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Publicado em número 125 - (pp. 33-40)

A Igreja após o Vaticano II

Por Pe. José Oscar Beozzo

I. DO CONCÍLIO AO SÍNODO EXTRAORDINÁRIO

No próximo dia 8 de dezembro, estaremos celebrando o 20º aniversário do término do Concílio Vaticano II, coincidindo com o encerramento do Sínodo Extraordinário.

O Sínodo Extraordinário convocado pelo Papa João Paulo II deve dar um balanço desses últimos vinte anos e propor os caminhos para a Igreja no próximo milênio, o terceiro do cristianismo.

O Vaticano II foi, sem sombra de dúvida, o acontecimento maior na vida da Igreja, depois da Reforma Protestante e da Contrarreforma Católica promovida pelo Concílio de Trento (1545-1563).

Saudado como a nova primavera da vida da Igreja, o Concílio, que se quis pastoral e voltado para as “angústias e esperanças” do homem de hoje, encontra-se agora no centro de uma controvérsia.

Vozes autorizadas como a do Cardeal Prefeito para a Congregação da Doutrina da Fé, Joseph Ratzinger, acabam de emitir um juízo pessimista sobre o pós-Concílio e mesmo sobre o próprio Concílio: “E incontestável que os últimos vinte anos foram nitidamente desfavoráveis para a Igreja católica. Os resultados que se seguiram ao Concílio parecem cruelmente opostos às expectativas de todos, a começar pelas do Papa João XXIII e depois do Papa Paulo VI”[1]. E continua: “O Papa e os padres conciliares esperavam uma nova unidade católica e em vez disso foi-se a um dissenso que — para usar as palavras de Paulo VI — pareceu passar da autocrítica à autodestruição. Esperava-se um novo entusiasmo e, demasiadas vezes, terminou-se no tédio e no desencorajamento. Esperava-se um salto para frente e, em vez disso, chegou-se a um processo progressivo de decadência, sob a bandeira de um suposto ‘espírito do Concílio’ e desse modo o desacreditaram”[2].

Sobre o próprio Concílio, assim se exprime o Cardeal: “O Vaticano II encontra-se hoje numa luz crepuscular. Pela ala assim chamada ‘progressista’ da Igreja é considerado, há muito, não mais relevante para o presente. De outra parte, é considerado pela ala ‘conservadora’ como responsável pela atual decadência da Igreja católica e até mesmo julgado como apostasia em relação ao Concílio de Trento e do Vaticano I: tanto assim que houve quem chegasse ao ponto de pedir o anulamento ou uma revisão que equivalesse a tanto”[3].

Juízos tão drásticos e partindo de tão alta autoridade surpreenderam e causaram perplexidade, tanto mais que, no comum sentir dos fiéis, o Vaticano II, obra do Papa João XXIII e do Papa Paulo VI, obra ainda do conjunto dos bispos sob a luz do Espírito Santo, foi percebido como uma dádiva e uma bênção de Deus para a sua Igreja.

 

1. Concílio: Tempo de abertura e participação

Antes de analisarmos as posições acima expostas, gostaríamos de contrapor a elas as opiniões de cerca de setenta agentes de pastoral da arquidiocese de São Paulo, participantes do curso de atualização catequética do CEVAM, na paróquia de Santo Antônio da Vila Carioca. O CEVAM reúne agentes de pastoral em trabalhos nas favelas, cortiços, movimentos populares, pastoral de juventude, catequese. São na sua maioria religiosas, vivendo na periferia ou ainda noviças, postulantes, comprometidas em trabalhos populares. Mas há também jovens operários e operárias, professoras, pais de família. Público feminino em sua maioria.

Ao iniciar o curso de História da Igreja no Brasil, propusemos aos participantes três questões para serem respondidas individualmente. As perguntas eram simples e visavam acolher as interrogações dos participantes acerca da história da Igreja no Brasil; levantar os acontecimentos que julgavam mais importantes para a história da Igreja no Brasil e, finalmente, solicitar um esboço de periodização de nossa história da Igreja.

 

Em grupos, os participantes sistematizaram as respostas individuais, produzindo nove cartazes.

