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Publicado em número 249 - (pp. 22-27)

Memória de Santo Domingo até nossos dias

Por Pe. J. B. Libanio

A memória da Igreja é complexa. Quem guarda o quê? Desde quando para quando? Só por meio de cortes predefinidos conseguimos dizer algo consistente. O sujeito que faz aqui o levantamento da memória eclesial é um teólogo. O ponto de partida temporal situa-se na Conferência de Santo Domingo. O artigo quer recordar o que a Igreja, na sua dupla dimensão de instituição oficial e de prática pastoral, especialmente no Brasil, viveu nestas duas últimas décadas e meia.

Tema bem circunscrito. Olhar bem restrito. Outros pontos de vista diferentes escreveriam coisas bem diversas. Quatorze anos de vida eclesial permitem colher experiências passadas e delinear desenhos para os próximos anos. Eis a proposta.

Santo Domingo pertence ao passado como conferência episcopal latino-americana, datada e registrada. As pessoas que lá estiveram e a vivenciaram carregam-na consigo, feito compreensão de vida. O texto está aí na frieza de sua letra, entregue a hermenêuticas parciais.

À distância de 14 anos, que elementos daquele evento se sedimentaram? O que semearam os seus atores principais? Que inspiração teológica e pastoral o texto instilou na vida da Igreja? É difícil constatá-los desde um lugar bem particular. As iniciativas da Igreja no Brasil, tanto em nível de documentação, subsídios escritos, quanto de experiências pastorais, cobrem vasto continente. Qualquer escolha restringe a verdade. Analisaremos a tensão interna desse evento, a herança positiva e negativa que deixou e as oscilações que se lhe seguiram.

 

1. A força do evento

Quando os comentários e críticas sobre a Assembleia de Santo Domingo são relidos, constatam-se com clareza duas dinâmicas em clara tensão.

De um lado, a influência autoritativa das instâncias romanas sobre o Celam, sobre as conferências episcopais nacionais e sobre a consciência direta dos bispos. De outro, a própria dinâmica criada pelos bispos da assembleia.

A primeira foi hegemônica. Manifestou-se em vários pontos e momentos: nas nomeações, na confirmação dos membros na conferência e na indicação para os cargos de presidência e secretaria. Além disso, a dinâmica e a estrutura básica dos trabalhos com conferências diretivas e a decisão sobre o tema central também foram decisões romanas. Roma exerceu significativa influência nas discussões e no controle de iniciativas no interior da assembleia, com enorme desconfiança quanto aos teólogos, especialmente aos da libertação. De fato, todos eles foram sistematicamente excluídos da participação oficial. E a aprovação do texto final ficou reservada ao poder romano. A injunção romana manteve influência ideológica na condução da temática.

A outra dinâmica, residual, vinha da memória de Medellín o verdadeiro ponto de partida de uma pastoral latino-americana da libertação. Retivera a relevância da presença de teólogos a assessorar livremente os bispos. E, embora muitos estivessem fora do círculo oficial da assembleia, eram consultados por bispos ou grupos deles. Permanecia ainda um sentido de autonomia das Igrejas particulares e de suas conferências, afeitas à discussão e à busca de consenso na liberdade e não da intromissão de poder externo. A experiência de Medellín e de colegialidade de muitas Igrejas do continente, ainda que enfraquecida, permanecia viva em Santo Domingo com momentos de liberdade e criatividade.

O que ficou dessa dinâmica como recepção? A linha hegemônica firmou-se e foi modificando internamente até mesmo os estatutos de conferências episcopais, reduzindo o papel crítico de assessores e perfilhando posições romanas. As Igrejas particulares e colegiadas da América Latina perderam liberdade e criatividade em prol de crescente uniformidade e vinculação institucional.

A temática e a metodologia desenvolvidas em Santo Domingo encontraram recepção nas Igrejas sob dois aspectos. Lá se produziram inversões com respeito à linha criada por Medellín e, em parte, continuada por Puebla. Essas inversões fizeram seu caminho para dentro das Igrejas. Mas também em Santo Domingo houve acenos novos e criativos que trouxeram respiro. Entre oscilações, astenia e vigor, vivemos o momento atual de recepção de Santo Domingo.

