas as partes, também na esfera profana. Toda a vida deve ser sagrada e santa, não somente para algumas pessoas, lugares, objetos e templos. Como o AT, o NT também afirma que só Deus é santo, mas as suas criaturas e toda a criação são santificadas por ele.

A “lei de santidade”, já referida, pede: “Sede santos, porque eu, Javé vosso Deus, sou santo” (Lv 19,2). Não quer dizer que a santidade de Deus seja comparada à nossa. Fala-se de Deus que é santo; as pessoas humanas devem tornar-se santas. A partir do dia em que cada um de nós alcançar o temor de Deus, recebendo dele a doutrina, pondo a nossa liberdade entre as suas mãos, e o tivermos feito com sinceridade, todos seremos santos. Mas precisa reconhecer que somos pessoas santas santificadas. Porque só Deus é verdadeiramente sempre santo.

Como se vê, o AT afirma a revelação da santidade de Deus. Depois da Aliança, esta santidade é compartilhada com o povo eleito. A Arca da Aliança é o sinal tangível disso. Essa compreensão é vivida pelos autores do NT que fazem uma opção pela palavra SANTO. Com essa palavra qualificam Deus Pai, Jesus Filho e o Espírito Santo; qualificam os bens messiânicos, a Igreja-Povo, o culto, os cristãos. A palavra santo (em hebraico qados, traduzida para o grego hágios), não pode ser confundida com a palavra sagrado (em grego hierós). O fundamento que realiza a unidade do Pai-Filho/Espírito Santo é a SANTIDADE, que qualifica a Igreja-Povo e os fiéis imersos na santidade realizada pela mediação de Cristo. O sagrado cristão, portanto, neste caso, é o sagrado do Deus vivente que se faz presente nesta única e irrepetível mediação, a de Jesus Cristo, o Messias revelador do Pai e do seu Projeto.

Como antes de Jesus, no tempo dele e depois dele os escritos sagrados afirmam que só Deus é SANTO. E as suas criaturas, como toda a criação, são santificadas por Deus em Jesus Cristo no derramamento do Espírito Santo.

 

2. Depois de Jesus

Se passarmos a considerar um pouco mais detalhadamente o ambiente neotestamentário, salta imediatamente aos olhos que só raramente Deus é definido como SANTO. Como tudo aquilo que se relaciona com Deus é santo, por ser ele o santo por excelência, Jesus é o santo de Deus, o qual lhe pertence por filiação divina e por sua eleição messiânica. O Messias tem a missão de redimir e de santificar. É dessa missão messiânica que deriva o sagrado cultual. Este se coloca em estreita relação com o sagrado transcendente, que estabelece um equilíbrio entre o mistério de Jesus Cristo e o seu profundo sentido, entre o sagrado e os símbolos sem domesticar o sagrado cultual. Pode-se atestar tal afirmação percorrendo rapidamente os textos principais de alguns autores do NT. Aqui encontramos a palavra sagrado sempre colocada em relação com Deus que se revela em Jesus Cristo pelo Espírito Santo.

Os escritores do NT apresentam Jesus comportando-se com liberdade de espírito diante das coisas e das pessoas consideradas sagradas pelos rabinos daquele tempo. A divisão entre o sagrado e o profano era e continua sendo uma concepção humana. Jesus vai além disso, como fez com o sagrado do templo, das pessoas, das prescrições alimentares, e nada o separa deste mundo ordinário. Ele coloca o sagrado em relação com Deus e acentua nele a presença do Deus santo (gr. hágios). Todas as delimitações entre sagrado e profano são transitórias.

 

A) Nos sinóticos

Para a concepção de santidade do ponto de vista dos sinóticos, é preferível o emprego da expressão Espírito Santo, o dom da era messiânica, sempre nos referindo à santidade de Deus, o santo por excelência, e a Jesus, o santo de Deus por filiação divina. Por isso, o campo específico do sagrado e do religioso, no NT, não é o culto, mas o profetismo. O sagrado não está mais nas coisas ou em determinados lugares e ritos, está nas manifestações produzidas pelo Espírito. Como a profecia não se aplica bem às exigências de uma consciência unitária, mais tarde se recorre à ideia de sacerdócio santo, o sacerdócio real de todos os santos, isto é, dos cristãos, homens e mulheres que vivem sua fé. Assiste-se, assim, já na antiga Igreja, a certa retomada do conceito de santidade sacro-cultual.