No que tange à periodização, a resposta dos grupos tendeu, com pequenas variantes, a esboçar um quadro em dois momentos: a história antes e depois do Concílio Vaticano II.

O período inaugurado pelo Vaticano II foi caracterizado como de:

— abertura da Igreja;

— participação do povo;

— renovação;

— abertura para a participação dos leigos;

— Igreja voltada para as questões sociais;

— Igreja presente nos meios populares;

— Teologia da Libertação, como vivência do Evangelho na realidade;

— encarnação da Igreja na realidade latino-americana e brasileira através de Medellín, Puebla e da CNBB;

— abertura dos religiosos na catequese.

 

Entre os acontecimentos relevantes, o Concílio Vaticano II voltou a ser elencado por todos os grupos, ao lado do surgimento das CEBs, da realização das Conferências de Medellín e de Puebla, do surgimento do ecumenismo, da Teologia da Libertação, das Campanhas da Fraternidade, da redescoberta e da revalorização da Religiosidade Popular, da realização da visita do Papa ao Brasil.

Esses acontecimentos foram julgados importantes porque têm levado a Igreja a redescobrir o valor de sua missão evangelizadora. Foi assinalada ainda na pastoral “uma caminhada maior com o povo, visando à transformação da sociedade brasileira”; o espaço que o Vaticano II abriu para o trabalho dos leigos, a renovação dos Direitos Humanos, a opção pelos pobres e pelos jovens em Puebla, a criação da CNBB e da CRB.

É importante notar que, para todos esses grupos, o Vaticano II emerge como o divisor de águas fundamental para a Igreja, recebendo ao mesmo tempo uma valorização extremamente positiva, como momento de abertura, de renovação, de participação. São percebidos como desdobramentos do Concílio na América Latina, as Conferências de Medellín e de Puebla, as Comunidades Eclesiais de Base, a opção pelos pobres e pelos jovens e a Teologia da Libertação. No Brasil, a Campanha da Fraternidade, a CNBB e seus trabalhos são vistos como fluindo do Concílio e avaliados de maneira igualmente positiva.

Como compaginar, pois este comum sentir de agentes de pastoral comprometidos em trabalhos de base, de jovens no limiar da vida religiosa, de catequistas empenhados na formação das crianças com a avaliação proposta pelo Cardeal Ratzinger na sua longa entrevista ao jornalista italiano Vittorio Messori e agora publicada no livro Rapporto sulla Fede, donde extraímos os trechos acima citados? Como é possível sobre o mesmo acontecimento, o Concílio Vaticano II, chegar-se a conclusões tão opostas entre si?

Arriscamos algumas hipóteses que talvez nos ajudem a entender esta discrepância.

 

2. Sociedades envelhecidas x Países jovens

Há clara diferença, neste momento, entre as sociedades do Velho e do Novo Mundo.

Quando o Papa João XXIII, em janeiro de 1959 falou pela primeira vez em convocar o Concílio, o Brasil era um país diferente do que é hoje. Brasília ainda não era sua capital e mais de 60% da atual população brasileira de 135 milhões de habitantes ainda não havia nascido. A maioria, pois, de nossa população conheceu e viveu apenas a Igreja pós-conciliar.

Na terra do Cardeal Ratzinger, a Alemanha Ocidental, a situação é inversa. Mais de 80% da população nasceu antes do Concílio e este veio transtornar velhos hábitos enraizados, velhos costumes, dificultando a sua recepção. Nesse sentido a sua acolhida foi lenta e penosa, desencantando os jovens pela lentidão e os velhos pela novidade. A geração pós-conciliar não representa nem 20% da população e a mesma situação, com pequenas variações, aplica-se ao conjunto da Europa Ocidental. A Europa, sobretudo do norte, que gestou o Concílio, não está sendo capaz de desenvolvê-lo e aplicá-lo.

 

3. Na América Latina: Medellín e Puebla

O pós-Concílio na América Latina encontrou uma Igreja disposta a enfrentar os novos desafios e, nem bem terminado o Concílio, já começava a circular a ideia da convocação de uma II Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, para traçar os rumos da aplicação do Concílio no Continente. Nada de semelhante aconteceu na Europa. Praticamente, com Medellín, a Igreja latino-americana tornou-se adulta. Traçou o seu próprio caminho, tomando como plataforma o Concílio, mas inovando e avançando em muitos pontos.