O documento de Santo Domingo abandonou o tradicional método ver-julgar-agir. O texto não se estrutura com base nele, como foram os casos de Medellín e Puebla e depois, no Brasil, de inúmeros documentos da CNBB e da pastoral. No momento, nota-se um enfraquecimento do uso de tal método.

Na própria teologia da libertação, houve uma reformulação dessa metodologia. O primeiro momento, do ver, ampliou-se. Em vez de deter-se na simples análise socioestrutural e especialmente no nível econômico, abriu-se para o antropológico, para o gênero, para a etnia, para a pluralidade religiosa. Nesse sentido, a recepção de Santo Domingo foi mais longe que o documento. No entanto, fora desse círculo mais restrito da libertação, a nova recepção de Santo Domingo tem encurtado o olhar sobre a realidade. Prefere concentrar-se na subjetividade e existencialidade das pessoas para alimentar-lhes a dimensão emocional e afetiva com nutrientes carismáticos, espiritualistas.

 

2. Oscilação

Nas últimas décadas, a evangelização tem refletido a própria oscilação de Santo Domingo. A simples comparação do título do documento com a conclusão em forma de oração manifesta a hesitação presente nessa conferência.

O texto se propunha, como programa evangelizador, criar uma cultura cristã. Por trás se escondiam alguns resquícios da neocristandade latino-americana, ainda presente em alguns países e em desaparecimento em outros. E o termo cultura cristã significava concretamente católica, sobretudo agora que uma das maiores ameaças ao catolicismo não vem do ateísmo, mas da multiplicação de numerosos contingentes evangélicos.

Há o permanente sonho de resguardar ou reconstruir uma cultura católica que permita a transmissão da fé católica pela via da cultura, facilitando toda a catequese. A cultura possui enorme força de convicção. Se se constrói uma cultura, perpassada pelos ensinamentos e valores da Igreja, a evangelização fica mais fácil e eficiente.

Essa concepção de evangelização aposta no uso da mídia para reforçar a cultura católica ou refazê-la, onde se tenha adelgaçado. Nesse sentido, essa recepção tem tido certo sucesso com a maior presença da Igreja na mídia televisiva por meio de canais católicos.

Na conclusão do texto em forma de oração, aparece outra concepção de evangelização. Lá se fala de inculturação da fé cristã em várias culturas. Não se pretende manter ou gestar uma cultura cristã única, mas que as diferentes culturas que permeiam o continente latino-americano — como a cultura moderna em suas diversas subculturas, a cultura afro, a cultura indígena — se impregnem do evangelho. Tem-se consciência de que as culturas sofrem profundas modificações e influências de muitas outras por força da globalização. Renuncia-se à pretensão de apenas uma cultura católica, hegemônica, no continente. A Igreja dobra-se diante da evidência do processo cultural da modernidade e da pós-modernidade.

A atenção desloca-se para os valores cristãos que se inculturam diferentemente nas diversas culturas. Conta-se com novas possibilidades de expressão cultural do evangelho em formas culturais diferentes. Passa-se de apenas uma cultura para inúmeras, impregnando-as da mensagem cristã.

Em relação à opção pelos pobres tem havido também oscilações. A tendência predominante de construir apenas uma cultura cristã põe reservas ao tipo de opção pelos pobres feito por Medellín e reafirmado por Puebla. Vê nessa forma um fator de radicalismo e exclusivismo no interior da Igreja, dificultando a unidade cultural desejada. Propõe insistir antes na dimensão universal da evangelização do que na preferência pelos pobres. Os pobres entram à medida que assimilam essa mesma cultura católica e em meio a ela são objeto de atenção evangelizadora.

Persiste depois de Santo Domingo, embora sem o entusiasmo de décadas anteriores, a convicção de que a opção pelos pobres questiona a cultura de neocristandade e a cultura moderna na sua raiz. Ambas não perceberam o caráter conflituoso da realidade social ou não atendem a ele devidamente. Ensombram-no com promessas de que o desenvolvimento capitalista redundará necessariamente na melhoria dos pobres (cultura moderna) e com a concepção de caridade assistencialista (forma católica).

