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Publicado em número 262 - (pp. 33-36)

A missionariedade dos Presbíteros à luz do documento de Aparecida

Por Pe. Paulo Suess

(Comissão Nacional de Presbíteros – 54)

(A 1ª Parte deste artigo foi publicada na edição anterior da revista Vida Pastoral — nº 261, jul.-ago., 2008, pp. 32-39).

 

PONTO DE CHEGADA: LUGARES, DESAFIOS, COMPROMISSOS

Em todo nosso trabalho profissional, nas estruturas pastorais, nos caminhos percorridos e nos encontros realizados, a missão é um ponto de chegada. Embora faça parte da natureza da Igreja, ela não está naturalmente presente em nossas atividades. O Documento de Aparecida (DA) procura nos lembrar disso quando fala dos lugares, dos desafios pastorais e dos compromissos.

 

1. Lugares, sobretudo a paróquia

Aparecida pensa a operacionalização da natureza missionária da Igreja em três círculos concêntricos: como missão ad gentes, missão continental e missão paroquial.

“Missão ad gentes” significa, no DA, “missão universal” da Igreja: “Somos testemunhas e missionários nas grandes cidades e nos campos, nas montanhas e selvas da nossa América, em todos os ambientes de convivência social, nos mais diversos ‘areópagos’ da vida pública das nações, nas situações extremas da existência, assumindo ad gentes nossa solicitude pela missão universal da Igreja” (DA 548). O campo da missão ad gentes se ampliou além de horizontes geográficos ou jurídicos: “Os verdadeiros destinatários da atividade missionária do povo de Deus não são só os povos não cristãos e as terras distantes, senão também os âmbitos socioculturais e, sobretudo, os corações” (DA 375). Aparecida espera “uma nova primavera da missão ad gentes” (DA 379). Ainda temos grande dívida com a África e, na Ásia, espera-nos humilde estágio nas questões do diálogo inter-religioso.

A missão continental se dirige aos católicos batizados, porém pouco ou não evangelizados (DA 286), e, portanto, deveria assumir o que já foi chamado de “nova evangelização entre os cristãos culturais” (cf. RM 33; SD 24) e “re-evangelização entre os não praticantes” (RM 33; 37). Na missão continental, todo o continente “quer colocar-se em estado de missão” (DA 213).

O documento aposta no papel missionário da paróquia, aponta para as dificuldades existentes e propõe, genericamente, mudanças estruturais. Aparecida quer “que todas as nossas paróquias se tornem missionárias” (DA 173). “Toda paróquia é chamada a ser (…) fonte dinâmica do discipulado missionário” (DA 172), lugar onde se acolhem os pobres e se escuta a Palavra, onde se celebram os mistérios (DA 175) e se envia em missão.

A paróquia é um lugar onde se celebra com alegria (cf. DA 175a). E essa alegria tem algum vínculo especial com os pobres — a maioria dos católicos vive sob o flagelo da pobreza (DA 176) — e com o Espírito Santo. A paróquia é chamada a ser a “boa samaritana”, porque “toda autêntica missão unifica a preocupação pela dimensão transcendente do ser humano e por todas as suas necessidades concretas” (DA 176). Ela é expressão viva da Igreja, que se considera “casa dos pobres” (DA 8; 524), lugar onde se visibiliza a “opção preferencial pelos pobres” (DA 179). Mas é também a casa da juventude (DA 446). “A renovação missionária das paróquias se impõe, tanto na evangelização das grandes cidades como do mundo rural (…). Particularmente no mundo urbano, é urgente a criação de novas estruturas pastorais, visto que muitas delas nasceram em outras épocas para responder às necessidades do âmbito rural” (DA 173).

