Publicado em número 170 - (pp. 25-28)
Perspectivas para o Ecumenismo: De Medellín a Santo Domingo
Por Pe. José Oscar Beozzo
A dimensão ecumênica em Medellín, após a abertura propiciada pelo Concílio Vaticano II, foi vivida, com emoção, quase como festa de reencontro, após séculos de separação. Ela culminou com uma eucaristia final partilhada por todos: católicos, evangélicos e ortodoxos.
Em Santo Domingo, não se repetiu nem o clima festivo, nem muito menos a concelebração com intercomunhão. Nem por isso o ecumenismo deixou de ser um tema crucial para a IV Conferência do Episcopado Latino-Americano.
1. A composição da delegação ecumênica
Nesta assembleia, com o dobro de participantes com direito a voto, em relação a Medellín, o número de observadores não católicos foi reduzido de onze para apenas cinco: Emílio Castro, secretário do Conselho Mundial de Igrejas (CMI), pastor da Igreja Metodista do Uruguai, que, porém, não compareceu, ao ser convidado a título pessoal e não institucional; Júlio César Holguin, bispo anglicano da República Dominicana, Ricardo Pietrantonio, da Igreja Evangélica Luterana Unida da Argentina; Edgar Moros Ruano, reitor do Seminário Teológico Presbiteriano e Reformado da Grande Colômbia e Maximos Aghiorgousis, bispo ortodoxo da Diocese de Pittsburgh nos Estados Unidos.
O número não foi diferente do de Puebla, quando o ecumenismo no âmbito do CELAM já entrava numa estratégia de baixo perfil. É diferente, porém a composição da delegação:
Em Puebla os cinco procediam da América Latina, dos quais três eram evangélicos, um ortodoxo, o exarca para a América Central e um judeu, o secretário do Congresso Judaico Latino-Americano. Em Santo Domingo, com a ausência de Emílio Castro, a delegação dos observadores ficou reduzida a quatro pessoas, uma das quais, o observador ortodoxo, procedia dos Estados Unidos. Deixou de ser convidado o representante judaico e acrescentou-se outro evangélico, de uma das Igrejas ausentes de Puebla, a Presbiteriana.
O convite ao secretário geral do CMI podia significar a escolha do interlocutor romano no diálogo ecumênico, confirmando uma das tendências desta assembleia: o peso preponderante de Roma na sua preparação e realização. Trocava-se assim o interlocutor normal, em âmbito latino-americano que seria o Conselho Latino-Americano de Igrejas, o CLAI, pelo CMI. Ou teria sido esta a forma elegante de se excluir uma representação do CLAI, com quem o CELAM tivera um atrito a propósito das comemorações dos 500 anos? Foi uma perda, porém, que uma pessoa de tão longa experiência ecumênica e da estatura espiritual e moral de Federico Pagura, presidente do CLAI, não fosse convidada para Santo Domingo. Outra alternativa seria convidar pessoas envolvidas nos dois conselhos ecumênicos do continente, onde está presente a Igreja Católica, como um dos membros: o CCC (Caribbean Council of Churches) para o Caribe ou o CONIC (Conselho Nacional de Igrejas Cristãs) para o Brasil.
2. Ecumenismo na preparação e abertura da assembleia
Entre os indícios de uma política oficial de perfil mais baixo para o ecumenismo, estão os documentos preparatórios e o discurso inaugural do papa.
Dentre os três documentos oficiais prévios à assembleia, o “Elementos de reflexão” (ER — 1990), o de “Consulta” (DC — 1991) e o de “Trabalho” (DT — 1992), o melhor foi inegavelmente o último, e, mesmo este, permanece não apenas insuficiente, mas inaceitável na sua escassa abordagem sobre o tema ecumênico, reduzido a dois parágrafos (298-299). O primeiro registra a existência de um diálogo que se desenvolve com grupos “não católicos” de diversas índoles e o segundo assinala as dificuldades e ambiguidades do diálogo. Citamos textualmente: “O diálogo ecumênico na América Latina, afora alguns casos excepcionais, está condicionado às circunstâncias que o tornam particularmente difícil e ambíguo, devido à intenção, métodos e atitudes negativas de certos grupos para com a Igreja Católica” (DT 299).
Nos últimos números sobre a Bíblia (195-196), não é lembrada a fecunda colaboração ecumênica, em traduções, comentários, como o “Comentário Bíblico” editado conjuntamente por duas editoras evangélicas, a Sinodal da IECLB e a Imprensa Metodista e uma católica, a Vozes; em centros de formação como o CEBI (Centro Ecumênico Bíblico), o DEI (Departamento Ecumênico de Investigação) da Costa Rica ou o CESEP (Centro Ecumênico de Serviços à Evangelização e Educação Popular).