Reafirma-se ainda com maior urgência a necessidade da opção pelos pobres. A forma neoliberal do capitalismo tornou-se mais injusta e excludente. Pobreza hoje significa proximidade da morte. Só uma mobilização gigantesca, mundial, em que as Igrejas cristãs são provocadas a reencontrar em Jesus a fonte da opção pelos pobres, consegue reverter o quadro de morte que se delineia. Impõe-se não um arredondamento de tal opção, mas sua radicalização, no sentido etimológico do termo. Ir-lhe à raiz significa estabelecer o primado absoluto da vida sobre todos os outros objetivos do neoliberalismo capitalista, num espírito de solidariedade mundial. Retoma-se aqui, em termos pastorais, o que o Fórum Social Mundial (FSM) de Porto Alegre pretende: “um outro mundo é possível”. Em termos de Igreja, “uma outra configuração de Igreja na América Latina é possível”.

 

3. Astenias

Os anos pós-Santo Domingo não só revelaram uma oscilação de opções, mas infelizmente também acentuaram algumas fraquezas de nossa Igreja que se vinham delineando nas décadas anteriores.

Já em Puebla, o problema da evangelização da cultura carregava certa ambiguidade, reforçada depois em Santo Domingo. Insinuava-se o deslocamento da problemática social, centrada na luta contra a injustiça em vista da transformação da sociedade, para uma preocupação com os efeitos secularizantes da modernidade avançada europeia. Temia-se que a religiosidade popular ficasse minada pela secularização.

A ironia ou a astúcia da história inverteu esses temores. Ameaça hoje a fé cristã mais a onda espiritualista, a inundação de formas religiosas, do que as vagas secularistas. O avançar da secularização tem produzido efeitos antitéticos, como a subjetivação e privatização da religião com a consequente multiplicação estonteante de suas formas.

A fé cristã aproxima-se, na sua raiz profunda, mais das formas seculares da libertação do que de muitas expressões religiosas de colorido neopagão, ainda que sustentadas por significantes católicos. Dito de maneira mais simples e direta: é mais evangélico, exprime melhor o seguimento de Jesus, dedicar-se ao empenho secular pela libertação dos pobres do que entregar-se a experiências religiosas consoladoras, individualistas e espiritualistas sem exigências éticas.

Na esteira da diminuição da preocupação social, está a ênfase dada a uma série de movimentos apostólicos de leigos de cunho internacional e nacional que atendem principalmente aos anseios pós-modernos de comunidades emocionais e a trabalhos assistencialistas. Alguns beiram o fanatismo religioso análogo ao integrismo. Outros se deixaram inculturar no mundo latino-americano, bebendo de sua fonte libertadora.

Tais movimentos estruturam a Igreja com base em consignas vindas dos centros para as periferias. Com isso se perde muito da autonomia e da criatividade que as Igrejas locais e as comunidades de base vinham tendo em nosso continente. Produziu-se maior alinhamento a tendências monoculturais, vindas do centro romano e europeu, em lugar da pluralidade das culturas latino-americanas.

Consequentemente, no que diz respeito a aspectos da vida interna da Igreja, preferiu-se insistir mais na conformidade que na diversidade, mais no poder central que nas instâncias locais, mais na obediência que na liberdade, mais na tradição que nas experiências novas e criativas, mais no comum que no original.

A memória recente nos fala do alinhamento das Igrejas locais à custa da criatividade. A própria eclesiologia da comunhão, que vem sendo apresentada, a partir do Sínodo de 1985, como chave interpretativa do Concílio Vaticano II, não tem favorecido uma comunhão de baixo para cima, mas uma comunhão subalterna às instâncias superiores. A originalidade e a criatividade são criticadas como ameaças a tal comunhão.

Num campo bem determinado como o da liturgia, o processo de inculturação no mundo afro e indígena, e mesmo na própria modernidade plural, vê-se inibido sob o pretexto de ser preciso definir melhor os contornos da vida litúrgica antes de impulsionar as novas formas. Pesam mais as prescrições romanas que o desejo de adaptar-se, inculturar-se, inserir-se em novas situações culturais.