A maioria dos latino-americanos e caribenhos foram batizados na Igreja católica e passaram, em algum momento de sua vida, pela Igreja (cf. DA 127), mas as paróquias não conseguem — aliás, nunca conseguiram — acompanhar os seus batizados como Aparecida está prevendo: “A paróquia precisa ser o lugar onde se assegure a iniciação cristã e terá como tarefas irrenunciáveis: iniciar na vida cristã os adultos batizados e não suficientemente evangelizados; educar na fé as crianças batizadas em um processo que as leve a completar sua iniciação cristã; iniciar os não batizados que, havendo escutado o querigma, querem abraçar a fé” (DA 293; cf. 294ss). Como fazer das paróquias “comunidades de comunidades” (cf. DA 309; 517e) e transformá-las de comunidades de manutenção em “centros de irradiação missionária em seus próprios territórios” e “lugares de formação permanente” (DA 306; cf. 304)? As paróquias, “que são o lugar privilegiado no qual a maioria dos fiéis tem uma experiência concreta de Cristo e comunhão eclesial” (DA 170), devem ser inseridas numa pastoral orgânica de cada diocese, junto com comunidades educativas, comunidades de vida consagrada, associações ou movimentos, pequenas comunidades (DA 169) e comunidades eclesiais de base (DA 179). Aparecida espera “valente ação renovadora das paróquias, a fim de que sejam de verdade ‘espaços de iniciação cristã, da educação e celebração da fé, abertas à diversidade de carismas, serviços e ministérios, organizadas de modo comunitário e responsável, integradoras de movimentos de apostolado já existentes, atentas à diversidade cultural de seus habitantes, abertas (…) às realidades circundantes’” (DA 170).

Cabe às paróquias “abandonar as estruturas ultrapassadas que já não favorecem a transmissão da fé” (DA 365). Entre essas estruturas caducas estão as estruturas ministeriais, territoriais e rurais. O propósito de renovar as estruturas paroquiais (DA 172) sem encaminhar mudanças concretas condena muitas propostas de Aparecida ao fracasso. Existem outros desafios de caráter estrutural. Entre eles, o DA relaciona a extensão territorial, a pobreza, a violência, a distribuição desigual dos presbíteros na Igreja do continente (DA 197). Aparecida propõe a descentralização (DA 517k) das paróquias, sua desburocratização (DA 203), a multiplicação dos braços e a qualificação dos ministros (DA 513; 517; 518). Propõe, por causa da extensão enorme das paróquias, a divisão do território paroquial em setores (DA 372; 518c). Tudo isso não é grande novidade. Nos conselhos pastorais paroquiais deverá haver um “conselho de assuntos econômicos junto a toda a comunidade paroquial” (DA 203) para obter os recursos necessários. Ao afirmar que “a renovação da paróquia exige atitudes novas nos párocos e nos sacerdotes” (DA 201), o DA aponta para falhas na formação seminarística, na recepção de candidatos e na mentalidade de muitos párocos. A maioria dos delegados de Aparecida conhece os problemas, porém, não tem a autonomia e a audácia necessárias para o encaminhamento de novas soluções pastorais. Aumentam-se as tarefas no âmbito do sistema paroquial tradicional e sobrecarregam-se os párocos e suas equipes. Nessa situação, Aparecida apela aos leigos e lembra: “Uma paróquia renovada multiplica as pessoas que realizam serviços e acrescenta os ministérios” (DA 202). Só “através da multiplicação deles” se pode responder às exigências do nosso tempo. “Os melhores esforços das paróquias (…) devem estar na convocação e na formação dos leigos missionários” (DA 174), cujo campo específico é o “mundo do trabalho, da cultura, das ciências e das artes, da política, dos meios de comunicação e da economia, assim como as esferas da família, da educação, da vida profissional” (DA 174).

 

2. Desafios pastorais

O documento assume o método “ver-julgar-agir”, que “tem enriquecido nosso trabalho teológico e pastoral e, em geral, tem-nos motivado a assumir nossas responsabilidades diante das situações concretas de nosso continente” (DA 19). Essas “situações concretas” apresentam muitos desafios pastorais. “É necessário fomentar o estudo e a pesquisa teológica e pastoral frente aos desafios da nova realidade social, plural, diferenciada e globalizada, procurando novas respostas que deem sustentação à fé e à experiência do discipulado dos agentes de pastoral” (DA 345). Aparecida lembra em vários lugares a “criatividade pastoral” (DA 99c; 345; 403), que forjou “grande número de pastorais específicas” e soluções pastorais surpreendentes. O DA menciona algumas dessas pastorais específicas, que podem ser urbanas ou rurais. Dirige-se concretamente aos que são obrigados a viver na rua (DA 407ss), aos migrantes (DA 411-416), aos enfermos (DA 417-421), aos dependentes de drogas (DA 422-426), aos detidos em prisões (DA 427-430), às famílias (DA 435-437), à infância (DA 437-441), aos adolescentes e jovens (DA 442-446), aos idosos (DA 447-450) e às mulheres (DA 451-458), aos indígenas e afro-americanos (DA 94-96; 529-533).