No discurso inaugural (DI) do papa, na abertura da IV Conferência (12/10/92), não há sequer uma saudação ou alusão à presença dos observadores das outras Igrejas Cristãs, ali presentes como convidados. No discurso inaugural de Puebla estava ausente também a saudação, mas a presença e o papel dos observadores foram assinalados ao final do discurso.
Nenhuma vez, no discurso de Santo Domingo, é invocada a dimensão ecumênica como parte integrante da “nova evangelização”, como reafirmara recentemente o próprio papa, em discurso ao Sínodo de Roma, numa calorosa saudação à delegação ortodoxa ali presente: “[…] demo-nos conta de quanto a nova evangelização é tarefa de todos os cristãos e de quanto depende disto a credibilidade das Igrejas na nova Europa”. Agregava ainda o papa que o convite para estarem ali presentes exprimia “a solicitude do Sínodo pela busca da plena unidade entre os cristãos, a qual é uma prioridade na pastoral da Igreja do nosso tempo e, em particular, na do bispo de Roma”. Acrescentava ainda que “o intento ecumênico não provém de uma iniciativa pastoral contingente, mas da vontade mesma de Cristo” (Discurso de João Paulo II aos participantes do Sínodo Romano, 27/6/92, in L’Osservatore Romano, nº 27, 5/7/92, p. 4).
A ausência de acolhida e de reafirmação da vontade ecumênica da Igreja Católica, no campo da evangelização, foi inversamente agravada por um longo parágrafo dedicado aos “lobos vorazes” que assediam o rebanho na figura das “seitas” e dos “movimentos ‘pseudo-espirituais’ cuja expansão e agressividade urge enfrentar” (DI 12).
Esses fatos — aliados à recente carta da Congregação para a Doutrina, da Fé sobre alguns aspectos da Igreja entendida como comunhão (1992), em que o ecumenismo perde muito do frescor e clã do Concílio Vaticano II —, prognosticavam um difícil caminho para as questões ecumênicas durante a IV Conferência.
3. O ecumenismo nos trabalhos da assembleia
Os acontecimentos, durante a assembleia, seguiram dois cursos distintos: um derivado desse clima praticamente antiecumênico que se instalou em diversos setores da Igreja Católica, a pretexto do proselitismo e agressividade das “seitas”, e outro, proveniente dos que estavam sinceramente empenhados em construir a unidade e alargar o campo do ecumenismo para novos horizontes, em que pesem inegáveis dificuldades e obstáculos.
O clima adverso acabou espelhando-se no sentimento de alguns dos observadores que, em determinado momento, pensaram em abandonar a Conferência, onde sua presença parecia mais bem tolerada do que bem-vinda. Espelhou-se no conflito surgido na comissão 8 que devia, paradoxalmente, ocupar-se de “Ecumenismo, diálogo inter-religioso, seitas e novos movimentos religiosos”. Na impossibilidade de entender-se, dividiram-se os integrantes em duas comissões: uma dedicada ao ecumenismo e ao diálogo, e outra às seitas e novos movimentos religiosos. Espelhou-se ainda na surda oposição de um grupo, pequeno, mas influente, a qualquer proposta de colaboração ecumênica, notadamente à da comissão 22 de ecologia de que a Conferência “assumisse ecumenicamente as linhas do programa ‘Justiça, paz e integridade da criação’ do CMI”.
Um segundo curso, derivado da positiva experiência ecumênica em diversos países e setores das Igrejas, nestes últimos trinta anos, desembocou numa consciência mais viva dos novos desafios ao compromisso ecumênico na América Latina e no Caribe que pediam uma reformulação dos conceitos e das práticas vigentes.
Este novo curso afirmou-se em várias das trinta comissões temáticas, em que os participantes estiveram divididos. Em que pese a atribulada trajetória dos textos aí produzidos, os referentes ao ecumenismo lograram ampla aprovação no documento final da Conferência.
As propostas relativas ao ecumenismo podem ser encontradas em três diferentes blocos de textos e alinhadas em três diferentes perspectivas:
1. As que se encontram nas nove comissões que integram o bloco da “Promoção humana” (157-209).
2. As presentes nos resultados da comissão 8 de ecumenismo (132-138).
3. As que emergem da comissão 26: “Unidade e pluralidade das culturas: culturas indígenas, culturas afro-americanas, culturas mestiças” (243-251).