Deixa já de existir em Medellín aquela atitude de otimismo, um tanto ingênuo perante o mundo, típica da Europa dos anos 1960, no auge de sua reconstrução e da prosperidade do mundo capitalista do pós-guerra. Num continente de miséria e de opressão, o mundo emerge na sua face carregada de conflitos, na sua divisão entre um norte opulento e um sul empobrecido, no racha interno dos países com minorias ricas e grandes massas deserdadas. Também a juventude e os pobres ganham em Medellín um documento específico e o projeto que emerge com força desta Conferência é o da libertação, conclamando toda a Igreja a passar das palavras à ação com a máxima urgência.

O ímpeto de Medellín, ainda que submetido a críticas, oposições externas e internas à Igreja, foi retomado com vigor por Puebla. A opção preferencial pelos pobres traduziu o que de melhor o Vaticano II, em breves lampejos, ao falar de uma Igreja “servidora e pobre” havia produzido e Medellín havia explicitado.

Muito do que o Concílio não disse e que mais tarde estará no centro da encíclica Populorum Progressio, de Medellín e de Puebla, já estava presente nas breves palavras de Paulo VI aos padres conciliares, no dia 5 de outubro de 1965, ao retornar de sua viagem às Nações Unidas: “Chegou a hora de passar das palavras aos atos. Daqui em diante, deveremos estar muito mais atentos aos pobres (grifo nosso), porque é a desigualdade dos bens que causa as desordens e provoca as guerras. Esta atenção à injustiça e à pobreza no mundo vai empurrar a fé para se colocar ainda mais a serviço da caridade tanto nas discussões do Concílio como nas relações espirituais e sociais com os homens de boa vontade, de todas as raças e de todas as crenças”[4].

 

4. A irrupção do pobre e o sangue dos mártires

Na América Latina, no pós-Concílio houve uma verdadeira irrupção do pobre no interior da Igreja: multiplicando-se em comunidades, partindo para uma leitura séria e comprometida da palavra de Deus, unindo com muita força a Vida e a Bíblia e assumindo novas tarefas e ministérios na vida da Igreja.

Em vez do tédio, como diz o Cardeal Ratzinger, muita alegria, explodindo em celebrações e cantos. Em vez do desencorajamento, a ousadia e a esperança, mesmo em meio a inauditos sacrifícios, privações e perseguições. Em vez da decadência, o multiplicar-se de iniciativas e supremos testemunhos de vitalidade nos milhares de mártires que iluminam o cotidiano das comunidades da América Latina: homens e mulheres do povo, simples membros das comunidades, cujas vidas foram ceifadas no testemunho pela justiça e pelo Evangelho. Seus nomes estão inscritos no livro da vida junto de Deus e no coração das comunidades que os relembram nas suas orações, ao lado dos mártires da Igreja primitiva. Lado a lado, nesse testemunho, estão: o arcebispo D. Oscar Romero, a camponesa Margarida Alves, o sacerdote Rutílio Grande, o operário Santo Dias, o índio Simão, a irmã Cleide… Eles formam a galeria dos que inspiram a fé e imprimem coragem nas lutas das comunidades, dos sindicatos, das organizações populares. Suas fotos, por vezes amarelecidas e em papel jornal, estão ao lado dos santos nas casas dos pobres. O pós-Concílio não produziu mártires na Europa e nem perseguições à Igreja, salvo nos países do leste europeu e aí, por sua vez, a fé continua viva e esperançosa.

Também nas Filipinas, na Coreia, na África do Sul, a fé está sendo desafiada a responder com coragem a regimes de segurança nacional, a tomar posição, em nome do Evangelho, contra as injustiças, as violações dos direitos humanos, o racismo.

 

5. A Teologia da Libertação

O pós-Concílio conheceu também na América Latina o florescimento no campo teológico de uma reflexão original e voltada para dar as razões de uma fé vivida comunitariamente e comprometida com as lutas de libertação dos povos latino-americanos. A Teologia da Libertação inscreve-se assim no velho tronco da tradição teológica, arrancando, ao mesmo tempo, do chão bíblico e do chão da vida das comunidades seu próprio sustento.

