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Publicado em número 266 - (pp. 20-26)

Religião, crises e transformações

Por Pe. Luiz Roberto Benedetti

1. Introdução

Quando perguntaram a Jay Ogilvy, professor de Filosofia na Universidade de Yale, qual a maior invenção dos últimos dois mil anos, ele respondeu que foi o secularismo. Identificava religião com superstição, capaz de levar os homens a negar sua liberdade e autonomia, submetendo-se à “férula dos deuses”.[1] Não era uma afirmação panfletária e menos ainda irresponsável. Não negava a existência de mistérios e a necessidade de ser humilde diante deles. Mas sustentava que não se podia abandonar a liberdade e a responsabilidade humana por nosso destino. Retomava, validando, as teses de Marx, Freud e Nietzsche, que, com matizes diferentes, enfatizavam a visão da modernidade em sua crítica ao caráter antilibertário da visão religiosa do mundo e da História.

Sua afirmação vinha num momento em que se saudava a revanche dos deuses, o retorno da religião e a volta do sagrado; cientistas sociais repensavam suas posições, tomando o fenômeno como um desmentido às suas teorias sobre a secularização, vista como inevitável a partir dos anos 1960, porém, como confirmação da capacidade da razão de dar novos rumos à vida humana.

Por que começar de tão longe se o tema em discussão diz respeito ao Brasil? Pouca atenção se presta ao fato de que hoje somos “exportadores de religiões”. Grupos pentecostais, até há pouco minoritários, numericamente insignificantes, em curto espaço de tempo transformaram-se em grupos poderosos, em agências religiosas com poder de penetração nos vários segmentos da sociedade em dimensões até então jamais imaginadas. Simultaneamente, as Igrejas — no sentido sociológico do termo — perdem força e não só na Europa, continente que se defronta com um problema inusitado: o que fazer com templos desocupados, dotados de valor histórico e artístico inestimável? Transformá-los em museus, dance clubs, restaurantes de luxo?[2] O fim do socialismo real tornou a católica Polônia um país pouco diferente da luterana Suécia ou da presbiteriana Escócia. A sociedade do bem- estar tomou o lugar das velhas identidades ligadas a um universo de significação religioso. Um universo sociocultural e econômico reconfigurado produz mudanças no interior das grandes igrejas, desafiadas pela emergência de “crenças seletivas” (acredita-se no que se acha razoável, não no que as igrejas dizem). Estas cumprem funções psicológicas e antropológicas (como instituições rituais de iniciação), mais que propriamente religiosas em sentido estrito.

Ao mesmo tempo, a religião “parece” decidir eleições nos Estados Unidos e o islamismo parece crescer em número de adeptos e em intensidade e fervor. A visibilidade do fenômeno — construção de mesquitas — confirma a impressão. Mas o que se esconde, no caso americano, sob essa — aparente — autenticidade? De um lado, há a “América” profunda, a das pequenas cidades e “comunidades” do interior, ainda bastante ligadas à tradição. De outro, há uma religião que não interroga a vida, mas se insere no cotidiano, de modo a confirmar um American way of life. Claro, sobre este último dado, não há novidade. Em 1959, William Herberg dizia que protestantismo, catolicismo e judaísmo eram facetas de uma só e mesma religião: o modo americano de ser. Não importa o conteúdo da crença. O americano valoriza o crer, a atitude de crer, sem que isso implique conteúdo teológico ou litúrgico. É uma religião ativista[3].

Ela se insere na vida sem questioná-la, produzindo, em certos momentos, realidades inusitadas. A revista Rolling Stone trazia em uma chamada de capa: “Igreja pornô”. A matéria se referia a um grupo religioso que editava um site para dar conta de uma espécie de “pornografia não pornográfica”, uma espécie de homeopatia religiosa voltada a combater algo com o seu semelhante. De passagem, é preciso observar que a própria revista, uma espécie de porta-voz da contracultura, do movimento pacifista, hoje faz daquilo que alimentava essa postura o seu apelo mercadológico. Ou seja, seu nicho de mercado. No mesmo número, ao falar da capacidade de espionagem da Polícia Federal, a linguagem recorre à metáfora religiosa: “os ouvidos de Deus”.