Na maior parte dessas pastorais, trata-se de uma “presença pastoral nas populações mais frágeis e ameaçadas pelo desenvolvimento predatório” (DA 474b). O labor pastoral procura “apoiá-las em seus esforços para conseguir equitativa distribuição da terra, da água e dos espaços urbanos” (DA 474b). Existem outras pastorais, por exemplo, a “pastoral da educação” (DA 328-346), a “pastoral universitária” (DA 343), a “pastoral da comunicação social” (DA 99f; cf. 486j) e a “pastoral voltada aos construtores da sociedade” (DA 501). Desde Medellín, muitas dessas preocupações pastorais estão presentes no cenário eclesial da América Latina e do Caribe. Além dessas pastorais ad extra, nota-se no documento grande preocupação pastoral ad intra, dirigida aos operários da vinha do Senhor, ao seu recrutamento por meio da “pastoral vocacional”, à sua formação inicial e permanente e à sua preservação, apesar da sobrecarga de suas tarefas pastorais (cf. DA 195-200; 314-327). Mudanças culturais, secularização, violência e injustiça afetam a vida em todas as suas formas e desafiam a pastoral (cf. DA 185). “Outros desafios são de caráter estrutural” (DA 197). Com certa resignação, os delegados de Aparecida admitem: “Não podemos deter-nos aqui para analisar todas as questões que integram a atividade pastoral da Igreja nem podemos propor projetos acabados ou linhas de ação exaustivas” (DA 431). Contudo, apelam a métodos e criatividade que permitam melhor “aproximação pastoral à realidade de nosso continente” (DA 403). Com esse método e essa “criatividade pastoral, devem-se elaborar ações concretas que tenham incidência nos Estados para a aprovação de políticas sociais e econômicas que atendam às várias necessidades da população” (DA 403). Aparecida propõe:

a) Um eixo de conteúdo. Esse conteúdo, baseado na palavra de Deus (DA 99a) e na “pastoral bíblica” (DA 248), tem uma “dimensão celebrativa e festiva” (DA 99b). Todos os esforços pastorais devem ser “orientados para o encontro com Jesus Cristo vivo” (DA 99) e aprofundados pela dimensão litúrgica, “centrada no mistério pascal de Cristo salvador, em particular na eucaristia” (DA 99b). Não se trata de “êxitos pastorais, mas da fidelidade na imitação do Mestre, sempre próximo, acessível, disponível a todos, desejoso de comunicar vida em cada região da Terra” (DA 372).

b) Permanente conversão pastoral. Ela nos faz perceber que muitas pessoas abandonam a Igreja não por motivos pastorais, mas porque “não encontraram respostas a suas inquietações” (DA 225). A conversão pastoral, por meio dos “rostos sofredores dos pobres”, que são rostos sofredores de Cristo (DA 393), produz novo zelo pastoral “pelo evangelho da vida e da solidariedade” (DA 400; cf. 402), que se transforma em “missão pastoral” (DA 195). “A conversão pastoral (…) exige que se vá além de uma pastoral de mera conservação para uma pastoral decididamente missionária” (DA 370).

c) Uma pastoral missionária. A pastoral missionária não é uma específica, mas representa o núcleo de cada atividade pastoral. A “firme decisão missionária deve impregnar todas as estruturas eclesiais e todos os planos pastorais” (DA 365). A formação pastoral para todos os setores pastorais deve ser uma formação missionária (DA 280). O caráter missionário da pastoral “requer novas atitudes pastorais por parte dos bispos, presbíteros, diáconos, pessoas consagradas e agentes de pastoral” (DA 291).