 

Em Marcos

Encontra-se no evangelista Marcos a citação 1,24 no contexto do ministério de Jesus na Galileia, mais especificamente em Cafarnaum. Jesus está ensinando naquela sinagoga e, diante de seus ouvintes, cura um homem tomado pelo demônio, que se apresenta a ele. O espírito impuro que habita esse homem, vendo-se superado pela ordem de Jesus, sacode o pobre e grita contra Jesus: “Sei quem tu és: o Santo de Deus” (cf. Mc 1,24). O espírito impuro representava, para os cristãos do século I do cristianismo, os demônios e as forças misteriosas e hostis ao bem, isto é, a Deus.

Esta é a primeira ação poderosa de Jesus, pois ele não só fala com autoridade, mas também age com poder (cf. Mc 1,22). O poder de Jesus enfrenta a astúcia e o desafio do demônio, que tenta impedir a missão do Filho de Deus. A sua palavra é sumamente mais eficaz do que o mal: o espírito impuro sai derrotado na sua tentativa e o homem se liberta porque a palavra e a santidade de Jesus realizam aquilo que, no seu mistério profundo, são de fato.

 

Em Mateus e Lucas

Dentre as várias e paralelas citações apresentadas por estes dois evangelistas, Mateus e Lucas, preferimos considerar apenas algumas, com o intuito de ilustrar brevemente o ensinamento e os gestos libertadores de Jesus, no contexto sagrado de seu tempo e de seus contemporâneos. Cabe esclarecer que Lucas terá uma apresentação pouco mais extensa pelo fato de levar em conta o evangelho da infância, no qual a atuação do Espírito de Deus que santifica é colocado com maior destaque.

No contexto da Anunciação do Senhor a Maria de Nazaré, a mulher do povo da pequena cidade do interior da Galileia, o evangelista coloca na boca do Anjo Gabriel — a teofania de Deus ou a manifestação de Deus, em diálogo com a jovem Maria —, estas palavras: “O Espírito Santo virá sobre ti e o poder do Altíssimo vai te cobrir com a sua sombra; por isso, o SANTO que nascer de ti será chamado Filho de Deus” (Lc 1,35). A palavra SANTO designa seja o Espírito Santo, seja o futuro filho de Maria. A santidade de Deus está presente como essência no Filho que nascerá. Ele é o Santo de Deus (cf. Lc 4,3-4).

Ainda em Lucas, Jesus Cristo é constituído pelo Espírito Santo, na sua função de Messias e o constatamos quando o evangelista põe na boca de Jesus as seguintes palavras de Isaías: “O Espírito do Senhor está sobre mim porque ele me ungiu” (cf. Is 61,1; Lc 4,18), palavras que apresentam ao povo que se encontrava na sinagoga de Nazaré o seu Projeto messiânico. O Santo é sempre uma força que santifica. O sentido desta palavra em Lucas é particularmente carregado de significação, palavra mediante a qual o evangelista se opõe ao espírito natural e ao espírito demoníaco.

Na única oração de súplica ensinada por Jesus, a conhecida Oração do Senhor ou o Pai-nosso, mais do que informar Deus de alguma situação, expressa nossa dependência e nossa fé. Essa oração mostra que o nome divino revela a santidade sob um aspecto pessoal: Deus manifesta a sua santidade por meio do seu nome. “Pai-nosso que estás nos céus, santificado seja o teu Nome” (Mt 6,9). É uma oração que mostra como se deve rezar ao Deus três vezes SANTO, conforme o triságio do profeta Isaías (cf. Is 6,1-3).