Ainda que esteja nos seus primeiros passos, a Teologia da Libertação, no testemunho insuspeito do teólogo suíço Urs Von Balthasar, foi o que de mais importante aconteceu no campo teológico no pós-Concílio.

O que está em jogo, pois não é apenas uma divergência na avaliação do Concílio e do pós-Concílio e sim um fenômeno muito mais profundo a nível eclesial. As Igrejas da Europa deram o tom aos debates do Concílio. A nova teologia francesa, a tradição científica e acadêmica da teologia alemã, a ousadia da jovem teologia holandesa e a teologia ambientada ao debate universitário na Bélgica, contribuíram para que a Igreja enfrentasse com coragem as questões da modernidade, do progresso, das ciências e da técnica. Parece, porém, que hoje as questões cruciais são outras e as respostas emergem a partir de outras experiências eclesiais e de outras teologias.

Dentro de 15 anos, no ano 2000, perto de 80% da população mundial estará concentrada no Terceiro Mundo. Em todo o Terceiro Mundo, e de modo especial na Ásia, o cristianismo — tanto em sua vertente católica, como ortodoxa ou reformada — é apenas uma ínfima minoria. Ali talvez torne-se compreensivo o que dizia Roger Garaudy no seu livro de título provocativo: O Ocidente é um acidente.

Neste imenso e empobrecido Terceiro Mundo apenas a América Latina e em toda a Ásia apenas as Filipinas, são majoritariamente cristãs. Este é o desafio maior para o cristianismo no terceiro milênio. Retomar a tarefa missionária, não mais como empreendimento de conquistadores e colonizadores e sim como diálogo fraterno de grupos humanos igualmente empobrecidos, em busca de dignidade e em luta contra as forças da morte e da opressão que chegam muitas vezes, concretamente, do assim chamado Ocidente cristão.

Nascem aí também insuspeitados caminhos para um ecumenismo dos empobrecidos selados no compromisso comum de lutar pela vida e pela dignidade dos pequenos.

O olhar, porém, sobre os últimos vinte anos do Concílio, não pode desviar nossa vista das tarefas concretas do presente e das que se desenham no futuro para nossas Igrejas da América Latina e, em particular, para a Igreja do Brasil. Nesse sentido dedicamos a segunda parte deste artigo ao exame das esperanças e também receios e desafios para a Igreja.

 

 

II. RECEIOS E ESPERANÇAS

Vamos passar rapidamente em revista as esperanças, sem deixar de analisar as inquietações.

 

1. As Comunidades Eclesiais de Base

A primeira esperança é a caminhada das CEBs que durante todo este ano estão preparando o seu 6º Encontro Intereclesial. A morte veio colher, de maneira inesperada, ao corajoso arcebispo de Goiânia D. Fernando Gomes que se preparava para acolher em sua arquidiocese as CEBs de todo o Brasil. Essa morte deixou grande vazio não só na arquidiocese, mas no episcopado brasileiro e de modo particular no Centro-Oeste. Em que pese a perda irreparável, a preparação do 6º Encontro prossegue, dando um sinal da maturidade das CEBs e da coordenação de Goiânia.

Persiste, porém, certa inquietação em relação às CEBs:

— Há lugares onde certa comunhão das CEBs entre si, que ia tecendo uma rede de solidariedade, de ajuda e fortalecimento recíprocos, foi interrompida, para subordinar as CEBs à estrutura paroquial, isolando-as umas das outras, enfraquecendo-as em seus laços mútuos e, o mais das vezes, abafando as lideranças mais populares em favor de lideranças de classe média e alta que controlam normalmente o centro paroquial.

— Em muitas dioceses, sob pretextos variados, dissolveram-se as estruturas de coordenação das CEBs entre si a nível diocesano, enfraquecendo a sua capacidade de influir de maneira mais coordenada e constante nos rumos da Igreja local.