3.1. O ecumenismo nas comissões de promoção humana
A perspectiva das comissões de promoção humana (157-209) é a de uma Igreja centrada no serviço a todos os seres humanos e, por isso mesmo, ecumenicamente situada, na luta pela vida e dignidade das pessoas, a partir dos mais pobres e das grandes maiorias excluídas. Igreja aberta à cooperação com outras Igrejas, instituições, movimentos sociais e todos os homens e mulheres de boa-vontade, empenhada, a partir da sociedade civil, na consecução de uma democracia pluralista, justa e participativa.
Isso coloca o ecumenismo no horizonte mais amplo possível, no empenho pela VIDA em todas as suas dimensões, vida tão diminuída e ameaçada, sem colocar nem barreiras nem fronteiras para a cooperação nos esforços humanos pela justiça, pela paz, pela preservação da criação.
3.2. O ecumenismo na comissão 8: “Ecumenismo, diálogo inter-religioso, seitas e novos movimentos religiosos”
A Comissão de Ecumenismo viveu um processo conflitivo que levou à constituição de duas comissões separadas (conforme dissemos acima). A de ecumenismo situou-se numa visão mais clássica em sua primeira parte. Em tempos de hesitações e recuos na caminhada ecumênica não deixam, porém, de ser importantes suas propostas de:
— reafirmar o ecumenismo como “prioridade pastoral da Igreja de nosso tempo”;
— consolidar o espírito e o trabalho ecumênicos;
— aprofundar as relações de convergência e diálogo com as Igrejas que rezam conosco o Credo Niceno-Constantinopolitano;
— intensificar o diálogo teológico-ecumênico;
— incentivar a oração em comum pela unidade dos cristãos;
— promover a formação ecumênica nos cursos de formação dos agentes de pastoral, principalmente nos seminários;
— incentivar o estudo da Bíblia entre os teólogos;
— manter e reforçar programas e iniciativas de cooperação conjunta no campo social e na promoção de valores comuns (135).
Numa segunda parte, apontou-se desafios de se “iniciar um diálogo religioso com as religiões não cristãs presentes em nosso continente, particularmente as indígenas e afro-americanas, durante muito tempo ignoradas e marginalizadas” apresentando “a existência de preconceitos e incompreensões como obstáculo para o diálogo” (137).
Entre as propostas para intensificar o diálogo são elencadas:
— levar a cabo uma mudança de atitude de nossa parte, deixando para trás preconceitos históricos para criar um clima de confiança e aproximação;
— promover o diálogo com judeus e muçulmanos;
— aprofundar entre os agentes de pastoral o conhecimento do judaísmo e do islamismo;
— animar entre os agentes de pastoral o conhecimento das outras religiões e formas religiosas presentes no continente;
— promover ações em favor da paz e da promoção e defesa da dignidade humana, assim como a cooperação na defesa da criação e do equilíbrio ecológico, como uma forma de encontro com outras religiões;
— buscar ocasiões de diálogo com as religiões afro-americanas e com os povos indígenas, atentos para nelas descobrir as “sementes do Verbo”… (138).
As propostas aí contidas refletem a situação de áreas predominantemente indígenas ou afro-americanas ou ainda de ilhas do Caribe, com populações vindas da índia (Trinidad e Tobago) ou Indonésia (Suriname) e majoritariamente muçulmanas. Reflete também a realidade de um ecumenismo que começa a ganhar um rosto latino-americano e caribenho, tateante em passos e formulações por vezes hesitantes ou restritivas, como na conclusão do parágrafo 138, em que a proposta de diálogo e convite para descobrir as sementes do Verbo nestas religiões, conclui: “… evitando qualquer forma de sincretismo religioso” (138). Sem sincretismo dificilmente haverá inculturação real e profunda. Havia, pois, que retomar o sentido primeiro da palavra, livrando-a da carga negativa que a ela foi acrescentada.
3.3. O ecumenismo frente à diversidade étnica, cultural e religiosa do continente
As propostas mais abrangentes que implicam numa reformulação da concepção do próprio ecumenismo, emergiram da comissão 26, encarregada do tema: “Unidade e pluralidade das culturas indígenas, afro-americanas e mestiças” (243-251).
A comissão, contrastando com a insistência de Puebla no “radical substrato católico da América Latina”, parte do reconhecimento da realidade multiétnica e pluricultural do continente: “Nele convivem povos aborígenes, afro-americanos, mestiços e descendentes de europeus e asiáticos, cada qual com sua própria cultura que os situa em sua respectiva identidade social, de acordo com a cosmovisão de cada povo…” (244).
