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Publicado em número 228 - (pp. 3-8)

A vocação batismal: fonte da comum dignidade e da legítima diversidade

Por Pe. José Lisboa Moreira de Oliveira, sdv

Herdamos da cristandade o costume de batizar crianças. Não faltaram, no passado, motivações teológicas para justificar tal prática[1]. Hoje, porém, numa visão mais crítica, começa-se a perceber que, por essa e por outras razões, o batismo tornou-se o sacramento do esquecimento, do descompromisso. “O mal — diziam há muitos anos os bispos do Brasil — não é haver muita gente batizada. Isso seria um bem. O mal é que muitos são batizados sem a consciência, própria ou por parte dos pais, da tríplice dimensão do batismo”[2].

Se, na Igreja primitiva, se batizavam pessoas convertidas, na atual situação, somos obrigados a converter pessoas batizadas. Esse fato, hoje tão comum nos países ocidentais, também aqui no Brasil, demonstra claramente que o batismo, mais do que o sacramento da iniciação cristã, se tornou apenas um fato social, uma tradição, sem nenhuma incidência e sem consequências para quem o recebe.

Nesse sentido, falar de vocação batismal, do batismo como vocação primeira dos cristãos e cristãs, é, para muitas pessoas, verdadeira novidade. Por isso mesmo, alguns chegam a estranhar tal afirmação, julgando-a inoportuna e até mesmo descabida. Isso foi agravado por outra deformação da cristandade, a qual, não vendo significado nenhum para a vocação batismal, concentrou toda a missão e todos os ministérios na pessoa do ministro ordenado, particularmente no bispo e no presbítero. Nessa ótica, ser batizado não significava absolutamente nada. Contava ser padre ou bispo. Por esse motivo, a questão vocacional ficou limitada à pessoa do presbítero e a animação vocacional entendida única e exclusivamente como “Obra das Vocações Sacerdotais” (OVS), destinada a rezar pelas vocações sacerdotais e obter recursos para a manutenção dos seminários diocesanos[3].

O Concílio Vaticano II, voltando às fontes bíblicas, resgatou o significado do batismo, levando-nos de novo à convicção de que todos somos chamados à santidade. O batismo incorpora a pessoa na comunidade cristã, tornando-a participante da vida divina e impulsionando-a para a vivência da vocação cristã, do chamado universal à santidade (cf. LG 9.39-42; GS 32).

Precisamos, pois, redescobrir o batismo como “sacramento primordial”[4] que abre os horizontes da consagração, fundamenta a comum dignidade e legitima a diversidade. Mais do que uma “nova consagração”, as vocações específicas e os ministérios confiados aos batizados são “desdobramentos” da única vocação recebida no batismo. Somente isso poderá levar o cristão ou a cristã a ser uma pessoa autêntica, isto é, alguém que participe ativa e regularmente de uma comunidade eclesial concreta, na qual subsiste e opera a Igreja de Cristo[5]. Sem essa redescoberta, continuaremos a nos lamentar da escassa presença e da superficialidade dos que aparecem em nossas comunidades.

 

1. A vocação batismal

Considerando a situação descrita anteriormente, convém agora, antes de tudo, entender o significado da vocação batismal. Ela pode ser descrita como o chamado que cada pessoa humana recebe para realizar-se plenamente em Cristo[6].

Sabemos que todo ser humano é vocacionado, em primeiro lugar, para aquela vocação natural: o chamado à existência. Mas esta vocação só se realiza plenamente quando o homem e a mulher, criados à imagem e semelhança de Deus, entram em comunhão com a Trindade. O convite a participar da plenitude da vida divina não anula a primeira dimensão da vocação, aquela antropológica. Pelo contrário, ele reforça e ressalta a dignidade da natureza humana, uma vez que a comunhão com a Trindade é a fonte integradora e dinamizadora da vida de cada homem ou mulher[7].