 

4. Vigor

Nem tudo foi oscilação ou inibição nestas últimas décadas. Há novidades e riquezas que merecem ser guardadas e impulsionadas pela próxima Conferência Geral.

Se, de um lado, constatamos certa inibição no processo de inculturação, de outro persiste a busca de uma presença das culturas afro-ameríndias na vida da Igreja, em momentos litúrgicos importantes, sobretudo nas regiões de maior consciência negra e indígena. Vincula-se, em outros casos, a liturgia com o compromisso pela luta dos pobres. A religião do povo deixou de ser vista unicamente como “ignorância religiosa”. Isso significou uma revisão da concepção de “sincretismo”. A teologia latino-americana o vê antes como etapa importante no processo de inculturação da fé do que como desvio ou erro. Nesse sentido, houve avanços significativos na compreensão da inculturação por meio da reflexão de teólogos como M. de França Miranda[1] e Paulo Suess[2].

Bem relacionado com esse tema está o diálogo inter-religioso, que fez enormes progressos entre nós. Até então se tratava de uma problemática cultivada por teólogos europeus de experiência missionária em regiões não cristãs[3] e pelos asiáticos[4]. O programa de pós-graduação de Ciências da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora transformou-se em núcleo de referência, especialmente pelos inúmeros trabalhos de F. Teixeira[5].

Persiste na teologia da América Latina a atitude aberta e positiva de diálogo com a modernidade e com a pós-modernidade, em vez do tom polêmico tradicional. Reconhecem-se os valores que a modernidade trouxe para a cultura humana do Ocidente, sem desconhecer-lhe os avatares. O viés crítico à modernidade na perspectiva da América Latina não coincide com o tradicional. Não se teme a entrada da ciência, da história, da subjetividade, da práxis. Todos esses fatores foram incorporados pela teologia latino-americana. Critica-se a forma como a razão iluminista se comportou diante do mundo pobre. Pretende-se ir além e não ficar aquém da modernidade.

A teologia da libertação buscou luzes na Segunda Ilustração, que se arvorou em crítica da razão burguesa, da subjetividade individualista, do monopólio da história dos dominadores, da práxis econômica capitalista. Defende uma razão inclusiva e ampla que põe seu potencial crítico na linha da transformação da tecnociência e das estruturas sociais, a serviço dos pobres.

Apesar do alinhamento crescente com a matriz romana e europeia, prossegue o trabalho de uma cristologia sinótica que afirma a proximidade de Jesus com os pobres e marginalizados. Em termos de América Latina, a obra de Jon Sobrino reafirma essa relação entre a fé no Ressuscitado e as vítimas[6].

Há experiências eclesiais criativas, como a da Assembleia do Povo de Deus. Diferentemente do sínodo, bem regulado pelo Direito Canônico, ela permite maior espaço para a criatividade. A título de exemplo, a Arquidiocese de Belo Horizonte realizou duas dessas assembleias, compostas na sua grande maioria de leigos e leigas escolhidos pelas comunidades. As opções aí tomadas foram sancionadas e confirmadas pelo arcebispo. Dessa maneira, o conjunto da assembleia assumiu junto com o bispo a responsabilidade das linhas pastorais.

Aquilo que, em Santo Domingo, se expressou como “protagonismo do leigo” vem sendo concretizado por iniciativas locais. Firma-se cada vez mais a experiência dos ministérios leigos, bem diferenciados conforme as dioceses e as paróquias. Tende a crescer essa presença significativa do leigo(a) em nossas comunidades. Isso está a pedir mudanças importantes nas estruturas eclesiásticas. As Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) permanecem no horizonte de um novo jeito de ser Igreja. Sem o entusiasmo de outros tempos por parte da hierarquia, consolida-se essa forma de Igreja pela perseverança dos leigos. Em alguns casos, já se passou de uma Igreja com CEBs para uma Igreja de CEBs. No primeiro caso seria a simples presença de CEBs na Igreja local; no segundo, elas assumiriam um papel estruturante da própria Igreja[7].