No campo da alta administração, a incorporação da “espiritualidade” é recorrente. Na revista Exame: “Deus ajuda? A espiritualidade está em alta no mundo dos negócios. Será mais um modismo ou vai transformar a vida das empresas?”[4]. Ou na Você, versão mais leve de Exame, na qual Richard Barrett prega o evangelho da espiritualidade no local de trabalho, “mas com uma diferença: sua abordagem é pragmática, quantificável e pé no chão”.[5]

A pergunta que se levanta é: trata-se do fim ou do renascimento da religião? Essa conjuntura confirma ou desmente o processo de secularização? Não se pode responder uma coisa ou outra sem critérios. O certo é que se assiste a uma reconfiguração da religião na sociedade, no interior de mudanças culturais abrangentes, constituindo o que, para simplificar, se chamou de pós-modernidade — fenômeno compreendido somente quando se sai dos esquemas tradicionais de interpretação da História e da sociedade próprios às igrejas. É necessário sair desse mundo construído historicamente para sentir-se nessa pós-modernidade e, com base nela, entender a própria Igreja. O risco é sempre ver o outro lado — não religioso — da realidade como aquele que escapa, que está fora. Na verdade, pode-se perguntar sem pudor: quem está fora? O fato é que a religião se inseriu no mundo da mercadoria. Utiliza técnicas de marketing, diversifica suas ofertas, tem seus “nichos de mercado” e perde, cada vez mais, a capacidade de “mudar o mundo”, para usar um lugar-comum.

A recente crise econômica ilustra bem essa mistura em que se transformou o mundo religioso. No mesmo dia em que, na praça atrás da Catedral de Campinas, um grupo pentecostal sem identificação encenava uma peça de teatro que mostrava as ilusões de acreditar no poder do dinheiro, uma coluna de economia de um diário usava a linguagem religiosa para falar do momento: “pitadas de espiritualidade flutuam nos mercados, usualmente a quintessência do materialismo. (…) Os juros dos empréstimos só vão cair quando os governos restabelecerem a confiança, ‘que é algo sutil e espiritual’ (…). O custo do dinheiro envolve espiritualidade”[6].

Deve-se ter em conta esse quadro quando se busca entender as religiões no Brasil e especificamente o pluralismo religioso. Mais do que um renascer da religião, expressa a realidade da secularização, que adquire uma coloração particular em nosso meio. Nela não ocorre a indiferença religiosa, como nos países europeus, mas, sim, a indiferenciação religiosa. A modernidade, com seu ideário de liberdade individual, de responsabilidade pelo próprio destino, produz liberdade de escolha em praticamente todas as esferas da vida. A sociedade em rede e a comunicação em escala global, situando culturas lado a lado, na forma de imagens que se sucedem vertiginosamente, relativizam verdades, transformando-as em opiniões, imagens, representações desvinculadas de um contexto que as enraíze em um tempo e um lugar. Agem sobre a consciência dos indivíduos, de modo a tornar realidade a ideia de que tudo vale, de que as questões vitais, ligadas ao campo dos valores, comportam respostas diferentes e igualmente válidas.

Fica evidente tanto uma unificação do mundo quanto uma fragmentação: a modernidade — sobretudo graças ao desenvolvimento tecnológico acelerado, ligado a uma cultura que privilegia o consumo como fonte de identidade — unifica o mundo. Este se torna “pequeno”, próximo, comum. Mas, ao mesmo tempo, essa unificação põe lado a lado “mundos culturais” distintos que se relativizam mutuamente. Esses dois aspectos têm impacto imediato no mundo religioso. Ele é feito de convergências e fragmentações; de continuidades e rupturas[7].