O acesso ao Criador se dá pela ação mediadora de Cristo. Por isso, a vocação cristã é chamado a seguir Jesus, aquele que é, para nós, “o Caminho, a Verdade e a Vida” (Jo 14,6). Ora, essa vocação cristã comum “é ratificada e fortificada pelos sacramentos da iniciação cristã”[8], dos quais o batismo é a porta de entrada. É por meio dele que o ser humano faz a sua opção fundamental como cristão e compromete-se com a sua comunidade[9].

Em outras palavras: é no momento do batismo, ou, se quisermos, a partir dele, que a pessoa assume a sua verdadeira identidade de cristã, tornando-se servidora do Reino. Contudo, para que essa dimensão vocacional aflore plenamente no momento do batismo, ou a partir dele, é indispensável rever nossa prática batismal. O ideal seria voltar ao ardor da Igreja primitiva, a qual batizava somente pessoas adultas realmente convertidas. No entanto, se insistimos em manter o costume de batizar crianças, devemos nos convencer de que o batismo, mesmo nesse caso, não pode, de forma alguma, ser “desvinculado do processo de iniciação à vida cristã”[10]. É preciso ter a coragem de batizar somente os filhos dos batizados que são evangelizados ou que, livremente, aceitaram ser reevangelizados ou recristianizados; daqueles batizados que “nasceram do alto” (Jo 3,3), ou seja, que vivem verdadeiro processo de conversão. Coisa nem sempre fácil para quem ainda conserva a mentalidade de cristandade, achando que as crianças devem ser batizadas de qualquer jeito.

A verdadeira vocação humana e cristã é a de ser Povo, vivendo na comunhão e na participação. Todavia, a incorporação no Povo de Deus se dá “mediante o batismo” (Puebla 852). Assim sendo, a vocação primeira de toda pessoa é a vocação batismal. “O cristão, pelo batismo, é vocacionado, chamado pelo Pai a ser ouvinte da Palavra. Adotado como filho bem-amado e justificado dos seus pecados, é incorporado a Jesus Cristo. Ungido pelo Espírito para a missão, é inserido na Igreja”[11].

Pode-se, então, concluir que a vocação batismal, comum a todos os fiéis, é a convocação divina para sermos filhos e filhas no Filho (cf. Ef 1,5)[12]. Enquanto filhos e filhas de Deus, somos chamados a formar a Igreja, comunidade dos discípulos e discípulas de Jesus. É o chamamento a ser Povo de Deus, com uma missão bastante significativa: servir à humanidade (cf. Puebla 852). Essa condição primeira deve perpassar a vida de todo cristão e cristã. Sem esse lastro comum, sem essa consciência, seremos uma multidão de “turistas”, de “carreiristas” e de gente que não sabe o que quer nem o que fazer. Gente que não desenvolveu “a vida do batismo” (Puebla 295). Coisa ainda muito comum na Igreja dos nossos tempos.

 

2. A vocação batismal, fundamento da comum dignidade

A consciência e a vivência da vocação batismal têm desdobramentos bastante significativos. O primeiro deles é, certamente, a existência de uma Igreja sem superiores e inferiores, sem capacitados e sem incapacitados. Teremos uma Igreja de comunhão e de participação, e não uma Igreja piramidal.

O Concílio Vaticano II foi bem claro ao afirmar a comum dignidade dos membros do Povo eleito de Deus. Essa igual dignidade nasce da comum vocação à perfeição. A partir dela, conclui o Concílio, “nenhuma desigualdade existe em Cristo e na Igreja, por motivo de raça ou de nação, de condição social ou de sexo” (LG 32). Para justificar tal afirmação, o Vaticano II apela para o ensinamento do Novo Testamento, segundo o qual aqueles que foram batizados e revestidos de Cristo não podem ser tratados como seres desiguais: “Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher; pois todos vós sois um só em Cristo Jesus” (Gl 3,28).