 

5. A força decisiva das iniciativas romanas

Uma análise objetiva desse período depois de Santo Domingo descobre tendências aí presentes que ora oscilaram, ora significaram certo temor de avanço, ora anunciaram novidades — como apontamos acima. No entanto, o decisivo para a vida eclesial de nosso continente nas últimas décadas foram as iniciativas vindas de fora, especialmente de Roma.

A vigorosa personalidade e a criatividade de João Paulo II para lançar motes bíblicos, programas de evangelização, exemplos de ações, condicionaram fortemente as Igrejas locais. Na década de 60, num momento de otimismo e esperança, P. Vaz dizia que a Igreja da América Latina deixava de ser Igreja-reflexo para ser Igreja-fonte. Nas últimas décadas houve certa inversão. Deixou de ser Igreja-fonte para tornar-se Igreja-reflexo dos programas romanos e de movimentos de espiritualidade e apostolado comandados da Europa.

Desde o início de seu pontificado, João Paulo II olhava para a virada do milênio. Esse evento, que prometia muito na sua força mítica, acabou sendo engolido por outros marcos seculares. Não foram as celebrações eclesiais que decidiram o significado simbólico da passagem de milênio. Dois fatos ficarão como pedras miliares: um de claridade esperançosa, outro de escuridão tenebrosa. I. Ramonet ousou dizer que o milênio se iniciou no FSM de Porto Alegre. Marco de esperança. Meses mais tarde, outro fato se tornou referência do lado macabro da história atual: a derrubada das Torres Gêmeas nos EUA com tudo o que se lhe seguiu de guerras, vinganças e policiamentos.

No entanto, alguns gestos da Igreja católica nas últimas décadas ficaram como referencial de esperança. Em Assis, João Paulo II reuniu-se — mais de uma vez — em oração pela paz com líderes religiosos do mundo inteiro, que aceitaram o seu convite. O grito de paz da Igreja católica contra todo belicismo — não aceitando como justa nenhuma guerra, nem mesmo a defensiva, sem cogitar da preventiva e da ofensiva — constituiu ponto irrenunciável para toda pastoral. É uma herança imperdível. Esse grito se deu num movimento inter-religioso. Como já indicamos acima, o diálogo entre as religiões faz parte necessária do novo momento eclesial. Em termos de América Latina, significa nova maneira de nos aproximarmos da cultura negra e indígena — sem falar da presença das outras religiões: judaica, muçulmana, budista etc.

A purificação da memória histórica da Igreja se transformou num dos gestos mais proféticos do pontificado de João Paulo II, cuja repercussão em nossas plagas se encontra longe de estar à altura de sua relevância. Sobressaiu o ato litúrgico da Quaresma do ano 2000, em que vários cardeais e arcebispos, representando os dicastérios romanos, pediram, em nome da Igreja, perdão pelos erros e pecados de seus filhos no passado — no que se refere aos métodos de evangelização.

Mais que tratar-se de simples ato, significou a confissão da permanente falibilidade da Igreja. Se errou ontem, pode errar hoje. E isso nos obriga a atenta e humilde atitude de acolher críticas, rever posições, corrigir equívocos, em vez de fincar pé caturramente em posições questionáveis. J. I. González Faus mostrou como, nos últimos tempos, a Igreja — usando expressões solenes e pesadas — errou mais vezes e em questões graves[8]. Já faz parte de nossa memória recente essa atitude básica de “exame de consciência” permanente, seguida de confissão, arrependimento e propósito de não repetir o mesmo pecado, como ensina a longa prática confessional da Igreja.

K. Rahner escreveu, não sem ironia, que, se se anunciasse ao povo fiel ter o Concílio Vaticano II abolido o dogma da Santíssima Trindade, não se notaria muita diferença na vida dos fiéis. Isso seria triste sinal da irrelevância existencial dessa verdade central da fé cristã. Na preparação do milênio, o Papa propôs às Igrejas do mundo um estudo, meditação e aprofundamento diferenciado das três pessoas trinitárias e uma conclusão desse ciclo com a visão da Trindade como um todo divino.