Ademais, esse quadro abrangente tem influência direta na interpretação que se faz do quadro religioso brasileiro: sua marca é a indiferenciação religiosa ou, ao contrário, há uma religião majoritária e uma série de religiões marginais? Ainda que se admita a indiferenciação, há mais continuidades ou rupturas? Ou um terceiro caminho: a própria religião se “seculariza” radicalmente, tornando-se uma mercadoria a mais, sujeita às regras de proteção ao consumidor? Embora sejam ainda relativamente esporádicos, há casos de recursos ao Procon por parte de pessoas que se sentiram lesadas ao pagar caro por “remédios” religiosos ineficientes para solucionar seus males (emocionais, físicos e financeiros).

 

 

2. Olhando os números

A primeira coisa a observar é que dados estatísticos, embora fundamentais, nada dizem se forem tomados, por si mesmos, como expressão do que ocorre no campo religioso. Peter Berger, analisando a secularização, dizia que ela ocorria no conjunto das relações sociais e era acompanhada por uma secularização da consciência religiosa. Mesmo que hoje ele renegue sua posição sobre a secularização como processo inevitável e afirme a permanência e mesmo o crescimento e intensificação das adesões religiosas, sua teoria chamava a atenção para uma espécie de deslocamento: de realidade objetiva, que se expressava em pertença explícita e quantificável, a religião situa-se, cada vez mais, no campo da subjetividade. Uma subjetividade livre, aberta e plural. Entendida dessa forma, a secularização da consciência é um fato. Se isso provoca descrença e atitude de liberdade com relação às instituições, há também o seu reforço, graças à densificação institucional. Intensifica-se o “sentimento” de pertença e a necessidade de defender um campo ameaçado. Aquilo que, em linguagem comum, se chama de fervor.

Quando se olha o Censo 2000 do IBGE, o que mais chama a atenção é a quantidade dos que se declaram sem religião: 7,3% (12,3 milhões) da população brasileira, indicando um aumento de 3,5 pontos percentuais em relação ao censo anterior. Em dez anos, constitui um crescimento considerável. Em segundo lugar, constata-se a queda das religiões afro-brasileiras. Embora percentualmente não seja tão significativa — de 0,4% para 0,3% da população —, as expectativas de crescimento, apontadas em estudos realizados nos anos 1970, indicavam, pelo menos, uma estabilização. O crescimento dos evangélicos — de 9,05%, em 1991, para 15,45%, em 2000 — foi menos surpreendente, uma vez que acompanha o processo de urbanização brasileiro. Menos surpreendente ainda é a diminuição da porcentagem de católicos (de 83,8% para 73,8%), pois a pluralização sempre traz prejuízo à religião dominante, sobretudo quando esta tem características de (quase) monopólio. A adesão a novos grupos faz-se à custa da evasão de membros da religião que, em grau maior ou menor, detém o monopólio.

A respeito desses 12,3 milhões sem religião, pode-se afirmar, com certa segurança, que muitos pertencem ao grupo dos religiosos sem religião. Representariam a tendência, bastante frequente em estudos dos anos 1980, que preconizava a substituição de religião por religiosidade. Tal tendência inspirava-se na expressão believing without belonging — crer sem pertencer. No caso brasileiro, mormente entre os jovens, seria a busca de experiências que não se encontram nas grandes instituições, em ritos e expressões, e mesmo de incorporação de mitos da mídia em figuras religiosas: Jesus como extraterrestre, por exemplo. Ademais, no Brasil é comum associar religião a prática religiosa regular. Como a prática é minoritária, muitos não se definem como religiosos, embora tenham sido batizados. Isso para dizer que as interpretações dos números conferem um matiz diferente aos dados tomados em estado bruto. Mas também o contrário acontece e de forma cada vez mais frequente: por exemplo, buscar o rito religioso, como a bênção de alianças matrimoniais, mesmo sem ser batizado ou ter vínculos de pertença.

O que realmente surpreendeu os pesquisadores, entretanto, foi o número de grupos religiosos relacionados quando se respondeu ao item do questionário: “Qual a sua religião?” Foram dadas 35 mil respostas diferentes. Um trabalho paciente de análise e classificação logrou “enxugá-las” para 500 e, depurando-as mais ainda, elaborou uma tipologia de 144 grupos religiosos diferentes. Menos surpreendente que o número é o fato de que ele traduz um deslocamento básico: a religião migra para o universo subjetivo.