Reconhece a alta significação dos valores humanos cultivados pelos povos indígenas e a trajetória conflitiva das relações culturais no continente (245). Assinala a particular resistência dos afro-americanos aqui trazidos como escravos e os valores humanos de suas culturas que “expressam a presença de Deus criador” (246).
Introduz a necessária constatação do pecado na expansão colonial do Ocidente e da parte dos cristãos e da Igreja nestes atropelos: “É certo que, durante quatro séculos, vários milhões de africanos negros foram transportados como escravos, arrancados violentamente de suas terras, separados de suas famílias e vendidos como mercadorias. A escravidão dos negros e as matanças de indígenas foram o maior pecado da expansão colonial do Ocidente. Infelizmente, no que se refere à escravidão, ao racismo e à discriminação, houve batizados que não se mantiveram alheios a essa situação” (246).
Apresenta a religiosidade popular como “forma inculturada do catolicismo” (247).
Afirma a ação de Deus através do seu Espírito no interior de todas as culturas (243) e a analogia entre a encarnação e a presença cristã no contexto sociocultural e histórico dos povos que conduz à afirmação teológica da inculturação.
Como linha pastoral, “depois de pedir perdão com o papa a nossos irmãos indígenas e afro-americanos”, propõe-se em relação aos nossos irmãos indígenas:
— oferecer o evangelho de Jesus, como testemunho de uma atitude humilde, compreensiva e profética, valorizando sua palavra através de um diálogo respeitoso, franco e fraterno, esforçando-nos por conhecer suas línguas;
— crescer no conhecimento crítico de suas culturas para apreciá-las à luz do evangelho;
— promover a inculturação da liturgia, acolhendo com apreço seus símbolos, ritos e expressões religiosas…;
— acompanhar sua reflexão teológica, respeitando suas formulações culturais que os ajudem a dar razão de sua fé e esperança;
— crescer no conhecimento de sua cosmovisão que faz da globalidade — Deus, homem, mundo —, uma unidade que impregna todas as relações humanas, espirituais e transcendentes;
— promover nos povos indígenas seus valores culturais autóctones, através de uma inculturação da Igreja, para alcançar uma maior realização do Reino (248).
Em relação aos afro-americanos, afirma o documento que a Igreja, na sua missão evangelizadora “consciente do problema da marginalização e do racismo que pesa sobre a população negra, quer participar dos seus sofrimentos e acompanhá-los em suas legítimas aspirações em busca de uma vida mais justa e digna para todos” (249).
Seguem-se as propostas:
— “Por isso mesmo, a Igreja na América Latina e no Caribe quer apoiar os povos afro-americanos na defesa de sua identidade e do reconhecimento de seus próprios valores; como também ajudá-los a manter vivos seus usos e costumes compatíveis com a doutrina cristã” (Discurso do papa João Paulo II aos afro-americanos em Santo Domingo);
— do mesmo modo nos comprometemos a dedicar especial atenção à causa das comunidades afro-americanas, no campo pastoral, favorecendo as manifestações religiosas próprias de suas culturas;
— desenvolver a consciência da mestiçagem, não só racial, mas cultural, que caracteriza as grandes maiorias em muitos de nossos povos, pois está vinculada com a inculturação do evangelho (249).
Em termos de promoção humana das etnias, os bispos propõem:
— “Para uma autêntica promoção humana, a Igreja quer apoiar os esforços que estes povos fazem para ser reconhecidos como tais, pelas leis nacionais e internacionais, com pleno direito à terra, às suas próprias organizações e vivências culturais, a fim de garantir o direito que têm de viver segundo sua identidade, sua própria língua e seus costumes ancestrais, e de se relacionar em plena igualdade com todos os povos da terra” (251).
Conclusão
Este descentramento do ecumenismo dos quadros estreitos das relações institucionais entre Igrejas cristãs, para resituá-lo no eixo das preocupações com a vida concreta dos empobrecidos, nas suas demandas por pão, terra, trabalho, dignidade, cidadania e ainda no horizonte das culturas concretas do continente, abre perspectivas novas e promissoras. Ficam aqui e ali percalços e incoerências, frutos de posições conflitantes, mas que não comprometem as aberturas e avanços propostos para a caminhada ecumênica.
Nesse sentido, Santo Domingo deixa um saldo positivo nas orientações para um ecumenismo que ultrapasse as relações entre as Igrejas cristãs, tornando-se cultural, social e religiosamente situado frente aos desafios dos povos todos da América Latina e do Caribe, com suas culturas, religiões e luta cotidiana por identidade e dignidade, por vida e justiça.
Pe. José Oscar Beozzo