A Igreja no Brasil assumiu tal projeto[9]. Lançando rápido olhar sobre as inúmeras publicações da CNBB no período posterior a Santo Domingo, conseguimos captar as preocupações principais dos bispos e assim colher a herança desses anos.

O pluralismo religioso ocupa as preocupações na Igreja do Brasil. É dado absolutamente incontornável e irreversível. A sonhada unidade da neocristandade, que reaparece em certos movimentos de Igreja, revela-se cada vez mais importante. A única possibilidade de uma imposição cultural unitária passa pelo engodo do marketing, que consegue dizer ao destinatário que é do interesse deste aquilo que a agência produtora pretende vender. A globalização é um novo tipo de imposição dos poderes dominantes sobre as massas. Já não pela via da autoridade ou da dogmática doutrinal, mas pela conquista do freguês que se sente atendido em suas reivindicações. O freguês aparece como centro da informação. Há um jogo sutil de poder entre o emissor da mensagem e o receptor. Dominar esse jogo significa, no interior do pluralismo cultural das ofertas, levar milhões de pessoas a tomar um e mesmo refrigerante. Cada um que o pede sente-se livre e respondido no seu desejo, enquanto por trás existe monstruosa máquina de sugestão direta e subliminar.

Ora, esse caminho não condiz com a transmissão da fé. Por isso ela tem de trilhar a via difícil do pluralismo, apelando unicamente para a liberdade, para a consciência e para a convicção das pessoas. Na modernidade e, mais ainda, na pós-modernidade, os indivíduos rejeitam injunções no campo das decisões de fé.

A questão do uso dos meios de comunicação social se torna cada vez mais relevante. É fácil perceber as tentações desse campo, vindas dos extremos falsos. Embarcar na propaganda religiosa e no emprego abusivo da mídia significa capitular sem mais ao império do marketing. Como vimos, não condiz com a opção cristã, especialmente quando se expõe o mistério eucarístico à vulgaridade televisiva. Por outro lado, renunciar a qualquer recurso midiático seria desconhecer o mandato do Senhor de anunciar o evangelho de cima dos telhados (Mt 10,27). A própria palavra “mídia” significa meios, e eles podem e devem ser usados na sua condição de recursos humanos à disposição do Reino. Há muito campo para discernir nesse setor da pastoral da comunicação. Mas é, sem dúvida, ponto vital para a pastoral do futuro.

A CNBB manteve viva a tradição social. Produziu documentos sobre as eleições, sobre as exigências evangélicas da superação da miséria e da fome e sobre outras questões sociais. Além disso, lançou iniciativas importantes, como o Grito dos Excluídos, no dia 7 de setembro, plebiscitos, Campanha pela Ética na Política etc. E prossegue, desde 1964, com as Campanhas da Fraternidade, cuja temática é quase sempre de cunho social.

O olhar dos bispos para o âmbito interno da Igreja tem-se preocupado com a liturgia, com a catequese de crianças e adultos, com a pastoral da juventude, com a formação dos seminaristas, com a missão e os ministérios dos leigos, com a identidade da Igreja, com a unidade na multiplicidade das experiências. As quatro exigências da ação evangelizadora — serviço, diálogo, anúncio e testemunho — indicam o espírito da sua presença pastoral. Cada ponto desses mereceria uma atenção especial para recolhermos o que se consolidou de novo e de promissor para o futuro. O limite de um artigo não o permite.

 

Conclusão

Numa perspectiva bem restrita de leitura, a saber, de um teólogo envolvido em determinada pastoral paroquial e diocesana com incursões esporádicas pelo país, que pontos conclusivos salientaria acerca da herança das últimas décadas de vida da Igreja e da expectativa para as próximas?