— A luta social, sindical e política tem atraído muitas das melhores lideranças das CEBs, sem que estes líderes continuem depois encontrando em sua comunidade apoio e alimento suficientes para sua fé vivida em terrenos mais difíceis e movediços.

— O contato cotidiano com a Bíblia, que tem sido o segredo da força das CEBs, padece de um impulso maior no sentido de impedir que se instale certo fundamentalismo bíblico, em que pese os múltiplos esforços já feitos e dentro dos quais se inscreve, de maneira exemplar, o trabalho do CEBI.

 

2. A colegialidade episcopal

Um dos ganhos fundamentais do Concílio no Brasil, foi a consolidação da Conferência Episcopal. Criada em 1952, ela se firmou com a longa convivência de meses e meses seguidos, na Domus Mariae em Roma, durante as quatro sessões do Concílio (1962-1965). Fortaleceu-se, ademais, com o selo doutrinal da colegialidade episcopal aprovada no Concílio. A CNBB fez com que a colegialidade se tornasse prática viva na Igreja do Brasil, tendo o afeto colegial entre as várias Igrejas particulares crescido sob as perseguições, calúnias e pressões dos 21 anos de ditadura militar.

Este ganho, porém, fez na Igreja brasileira uma Igreja fortemente episcopal, onde outras estruturas que lhe davam maior equilíbrio foram desfeitas e nunca mais recompostas. Na década de 1950 e início dos anos 1960, ao lado da CNBB, os leigos da Ação Católica ocupavam um espaço igualmente organizado e significativo que subia, das equipes locais, às coordenações diocesanas, regionais e nacionais. Na sua qualidade de leigos de Ação Católica falavam também eles pela Igreja. Suas equipes nacionais eram interlocutoras constantes do episcopado na discussão dos problemas mais graves do país e da Igreja. De resto a própria CNBB tomou como ponto de apoio para sua estruturação, a organização da Ação Católica, chegando a funcionar nos primeiros anos, nos próprios locais da Ação Católica Nacional, à Rua México, no Rio de Janeiro.

Hoje a Igreja do Brasil conta com uma invejável e eficiente estrutura episcopal, mas sem o contrapeso de um laicato fortemente organizado e adulto, com estruturas reconhecidas e espaços próprios em todos os níveis inclusive nacional. O Conselho Nacional de Leigos não preenche esse vazio e é uma caixa sem ressonância real, pois não deita raízes em nenhuma organização que o sustente na sua retaguarda e da qual seja representativo.

Também os padres não conhecem uma sólida organização que lhes permita apresentar-se como corpo presbiteral, com seus deveres e funções, à semelhança do corpo episcopal.

A Pastoral Universitária busca lentamente recompor sua presença no país, mas resta-lhe ainda um longo caminho para voltar a ter um peso insti­tucional na Igreja do Brasil. O mesmo se diga da JOC, da ACO que prosseguem no seu trabalho, mas sem àquele estreito vínculo que fez dos vários ramos da Ação Católica, atores fundamentais da cena eclesial brasileira nos anos que precederam o Concílio.

As únicas pastorais que lograram certa audiência e um peso específico no seu campo foram o CIMI e a CPT, pela qualidade e o testemunho de suas lutas e por sua organização em nível nacional. Ligadas à CNBB, mas guardando ao mesmo tempo um espaço de autonomia, elas cumpriram uma tarefa inestimável nesses últimos anos, avançando onde os bispos precisavam guardar certa prudência; guardando laços estreitos com o corpo eclesial e não se lançando em ações isoladas; mantendo raízes nos trabalhos de base, sem descuidar da necessária coordenação entre eles; mantendo seus militantes nos trabalhos práticos; mas oferecendo-lhes momentos de formação, revisão e planejamento em comum. No CIMI e na CPT vem também desabrochando toda uma teologia da evangelização, da terra, da inculturação do Evangelho, do aprofundamento da relação entre fé e política. A presença ao mesmo tempo fraterna de pais e guias da fé, de escuta atenta e de orientação delicada, que vários bispos mantêm junto a esses organismos, tem permitido superar os momentos de tensão na vivência de compromissos novos e difíceis, tanto na prática quanto no campo teológico.