A versão de Lucas, talvez, seja a mais antiga e a mais curta, e o seu contexto é marcado por um tempo de oração. Precedem os episódios da oração do bom samaritano ao fundo do templo (cf. Lc 10,25-37), e a contemplação de Maria aos pés de Jesus na casa de Marta (cf. Lc 10,38-42). Segue-se, então, Jesus ensinando aos discípulos a rezar (cf. Lc 11,1-13). O objetivo é destacar o versículo seguinte: “Pai, santificado seja o teu Nome; venha o teu Reino” (Lc 11,2). As duas citações mostram que o nome divino revela a santidade divina a que somos chamados.

Existe uma relação direta entre a santidade e a filiação divina da qual participamos por meio da humanidade e da santidade de Jesus, o Senhor que nos doou o Espírito Santo, ou melhor, o Espírito que nos impulsiona a fazer passo a passo o caminho da santidade, a mesma santidade de Jesus, porque Jesus é o SANTO.

 

B) No evangelho de João

O evangelista João, quando relata a última oração de Jesus pouco antes de sua paixão e morte, coloca-lhe na boca esta súplica, na qual sublinha a santidade de seu Pai: “Já não estou no mundo; mas eles permanecem no mundo e eu volto a ti. Pai santo, guarda-os em teu nome que me deste, para que sejam um como nós” (Jo 17,11).

Jesus se dirige ao Pai chamando-o de Pai santo. Ele aqui quer falar da essência mais essencial de Deus, seu Pai e nosso Pai. Ele quer designar a própria essência de Deus e coloca como fundamento desta essência a santidade que une o Pai com o Filho pela força do Espírito. É desta santidade que todos os batizados participam e nela se encontra o fundamento da santificação de todas as pessoas chamadas por Deus na construção do seu Projeto salvífico.

 

C) Nos Atos dos Apóstolos

Encontra-se aqui a atuação de Jesus na linha messiânica. Tais textos insistem mais sobre a missão de Jesus como Redentor que sobre a sua origem divina. É dessa missão messiânica que deriva o sagrado cultual, que permanece em estreita relação com o sagrado transcendente. As citações que seguem abrem as nossas consciências para a compreensão verdadeira e célere dessa missão messiânica de Jesus.

Os Atos nos mostram ainda a comunidade de Jerusalém transbordando de Espírito Santo. É a imagem do povo radicado na santidade de Deus, povo fundado por Cristo e animado pelo Espírito Santo. É o povo santo, a raça eleita, o sacerdócio real, a nação santa, o povo da particular propriedade de Deus (cf. 1Pd 2,9). O primeiro papa da Igreja fala aqui de um novo sacerdócio. Os apóstolos e os discípulos insistem na santidade e no sagrado. O sagrado, neste caso, não é nem tabu (aquilo que tem caráter supostamente “sagrado”), nem proibição, mas provém da presença atuante de Deus, da revelação que Jesus faz do Pai e seu Projeto, e do gesto de Jesus Cristo, que realiza as obras de misericórdia no Espírito Santo.

Graças à presença do Espírito, não existe mais nem sagrado nem profano, como não existe mais judeu nem grego: todos os que creem são santos no Cristo Jesus. Tudo, portanto, pode se tornar santo (gr. hágios).

 

D) No Livro do Apocalipse

Para os povos cristãos, o Livro do Apocalipse fala que Deus é proclamado, dia e noite sem parar, como Santo, Santo, Santo, Senhor, Deus todo-poderoso, “Aquele-que-era, Aquele-que-é e Aquele-que-vem” (cf. Ap 4,8). O sagrado aparece como a natureza de Deus e a atribuição da sua potência e eternidade. É o canto da transcendência de Deus enquanto Comunidade divina que se relaciona com as pessoas identificadas com a santidade que nasce do contato profundo de um eu com o TU eterno e verdadeiro. E com esses qualificativos que os primeiros mártires, imolados por causa da Palavra de Deus e do testemunho que dela prestam, clamam por Deus: “Até quando, Ó Senhor santo e verdadeiro, tardarás a fazer justiça, vingando nosso sangue contra os habitantes da terra?” (Ap 6,11), No Apocalipse o sagrado cultual está presente em tudo, e a santidade é vista numa ótica escatológica.