Olhando para um âmbito mais circunscrito, cabe trabalhar resolutamente na criação de um espírito comunitário que anime as liturgias, as pastorais, a vida da Igreja. E isso se fará por uma nova maneira de exercício do ministério ordenado, deixando de ser o centro para ser o animador e o beneficiador da comunidade. Animador, no sentido de estar disponível, no que diz respeito a tempo e formação, para promover esse espírito. Beneficiador, enquanto ele mesmo necessita da ajuda da comunidade para exercer digna e afetivamente o ministério. Sem a ajuda madura de leigos e leigas, tornar-se-á cada vez mais difícil a vivência do ministério celibatário numa sociedade sem limites e sem defesas contra a invasão provocativa dos apelos sexuais. A vida comunitária, que os(as) religiosos(as) mais facilmente podem ter, torna-se exigência crescente para o sacerdote diocesano. Dificilmente conseguirá — por razão de ocupação, número, distância etc. — fazê-la com outros irmãos no sacerdócio, mas poderá ter uma vida comunitária mais próxima com os fiéis. Isso implica novo tipo de relacionamento, que o faz descer do pódio do poder para viver na simplicidade de irmão.

Se se considera uma realidade mais ampla, a Igreja pode espelhar-se no FSM como estrutura nova e desafiante[10]. O FSM tem sido espaço de encontro de organizações, movimentos e experiências em espírito de liberdade e de acolhida, sem nenhum direcionamento de cima, sem que alguma entidade se imponha. A única condição para participar do FSM é abraçar a causa de “um outro mundo possível” de paz e solidariedade. Portanto, não se trata de defender uma praça pública anárquica para qualquer experiência, mas as propostas obedecem a uma orientação geral comum — em que há livre espaço de expressão e mútuo respeito. Imaginemos a Igreja no Brasil, na sua sede em Brasília, tornando-se um espaço de confluência de todas as correntes que queiram construir um Brasil sem corrupção, sem violência, com distribuição de renda… Podia-se estabelecer um mínimo ético e, em sintonia com ele, a Igreja se apresentaria como o lugar de encontro, o fórum de discussão e de propostas, sem dirigismo, sem que nenhuma posição seja assumida oficialmente por alguém (em particular). A CNBB não seria porta-voz de nada e de ninguém, mas unicamente o lugar acolhedor dos encontros. Pense-se num contínuo, começando pelas Igrejas cristãs, depois passando pelas diversas religiões e, por fim, por todas as entidades seculares que comungassem nesse mínimo ético humano.

Além de um espaço real de encontros humanos, é pensável abrir espaço semelhante, só que virtual. A Igreja no Brasil criaria um site de confluência livre de debates, propostas e opiniões — também de acordo com um mínimo ético humano. O primeiro passo seria, portanto, elaborar de modo colegiado, com ampla consulta em diversos níveis, esse mínimo ético humano. E a partir daí lançar-se na criação do espaço real e virtual. “Sonhar é preciso, viver não é preciso”, parafraseando o dito luso reproduzido por Fernando Pessoa. Aí vão os sonhos!

 



[1] M. de França Miranda, Inculturação da fé: uma abordagem teológica, São Paulo, Loyola, 2001.

[2] P. Suess, “Culturas indígenas e evangelização”, in REB 41 (1981), nº 162, pp. 211-249 e muitos outros trabalhos.

[3] J. Dupuis, Rumo a uma teologia cristã do pluralismo religioso, São Paulo, Paulinas, 1999.

[4] M. Amaladoss, Pela estrada da vida: prática do diálogo inter-religioso, São Paulo, Paulinas, 1996.

[5] F. Teixeira (org.), Diálogo de pássaros: nos caminhos do diálogo inter-religioso, São Paulo, Paulinas, 1993; F. Teixeira, Teologia das religiões: uma visão panorâmica, São Paulo, Paulinas, 1995.

[6] J. Sobrino, A fé em Jesus Cristo: ensaio a partir das vítimas, Petrópolis: Vozes, 2000.

[7] P. A. Ribeiro de Oliveira, “CEB: unidade estruturante de Igreja”, in Cl. Boff et al., As comunidades de base em questão, São Paulo, Paulinas, 1997, pp. 121-175.

[8] J. I. González Faus, A autoridade da verdade: momentos obscuros do magistério eclesiástico, São Paulo, Loyola, 1998.

[9] Documentos da CNBB, Rumo ao Novo Milênio, nº 56, São Paulo, Paulinas, 1996.

[10] Ver o excelente número da revista espanhola Éxodo: “Porto Alegre 2005 — La liberación es posible”, 78/79, março/junho, 2005.

Pe. J. B. Libanio