A recente criação, pelos teólogos, da Sociedade Brasileira de Teologia e Ciências da Religião pode acrescentar um novo organismo na vida da Igreja do Brasil, servindo de contrapeso a certo exclusivismo da função episcopal.

 

3. Na Igreja particular: participação nas decisões

Outro fruto esperançoso do Concílio foi o desabrochar da Igreja particular. Guardando intatos seus laços de comunhão com as outras Igrejas particulares e com a Igreja de Roma, muitas delas ganharam uma face própria inconfundível e muitas se aproximaram entre si para o, intercâmbio e a ajuda, chegando a institucionalizar laços mais permanentes, como no caso das Igrejas-irmãs.

Dentro das Igrejas particulares cresceram estruturas de participação, como as assembleias diocesanas, os conselhos diocesanos de pastoral e outros organismos com presença leiga largamente majoritária. O sentido de pertença a uma determinada Igreja particular cresceu e se tornou uma força para o trabalho pastoral.

Muitas dessas estruturas de participação reproduziram-se a nível paroquial, com assembleias paroquiais e conselhos paroquiais de pastoral. Ao lado de dioceses que mantiveram apenas estruturas de cunho burocrático-administrativo como as cúrias diocesanas, outras ganharam organismos de direção e animação pastoral, como secretariados diocesanos de pastoral, coordenações diocesanas de catequese, de pastoral de juventude, de CEBs etc.

Em muitas Igrejas particulares, essas estruturas de participação, vividas com profundo senso eclesial, levaram à consciência de que a Igreja é antes de tudo esse corpo complexo, onde todos concorrem com distintos dons e serviços para a construção da Igreja de pedras vivas, sinal do Reino entre os homens e onde cada batizado carrega sua parcela de responsabilidade. Isto fez com que muitas dessas instâncias fossem ganhando naturalmente caráter deliberativo, onde todos, à sua maneira, concorrem para a tomada de decisões. Assim nos conselhos paroquiais, nos conselhos diocesanos de pastoral e, sobretudo, nas assembleias diocesanas. E isso, sem que em nenhum momento esse amadurecimento das responsabilidades no interior da Igreja fosse sentido ou vivido como diminuição da autoridade do vigário ou da autoridade episcopal.

O Concílio ao deslocar a ênfase, na definição da Igreja, da hierarquia para o povo de Deus, abriu caminho para essa participação mais ativa e responsável de todos na vida e na construção da Igreja. Neste momento, a ênfase volta a deslocar-se para o polo da hierarquia. Sem negar a definição conciliar de Igreja como povo de Deus, esvazia-se na prática o seu alcance, deslocando para o polo hierárquico toda a autoridade dentro da Igreja.

Assim o novo Código de Direito Canônico define os conselhos paroquiais como instâncias pura­mente consultivas em relação ao vigário que é o único detentor da autoridade dentro da paróquia. Os conselhos de presbíteros, por sua vez, são órgãos consultivos em relação ao bispo e da mesma sorte os conselhos diocesanos de pastoral. O Sínodo de bispos, igualmente, é órgão consultivo do Papa.

De alto a baixo da estrutura eclesial define-se um polo de poder, que tem autoridade de deliberar, inclusive sem consultas (a não ser em casos estritamente definidos pelo direito para o bispo em relação ao conselho de presbíteros) e, de outro, um polo sem nenhum poder, que pode ser consultado, mas também deixar de sê-lo e cuja opinião não faz necessariamente parte do processo decisório.

O Código abre assim um precedente para o exercício do poder, sem contrapesos e controles institucionais, podendo matar, a médio prazo, todas as estruturas de decisão participativa, que o Concílio fez brotar e estabelecer-se em muitas das Igrejas.

Ora toda a prática da Igreja primitiva foi no sentido da participação da assembleia dos fiéis nas decisões, escolhas e rumos da Igreja, no sentido da criação de estruturas colegiadas de decisões e administração. Assim, na escolha do substituto de Judas Iscariotes, é à assembleia dos irmãos que se dirige Pedro para que indiquem os que julguem dignos de serem associados aos apóstolos como testemunhas da ressurreição de Jesus (At 1,15-26). É de novo à assembleia dos discípulos que os Doze se dirigem, para a criação do diaconato, dizendo: “Procurai entre vós, irmãos, sete homens de boa reputação, repletos do Espírito e de sabedoria, e nós os colocaremos na direção deste ofício…”. “A proposta agradou a toda a assembleia, e foram escolhidos: Estevão…” “Eles foram apresentados aos apóstolos e, depois de terem orado, impuseram-lhes as mãos” (At 6,3-6).