Embora o Concílio Vaticano II tenha sido muito claro, a nossa prática pastoral ainda é muito discriminatória. Basta pensar, evitando mais delongas, o modo como são tratadas as mulheres em nossas Igrejas — pelo simples fato de serem mulheres[13]. Tendo em vista essa realidade ainda bastante antievangélica, convém, corajosamente, retomar o significado da nossa vocação batismal.

“Todos os vocacionados e vocacionadas, ao serem batizados, recebem o mesmo Espírito que animou a vida de Jesus”[14]. Não há, pois, razão que justifique determinadas atitudes excludentes no interior de nossas comunidades eclesiais. Deve-se, portanto, com muita determinação, denunciar tal prática abusiva, que se distancia da experiência neotestamentária.

Essa insistência não é sem sentido, uma vez que, na atual situação de neoconservadorismo em que se encontra a Igreja, tornam-se muito comuns atitudes discriminatórias e autoritárias. Com cada vez mais frequência ouve-se falar de padres, na maioria jovens, que, ao chegar às comunidades, acabam com os conselhos paroquiais, pondo-se diante do povo como única liderança possível. Muitos são os presbíteros, não raro fragilizados afetivamente e teologicamente debilitados, que pensam ser os únicos que sabem das coisas. Por isso, tiram a palavra e o direito de participação aos leigos, obrigando-os a comportar-se como simples “cordeirinhos”, que tudo devem aceitar daqueles que se colocam na comunidade como únicos detentores da palavra. Não faltam casos de bispos que, jogando o sacramento do batismo na lixeira, julgando as demais pessoas batizadas como “idiotas”, se consideram os únicos capazes de tomar “as decisões que julgam mais acertadas”[15].

Falta a essas lideranças eclesiásticas a consciência de que o sacramento do batismo habilita as pessoas e lhes confere poder de decisão e de participação. Um cristão batizado, enquanto tal, tem o direito de participar. Mesmo que seja um analfabeto, ele não é um idiota, alguém que não sabe, mas é um “concidadão dos santos, membro da família de Deus” (cf. Ef 2,19), participante da “natureza divina” (2Pd 1,4).

Na família de Deus, não conta ser isto ou aquilo. Conta a condição de membro efetivo, não importando o grau ou o estado de vida. Todos, “sem exceção, somos vocacionados a ser santos no amor” (Ef 1,4)[16]. Essa é a coisa mais importante, mais significativa. “O que importa, em primeiro lugar, não é ser bispo, padre, freira, diácono, leigo, leiga, mas discípulo, discípula de Jesus. A vocação é, antes de tudo, chamado para o seguimento de Cristo”[17].

 

3. A vocação batismal como legitimação da diversidade

A consideração sobre o batismo como fundamento da vocação comum não nos deve fazer esquecer outro elemento de seus desdobramentos. Mesmo não sendo uma experiência intimista, devocional, puramente afetiva, um sentimento que fecha a pessoa em si mesma[18], o batismo rompe com as fronteiras do puramente coletivo, dando espaço para a legítima diversidade, para as diferenças.

Na Igreja não tem faltado, ao lado da tentação de vê-la como “sociedade de pessoas não iguais”, aquela da uniformidade, ou seja, a pretensão de impedir que os fiéis vivam a mesma fé de maneira diferente, de acordo com os carismas que o Espírito vai suscitando. Parece um paradoxo, uma contradição! No entanto, quanto mais forte a perspectiva da desigualdade, da negação da comum dignidade, mais se reforça a tentação da uniformização, impedindo as pessoas de ser diferentes.

Diante desse perigo, é indispensável ressaltar que o batismo é a fonte não apenas da comum dignidade, mas também “da legitimidade da diversidade das vocações e dos ministérios”[19]. Na dinâmica da teologia paulina dos carismas, a existência de “um só batismo” (Ef 4,5) concede o direito à diversidade (Ef 4,11). Aliás, conclui Paulo, a presença das diferenças vocacionais é fundamental para uma autêntica experiência de comunidade, para que a Igreja, de fato, aconteça (Ef 4,12-13). Uma Igreja uniforme, sem a presença da diversidade de vocações e de carismas, é uma Igreja infantil, e não uma Igreja de adultos (cf. Ef 4,14-16).