Com efeito, na passagem do século, o sociólogo alemão Georg Simmel observava uma separação crescente entre religião e vida. No homem religioso, a vida em si mesma é informada pela religião. Não se trata de apenas um dogma ou de uma prática dominical. Mas, na concepção daquele estudioso, ela estava se tornando na subjetividade humana um fato entre outros, sem implicar a totalidade do existir. Num ensaio sobre a arte, ele dizia que as pessoas já não estão num mundo religioso objetivo; são subjetivamente religiosas num mundo objetivamente indiferente. A seu ver, a religião era a amostra da experiência mais significativa da modernidade: o descolamento da objetividade cultural e social para a subjetividade individual.

 

3. Além dos números

Em seu último livro publicado no Brasil, o sociólogo francês Alain Touraine estabelece uma distinção interessante entre o divino e o sagrado. Situa o divino como uma dimensão do sujeito — o indivíduo da modernidade, livre e responsável como cidadão, que tem uma relação cada vez mais direta consigo mesmo. O que o torna sujeito é a interiorização de um princípio doador de sentido. Esse universo de sentido, que Touraine vai chamar de divino, era exterior ao indivíduo, situado numa transcendência separada do mundo humano, da experiência histórica. Sua “tendência” profunda é ser interiorizado. Já o sagrado é a dimensão institucional, o controle dessa característica humana por parte dos grupos religiosos mediante instituições e práticas. Sagrado e divino são duas faces da religião e, mais especificamente, de uma igreja. Quando os dois se integram numa comunidade — e a cristandade é o exemplo histórico mais evidente —, as instituições religiosas manipulam a religião de acordo com seus interesses. Quando se separam essas duas dimensões — o que, segundo ele, o cristianismo teria realizado —, então o divino, como qualidade do “sujeito”, sofre uma reviravolta: de legitimação de poder transforma-se em fonte de valores e aspirações morais.

Touraine pensa essa distinção em termos políticos. Diz que Jesus representou o fim da religião como manipulação do divino para justificar o poder. Não ignora, entretanto, que as instituições religiosas se reforçaram rapidamente, a ponto de o cristianismo não conseguir ter força suficiente para impedir uma teocracia. E isso gerou, nas palavras do sociólogo francês, tanto a liberação de um “espaço de transcendência onde brilhou um divino vivido como luz interior, íntima, permitindo uma comunicação direta, profética, mística ou de posse entre o divino e um indivíduo definido o menos possível em termos sociais”[8], quanto o seu inverso, “a tentação de conceber um mundo puramente materialista, ou seja, dirigido pelo interesse e o prazer”[9]. O capitalismo investiu pesadamente para suprimir todas as formas de controle — também as religiosas — cujos fins fossem estranhos à sua racionalidade econômica e com isso reforçou o materialismo. E hoje?

Hoje assistimos ao enfraquecimento das instituições religiosas e à afirmação de expressões menos institucionalizadas do sentimento religioso. A fé e a crença num partido, numa Igreja, numa nação etc. deixam o palco, e a pertença à sociedade perde sua força comunitária; o próprio comunitarismo atrai as massas. A sociedade não é mais sacralizada. O sagrado agarra-se, portanto, novamente às comunidades. Permanecem assim face a face emoções de tipo religioso, abertas ao exterior, ocupando-se com símbolos de universalismo, e comunidades sacralizadas, sobretudo quando se definem por raízes naturais: etnia, língua etc.[10]

 

O resultado “político” não é nada bom. A separação entre o apelo à força “divina” do sujeito e a gestão da economia e das instituições gera um individualismo cada vez maior; o mundo do sagrado se reduz aos instrumentos do poder e daí não tira nem reações afetivas nem força capaz de animar um debate de ideias mobilizador.