d) Mudanças de estruturas e linguagens. A opção preferencial pelos pobres “deve atravessar todas as nossas estruturas e prioridades pastorais” (DA 396) e forjar mudanças estruturais profundas na Igreja, no interior de uma pastoral orgânica renovada (DA 169). Também a renovação missionária da pastoral, “tanto na evangelização das grandes cidades como do mundo rural de nosso continente”, exige, com urgência, “a criação de novas estruturas pastorais” (DA 173; cf. 450). O recado de Aparecida parece ser este: “Não façam pastoral rural na grande cidade!” (cf. DA 513) e: “Não esqueçam, na grande cidade, que a Igreja aprendeu a ‘pastoral da acolhida’ (DA 517i) no interior!”. A mudança de estruturas atinge ainda a nossa comunicação: “Na pastoral persistem também linguagens pouco significativas para a cultura atual e em particular para os jovens”, linguagens que “não levam em consideração a mutação dos códigos existencialmente relevantes nas sociedades influenciadas pela pós-modernidade e marcadas por amplo pluralismo social e cultural” (DA 100d). Muitas vezes, o próprio DA não escapa dessa “linguagem pouco significativa”.

e) Convite aos leigos. Os leigos novamente são chamados “a participar na ação pastoral da Igreja, primeiro com o testemunho de vida e, em segundo lugar, com ações no campo da evangelização, da vida litúrgica e outras formas de apostolado” (DA 211). “A evangelização do continente (…) não pode realizar-se hoje sem a colaboração dos fiéis leigos” (DA 213). E eles são “parte ativa e criativa na elaboração e execução de projetos pastorais a favor da comunidade” (DA 213). Deve-se avançar para “garantir a efetiva presença da mulher nos ministérios que na Igreja são confiados aos leigos, como também nas instâncias de planejamento e decisão pastorais, valorizando sua contribuição” (DA 458b) e promovendo o “mais amplo protagonismo” do “gênio feminino” (DA 458a).

 

3. Compromissos

O DA distingue quatro categorias de compromissos, os quais implicam julgamentos de valores e de opções fundamentados na Boa-Nova de Jesus Cristo, compromissos assumidos com dificuldades, compromissos que outras instâncias específicas ou só genericamente nomeadas (os discípulos, os leigos, as religiosas, as paróquias, os governos) já assumiram, ou deveriam assumir, e compromissos que a 5ª Conferência, como magistério, assume pela Igreja.[1] Limito-me, neste contexto, a esta última categoria, que vale de uma ou de outra maneira também para os presbíteros.

A 5ª Conferência, como magistério, comprometeu-se a:

•   escutar os “reclamos da realidade” (DA 285);

•   “trabalhar para que a nossa Igreja latino-americana e caribenha continue sendo, com maior afinco, companheira de caminho de nossos irmãos mais pobres, inclusive até o martírio” (DA 396);

•   estar ao lado dos pobres, aflitos e enfermos que exigem nosso compromisso (DA 257) e, por isso, renovar a opção preferencial pelos pobres (DA 399); “preferencial implica que deva atravessar todas as nossas estruturas e prioridades pastorais” (DA 396);

•   levar a cabo uma catequese social incisiva (DA 505) e também grande missão continental (DA 362; 376);

•   trabalhar para a “construção de um futuro de maior dignidade e justiça” (DA 536; 363);

•   estar ao lado dos povos indígenas, fortalecendo suas identidades e organizações e buscando conscientizar a sociedade acerca da realidade indígena e de seus valores (DA 530);

•   fortalecer o ecumenismo, que se justifica por uma exigência evangélica, recuperando “em nossas comunidades o sentido do compromisso do batismo” (DA 228);

•   não abandonar “o compromisso com o diálogo inter-religioso” e “investir no conhecimento das religiões e na formação de agentes competentes para o diálogo inter-religioso” (DA 238);

•   “estimular o evangelho da vida e da solidariedade em nossos planos pastorais, à luz da doutrina social da Igreja” (DA 400), e “promover caminhos eclesiais mais efetivos, com a preparação e compromisso dos leigos para intervir nos assuntos sociais” (DA 400).

 

O DA, quando capta a realidade de hoje, aponta para a possibilidade e a necessidade de novo êxodo, para a ruptura com a ditadura dos ídolos e com a lentidão da burocracia do templo. Por causa dos desesperados, que se encontram no caminho de Jerusalém para Jericó, aos presbíteros é confiado o dom ministerial da esperança numa Igreja samaritana (DA 26; cf. 176; 419) em construção.



[1] Cf. Paulo Suess. “Compromissos”, in: ______. Dicionário de Aparecida: 40 palavras-chave para uma leitura pastoral do Documento de Aparecida. São Paulo: Paulus, 2007, pp. 17-21.

— 2ª Parte

Pe. Paulo Suess