Pedro é chamado a explicar-se diante dos circuncisos por ter entrado na casa de incircuncisos e comido com eles (At 11,1-18). É depois chamado à atenção por Paulo, por ter deixado de frequentar os gentios por medo da crítica dos judeus (Gl 2,11-14). No momento de grave crise na Igreja, apóstolos e anciãos reuniram-se em assembleia para deliberarem juntos (At 15,5-6).

Vê-se na Igreja primitiva que o exercício da autoridade comporta a assembleia dos fiéis, envolvendo a prática da correção fraterna inclusive em rela­ção à mais alta autoridade da Igreja, Pedro, sem que isto em nada fira a autoridade de Pedro e dos apóstolos.

É, pois, necessário que não se mate o Espírito na Igreja e não se ofereçam apenas estruturas de participação, esvaziadas de conteúdo e significado.

Saberão nossas Igrejas consolidar na prática e também, lentamente, a nível teológico, as inspirações do Concílio Vaticano II e as que nos vêm da prática das primeiras comunidades? Em todo caso, deveria permanecer sempre claro o princípio que rege toda a interpretação do Código de Direito Canônico: Não é à luz do Código que deve ser interpretado o Concílio e sim vice-versa.

 

4. Religiosas na pastoral

Outro motivo de alegria na vida da Igreja tem sido o florescimento da vida religiosa feminina nos trabalhos pastorais. Multiplicaram-se as comunidades inseridas nos lugares mais pobres, abandonados e difíceis, tornando-se sementes da presença de Deus e força do Evangelho na caminhada do povo. Em muitos lugares, as religiosas assumiram papel fundamental na animação pastoral das comunidades, tornando-se as responsáveis diretas de grande número de paróquias.

Devagar esses grupos de religiosas têm criado suas formas de intercâmbio, de encontro e de formação permanente. Sem elas, muito do trabalho da Igreja na periferia das grandes cidades e nas regiões distantes do campo deixaria de existir.

Constata-se, porém, que as religiosas realizam os trabalhos, mas raramente participam das decisões que continuam nas mãos dos padres ou conselhos de presbíteros ou simplesmente do bispo.

Não se pode continuar pedindo tanto esforço e dedicação às religiosas, sem uma revisão séria do lugar da mulher na Igreja, nos ministérios e nas estruturas de decisão pastoral.

 

5. A juventude

Entre o anúncio do Concílio e agora, na celebração do seu vigésimo aniversário, a população do Brasil dobrou. A juventude é a parcela mais numerosa da população e a Igreja tem tido dificuldades em caminhar com os jovens. Sem os jovens, porém, a Igreja do Brasil não terá grande futuro. Nesses últimos anos eles foram os mais atingidos pela recessão. Entre 1980-1985 precisariam ter sido criados 15 milhões de novos empregos no país para acolher os jovens aptos a ingressar no mercado de trabalho. Não só não foram criados esses novos empregos, como a mão de obra efetivamente empregada não alcançou os níveis de 1979, devido à recessão dos últimos seis anos. Esses jovens estão sendo frustrados no seu futuro e no seu presente. Dentro da Igreja, em muitas dioceses, suas coordenações têm sido dissolvidas; grupos têm sido expulsos das paróquias e parece estar crescendo a dificuldade de enfrentar com coragem as questões que levantam, de abrir-lhes espaços de participação real na vida da Igreja, oferecendo-lhes responsabilidades e investindo em sua formação humana e cristã.

Está aqui um dos desafios maiores da Igreja do Brasil neste momento.