 

4. A religião absorvida

“Não foi a Igreja que se identificou com a comunidade do surfe, mas a comunidade do surfe, entre muitos outros, que se identificou com a Igreja”, diz, em entrevista à revista evangélica Igreja, o fundador da Bola de Neve Church, o pastor Luiz Rinaldo de Seixas Pereira, chamado carinhosamente de apóstolo Rina pela sua “galera”. Trata-se de grupo religioso que se caracteriza pela informalidade da liturgia — pela liberdade de culto e expressão —, manifestada pelo púlpito em forma de prancha. Recusa o rótulo de parque temático, algo muito próprio à indústria do turismo e à cultura pós-moderna, caracterizada como mundo de simulacros — uma cultura que faz cópia da cópia sem um objeto original. Mas o próprio pastor Rinaldo propõe nova forma de ser igreja. Diz, literalmente, que “o maná de ontem serviu para ontem. A unção de ontem serviu para ontem e não pode ser reproduzida hoje, o vinho novo só pode ser deitado em odres novos”.[11]

A revista inteira, aliás, fala em técnicas de marketing, de mobiliário, de gestão eclesiástica eficiente, e a parte publicitária corresponde ao conteúdo. Sua congênere católica obedece ao mesmo esquema, no caso a revista Paróquias & Casas Religiosas, com matérias do tipo “Gestão e espiritualidade”, “Gestão de patrimônio”, “Gestão de pessoas, marketing e Igreja”, “Liderança” — ou seja, todo um vocabulário presente no mundo financeiro/empresarial.

Quase trinta anos atrás, Monteiro[12] falava de religiões de clientela e do surgimento de um ecumenismo popular, que inaugurava novo tipo de instituição religiosa. Saindo do binômio clássico igreja-seita, mostrava o surgimento de agências religiosas, cuja marca era exatamente a abolição de fronteiras confessionais. O pastor, em circos de lona, ia de cidade em cidade, oferecendo seus serviços fundados em bênçãos e curas, sempre acompanhado de um staff apto a dar conta de complicações eventuais relativas a algum fiel possuído pelos espíritos (do bem ou do mal).

O risco é uma visão puramente moralista, uma desqualificação imediata dessas realidades. Estas são expressão de um mimetismo que representa tentação até para as igrejas de tradição histórica assentada e consiste numa forma de se adaptar ao mundo, copiando-o. Sob esse aspecto, o mimetismo seria a face contrária do fundamentalismo, caracterizado pela recusa de qualquer violação ao depósito integral da verdade, formulada literalmente e imune a qualquer interpretação ou mudança de linguagem. Na realidade, existe uma circunstância mais profunda: é a absorção, pela mensagem religiosa, do espírito da mercadoria. Não se trata apenas da adoção de técnicas do mercado para tornar a religião atraente; trata-se, sobretudo, de tornar o mundo religioso o da mercadoria pura e simples, que “se vende” de acordo com leis que comandam esse universo.

O mesmo sucede do lado da mercadoria, que utiliza a religião. Certa propaganda antiga de uma cerveja é extremamente significativa: a cerveja borbulhava nas bordas de um copo, cuja circularidade lembrava uma hóstia, e se fazia o convite: “Lave a alma”. Dentro se convidava: “Seja um dos nossos frequentadores” (contracapa); “Santa Cerva. O milagre da multiplicação; compareça religiosamente”. Ao abrir o fôlder, o fundo azul-escuro punha em destaque o copo de cerveja por inteiro, com uma auréola e o cumprimento da promessa: “Chegou Santa Cerva. O paraíso da cerveja”. A mesma imagem que abria o fôlder estava na página final: um copo de cerveja aureolado com a mensagem “Santa Cerva”.[13]

A mensagem do consumo não só utiliza a religião, mas constitui-se como religião. A mensagem religiosa, por sua vez, repete o mesmo esquema, transformando-se num produto que circula entre tantos outros. Ambas se traduzem num universo de imagens que se repetem indefinidamente — uma copiando a outra — sem um referencial fundador.