Trata-se de caminhar pelo caminho feito por Jesus sem opor o sagrado ao profano. Nesse sagrado que é messiânico temos, antes de tudo, o sagrado substancial que é o corpo do Cristo, corpo eucarístico, corpo místico. A seguir temos o sagrado dos sinais, o qual participa do sagrado substancial que são os sacramentos, sinais eficazes da economia da salvação. Pode-se falar também do sagrado pedagógico constituído de um conjunto de sinais que permitem a realização do processo da história da salvação em uma relação de reciprocidade que se dá entre a Comunidade divina e a pessoa humana. São elementos desse sagrado as palavras, os gestos, os lugares, os tempos e as festas.

 

VII. Conclusão

1. Tentativa de uma leitura teológico-pastoral

A experiência verdadeira do sagrado exige uma vida coerente. A norma social e a justiça social não são separáveis do louvor devido a Deus. O estudo etimológico da palavra sagrado demonstra que o seu significado tem origem nos aspectos da vida prática. Aquilo que se vem percebendo hoje é que, quanto mais o evangelho penetra na linguagem cotidiana, mais esse conceito vai progressivamente se restringindo, até o ponto de reduzir-se ao âmbito puramente “eclesiástico”, separado do mundo.

Em se tomando consciência dessa situação, é inderrogável para a Igreja cristã o dever de resgatar a forma de vida inspirada na fé. Não na fé-gueto em que era e continua sendo confinada. Mas recuperá-la de forma que possa ter sua expressão própria e inteligível, por meio da qual se possa compreender que esta fé não pode se reduzir a um comportamento religioso limitado à oração e à observância de costumes cultuais. Trata-se de fé compromissada com as exigências do Reino. Deve antes aparecer claro que o evangelho exige que sejamos testemunhas dentro das dimensões concretas da vida, mediante as práticas deste mundo, para atestar a presença do Espírito Santo, lá onde as pessoas estão comprometidas com as grandes e pequenas decisões de cada dia. Resumindo: ultrapassar o “dito” profano para entrar na esfera do Deus revelado como Comunidade de Amor, seja no templo como fora deste.

 

2. A necessidade do sagrado hoje

A necessidade de oferecer a imagem de um sagrado inculturado em um mundo em tantas dimensões desumanas e pagãs não pode reduzir-se a uma simples abertura a este mundo do jeito que ele é e se apresenta, a um puro amoldamento ou “aggiornamento” de conceitos e palavras; nem limitar-se a conhecer os meios de comunicação, sobretudo quando se trata de dar o anúncio libertador, em meio aos desafios da nossa realidade representada pelo clamor das massas oprimidas e pelos gemidos prolongados das massas excluídas. Mas este sagrado que é o santo e a santidade da vida e de toda criação, deve concretizar-se na solidariedade que participa da vida e do sofrimento dos outros, carrega o peso que acabrunha tantos dos nossos irmãos e irmãs, e neutraliza tanta violência, tanto escândalo de corrupção pública, tanta política vergonhosa e mesquinha.

O discipulado não se subtrai às amarras com o seu tempo, mas, imerso nele — sempre que a sua fé traga fruto —, tornará visível a todos que quem segue a Cristo conhece outro fundamento e outra orientação, a de conseguir a liberdade das leis, aparentemente imutáveis, e desmantelar as forças sociais e estruturais que oprimem e empobrecem dois terços da humanidade. A pessoa que experimenta o sagrado na fé cristã tem uma pátria, tem raízes, pensa de maneira histórica, não é vítima do momento efêmero, vê as conexões que têm que ver com a vida e o mundo e acredita nos processos históricos que evoluem para a construção do Reino, na miscigenação da história humana.

 

3. A profecia feminina

Para a mulher de fé, o fascínio do sagrado na ótica feminina não é visto nem interpretado fora de uma proposta transcendente que o fundamenta. Se tal fascínio começa como fenômeno humano, a profecia referente à mulher é a da reciprocidade lógica, a da alteridade humana e a do encontro interpessoal. Tudo isso implica a superação da conflitualidade relacional, desafio nodal e irrenunciável na transição cultural de hoje. Esta tentativa de resposta se dá na diversidade reconciliada e pode tornar-se o paradigma projetual antropológico, sociopolítico e eclesial.

Ir. Lina Boff, smr