 

6. Classe operária, boias-frias, índios, negros e intelectuais

Juntamos, num último ponto, algumas outras inquietações: hoje, em regiões como São Paulo e o ABC, há clima de confiança e respeito sobre a classe operária e a Igreja. Há uma presença atuante da JOC, da ACO e da Pastoral Operária. As equipes são, porém, uma pequena gota d’água num grande oceano. A opção preferencial pelos pobres passa pelo reconhecimento de todo o mundo do trabalho, onde a classe operária tem um peso, uma tradição de luta e uma consciência específica, além de um projeto de sociedade mais definido e articulado. Do mesmo modo no campo, a intensa capitalização da agricultura, as transformações trazidas pela extensão das culturas de cana, laranja, e mesmo pela mudança no manejo de culturas tradicionais como o café, criaram este imenso proletariado rural constituído pelos boias-frias. Uma presença pastoral junto a eles é difícil e exigente. Pequenos grupos de seminaristas e agentes de pastoral têm-se tornado cortadores de cana, por certos períodos, para compartilhar a vida e o sofrimento dos boias-frias, mas a Igreja como um todo não encontrou ainda os caminhos de uma presença pastoral e socialmente mais comprometida com esta categoria social.

Crescem em todo o país, como um sinal de esperança, os grupos de União e Consciência Negra, os encontros entre agentes de pastoral negros. O desafio que lançam à consciência da Igreja é, porém, mais profundo do que possa parecer à primeira vista, pois a tradição da escravidão e do racismo impregnaram profundamente a sociedade brasileira e a Igreja. Os cultos afros interpelam também a Igreja e pedem a redefinição do diálogo ecumênico.

A Pastoral indigenista solicita mais e mais a teólogos e biblistas que acompanhem sua caminhada, para alimentar sua espiritualidade e a reflexão da fé diante de culturas cujo horizonte mítico é totalmente distinto do nosso e têm direito a preservar valores cujo núcleo central é religioso. Sem resposta desde o século XVI, continua a interrogação pungente: “Como evangelizar, sem ocidentalizar, sem destruir, sem matar o mundo indígena?”. Não poderiam nossas Igrejas assumir este desafio como tarefa prioritária às vésperas do V Centenário da chegada de Colombo às terras destes muitos povos, desde então, ignorados, desprezados e esmagados em sua vida, dignidade e cultura?

Fica ainda o desafio da evangelização dirigida às inteligências, sobretudo no campo da ciência e da técnica. Desde a imensa angústia dos pobres e pequenos a Igreja tem obrigação de não descuidar-se desse segmento decisivo no mundo contemporâneo e cujo saber tem direito de encontrar uma fé capaz de responder às suas interrogações e de suscitar o seu compromisso social e humano.

 

III. CONCLUSÃO

Concluímos aderindo ao balanço que dá Gustavo Gutiérrez da recepção do Concílio na América Latina: “Cremos que se pode afirmar que a Igreja da América Latina considerou, a partir da perspectiva aberta pelo Concílio e dentro de uma urgente preocupação evangélica, um grande sinal dos tempos: a aspiração à liberdade, à justiça, à dignidade e, em última instância, a vida, da parte dos pobres e dos oprimidos. A relevância do pobre para o Reino de Deus e, por conseguinte, para o anúncio do Evangelho, é o nervo da mudança que experimenta a Igreja latino-americana.

Esta ótica levou a comunidade cristã latino-americana a retomar a intuição de João XXIII sobre a Igreja dos Pobres e a ler a partir daí os grandes temas conciliares para examinar seu alcance para o nosso continente.

“… Este tempo só será fecundo para o futuro se tivermos a humildade e a coragem necessárias para forjar-nos como uma Igreja pobre, missionária e pascal”[5].

 



[1] J. Ratzinger. Rapporto sulla Fede. Roma: Pauline, 1985, p. 27.

[2] Ibidem, pp. 27-28.

[3] Ibidem, p. 26.

[4] Citado por Antoine Wenger. Vatican II — Chronique de Ia Quatrième Session. Paris: Editions du Centurion, 1966, p. 48.

[5] Gustavo Gutiérrez. “O Vaticano II e a Igreja latino-americana”, in: Páginas, Separata nº 70, agosto de 1985, p. 12. Em breve será editado por Edições Paulinas.

Pe. José Oscar Beozzo