Não é só a religião que entra nesse processo. O mesmo ocorre com a arte. Talvez poucos se lembrem da peça publicitária de uma grife francesa de roupas que fez uma paródia da Santa Ceia, de Leonardo da Vinci. Nela 11 mulheres vestidas com a roupa da marca ocupam o lugar dos apóstolos. Ao lado direito de Jesus (que seria o de João) está o único homem, de torso nu e de costas, namorando uma das modelos. O mesmo ocorre com os esportes, já totalmente mercantilizados. A revista Vogue-Homem, dirigida ao público de alta renda, comenta “uma seita chamada futebol”.

Essa imbricação de mundos, essa perda de contornos verificadas no cotidiano da vida humana, cuja subjetividade é trabalhada por imagens que se sucedem em ritmo vertiginoso no tempo e no espaço, talvez forneçam uma explicação para o fato de que “Nossa Senhora ganha adeptos até entre evangélicos”, conforme chamada de capa de Época, revista semanal de ampla circulação. Trata-se de um universo onde tudo cabe.

Pode-se buscar nova explicação. A rejeição de imagens era uma das marcas dos evangélicos. Mas pesquisas mostravam casos isolados de manutenção de costumes e rituais católicos entre evangélicos convertidos. Com efeito, trata-se de um fundo cultural enraizado, que não desaparece. Latente, mostra-se, se não em público, ao menos em âmbito privado. Olhando um pouco mais profundamente, pode-se perceber que o evangélico, ao lutar contra as imagens, luta contra si mesmo, contra a imagem que o habita. Bosi constata nos fundamentos da cultura brasileira um materialismo animista. A necessidade de tocar o santo, o fato de vê-lo não como simples imagem, mas como um “poder” vivo e milagroso, mostram a realidade dessa característica. Bosi vai ainda além, quando vê na inventividade dos pobres, na sua luta pela sobrevivência, uma sabedoria empírica. Não é um mundo “desencantado”, um mundo dominado pela racionalidade própria do capitalismo:

Há, na mente dos mais desvalidos, uma relação tácita com uma força superior (Deus, a Providência); relação que, no sincretismo religioso, se desdobra em várias entidades anímicas, dotadas de energia e intencionalidade, como os santos, os espíritos celestes, os espíritos infernais, os mortos; e assimila ao mesmo panteão os ídolos provindos da comunicação de massa ou, eventualmente, as pessoas mais prestigiadas no interior da sociedade.[14]

 

A palavra bíblica, por mais que ganhe contornos de fetiche na pregação, não consegue eliminar a “imagem” do santo que a cultura enraizou. É claro que se trata ainda de uma hipótese a ser comprovada com pesquisas. Por enquanto, constitui uma chave de interpretação tanto para a “luta” intermitente contra o culto às imagens quanto para sua persistência no imaginário pentecostal e mesmo no espaço reservado dos domicílios evangélicos.

Esse dado, a forte presença da sensorialidade na relação com o invisível, pode constituir uma explicação para “a força dos santos” (chamada de capa de uma revista nacional de grande circulação), hipótese corroborada pelo exemplo do teólogo Afonso Ligório, que diz já ter encontrado evangélicos com uma imagem de Nossa Senhora Aparecida debaixo do travesseiro.

 

5. Para concluir

Olhando para o quadro de reflexões aqui esboçado, pode-se ter a sensação de um mundo que desmorona. É o que Bento XVI lamenta quando fala de ditadura do relativismo. Impõe-se uma cultura na qual tudo é verdadeiro — o que equivale a dizer que nada o é. Outra preocupação do papa, em face desse fenômeno, é com a “racionalidade” da fé, tema frequente em suas conferências, sobretudo quando em seu meio, o intelectual. Preocupa-o o relativismo e a sua outra face: o fundamentalismo.

Talvez isso explique sua relação amigável com os Estados Unidos e sua atitude simpática para com o povo americano. Vê-o como um povo religioso. Mas é exatamente aqui que está o problema. William Herberg, citado atrás, diz que o americano crê no crer. O autor advoga o direito absoluto de cada um crer nesse direito fundador de outros quaisquer direitos. Ora, a crise que atravessamos não atinge esse fundamento. Nas palavras de Michel de Certau, o que temos não é uma “crise do crer”, mas uma crise do conteúdo do crer. Patrick Michel comenta essa distinção, citando o depoimento de um visitante do museu das religiões em Glasgow: “a multiplicação de viagens e a comunicação levam as pessoas a serem conscientes como nunca o foram antes da amplidão do universo cultural e dos sistemas de crença existentes. A consciência dessa diversidade pode tornar difícil a escolha do que se decide tomar por verdadeiro”. Isso significa que todas as tentativas para reconstruir certezas referenciais aparecem, de imediato, “desqualificadas, sem plausibilidade”.[15]

Nas suas reflexões mais recentes, o cardeal Martini, em outras palavras, faz sentir o “drama” representado por essa “impossibilidade” de um conteúdo referencial, a não ser por um gesto de fé, entendida como ato de confiança, de entrega: “Que Deus exista pode ser admitido, definitivamente, somente na base de uma confiança que afunda as suas raízes na própria realidade”, diz o cardeal, citando Hans Küng. E completa que pode ser verdadeira até aquela do ateu “que grita e sussurra cada dia as suas dificuldades de crer”. Chegando ao “limite do limite” humano — a doença e a morte, tão banalizadas até mesmo pela religião —, pondera: “quem se acha nessa situação deveria antes sentir-se liberado do uso das palavras, e isso é, para mim, um problema não resolvido: como descrever uma realidade toda negativa com palavras racionais que, todavia, enquanto racionais, devem exprimir uma experiência positiva?” Guido Vecchi comenta: “Martini não ama os discursos facilmente consoladores; como sempre, acha o modo de falar ‘ao crente e ao infiel que há em cada um de nós’ e vê no rosto ‘o duro caminho’”[16]. Em fenômenos-limite, a linguagem, religiosa ou não, manifesta seus limites.



[1] J. Brockmann (org.). As maiores invenções dos últimos 2.000 anos. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000, p. 118.

[2] Reportagem da Newsweek tem uma chamada de capa significativa: “Igrejas da Europa vazias”. Só a Igreja da Inglaterra estima em 10%, de um total de 1.600, o número de templos sem ocupação religiosa. Mais que o texto, são expressivas as fotografias de locais de culto — artísticos — transformados em pizzarias, clubes para práticas de rock climbing e casas de shows. Isso na Europa inteira.

[3] W. Herberg. Protestantes, católicos, judeus. Belo Horizonte: Itatiaia, 1962.

[4] Exame, São Paulo: Abril, ano 36, nº 2, 2002.

[5] Você, São Paulo: Abril, ano 1, nº 3, 1998.

[6] Folha de S. Paulo, São Paulo, 11/10/2008. Caderno B, p. 15.

[7] F. Teixeira; R. Menezes (org.). As religiões no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2006.

[8] A. Touraine. Um novo paradigma — para compreender o mundo de hoje. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 150.

[9] Ibidem.

[10] Ibidem, p. 153.

[11] R. Pereira. Viva a sociedade alternativa. Igreja, Belo Horizonte, nº 15, 2008, p. 20.

[12] D. Monteiro. “Igrejas, seitas e agências — aspectos de um ecumenismo popular”. Diógenes, Brasília: UnB, 1983, pp. 3-26.

[13] Os termos entre aspas são tirados da peça publicitária.

[14] A. BOSI. “Cultura brasileira”, in: D. T. Mendes (coord.). Filosofia da educação brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1985, p. 158.

[15] P. Michel. La religion au musée: croire dans l’Europe contemporaine. Paris: L’Harmatttan, 1999, p. 154.

[16] G. Vecchi, Cardeal Martini. “Sinto a morte como iminente”. Disponível em <www.unisinos.br/_ihu>. Acesso em 10 out. 2008.

Pe. Luiz Roberto Benedetti