Essas considerações nos obrigam a questionar duas situações muito comuns em nossa Igreja: a insistência na vocação presbiteral e a pouca relevância que tem o processo de inculturação. Questionamos, antes de tudo, a praxe de certas Igrejas locais de voltar toda a atenção apenas para a vocação presbiteral diocesana. Sabemos, é claro, que isso tem muito que ver com a escassa existência de padres nos presbitérios diocesanos. Isso, porém, não justifica tal prática, uma vez que ela denota enorme empobrecimento da perspectiva vocacional da Igreja local. Além do mais, a pura e simples insistência na vocação do padre termina prejudicando o próprio surgimento das vocações presbiterais. De fato, sendo a Igreja uma espécie de “ecossistema vocacional” bem definido e consistente, a promoção de determinada vocação passa a ser prejudicada e afetada quando não se tem a preocupação de cuidar das demais.

A vocação batismal questiona também toda tentação de centralismo, de “romanização” e de resistência a uma autêntica inculturação. Somos do parecer que a Igreja deva buscar e promover a unidade, mas enquanto convergência para o bem comum (1Cor 12,7) da diversidade de dons, carismas e ministérios (1Cor 12,4-11). Toda tentativa de podar a legítima diversidade é atentado contra a liberdade do Espírito do Senhor, que “tudo realiza, distribuindo a cada um os seus dons, conforme lhe apraz” (1Cor 12,11). Nesse sentido, precisamos ainda fazer um esforço enorme para “promover uma animação vocacional verdadeiramente inculturada”, ou seja, capaz de “tornar inteligível a mensagem evangélica para as pessoas do nosso tempo”[20].

 

4. Vocações específicas: desdobramentos do batismo

A redescoberta da vocação batismal, conforme a perspectiva apresentada até agora, permite-nos perceber que as vocações específicas (dos cristãos leigos e leigas, da vida consagrada e do ministério ordenado) são apenas desdobramentos do batismo, e não “novas” vocações. O esquecimento da vocação batismal levou-nos a pensar em “consagrações”, cada vez que se falava de uma vocação específica, especialmente quando nos referíamos à vocação do padre e da vida consagrada.

Todavia, ao retornarmos ao batismo, ao reencontrarmos o valor e o significado da teologia do batismo, tudo isso vai desaparecendo. Aos poucos, vai ficando bem mais claro que a única e verdadeira consagração é aquela que acontece no batismo. O que vem depois é apenas desdobramento, concretização, explicitação da vocação batismal. Alguns autores chamam isso de “expressão mais plena da consagração do batismo”[21].

Essa visão coincide plenamente com a perspectiva do Vaticano II, que fala da única vocação à santidade, vivida na diversidade das vocações específicas. O concílio esclarece que, “no batismo da fé”, os seguidores de Cristo, chamados por Deus e justificados em Cristo, “foram feitos verdadeiros filhos de Deus e participantes da natureza divina” (LG 40). Essa é a única e verdadeira consagração! Contudo esclarece também que o exercício dessa única consagração, do chamado à santidade, se dá de maneira multiforme, de acordo com os gêneros de vida e os carismas que foram confiados a cada um dos fiéis (LG 41). “Assim todos os fiéis são convidados e obrigados a tender para a santidade e perfeição do estado próprio” (LG 42).

Pode-se e deve-se, então, dizer que não existem novas consagrações, mas apenas o exercício concreto da vocação batismal, de acordo com os carismas suscitados pelo Espírito do Senhor. Certamente, essa nova visão das coisas torna-se difícil, com a praxe de batizar crianças. Fica quase impossível recuperar, ou melhor, “desdobrar” um sacramento recebido sem o pleno assentimento da própria pessoa — mesmo que o batismo seja acompanhado por pessoas adultas, neste caso, os pais e os padrinhos.

Essa nova perspectiva deixa bem claro que não existe distinção entre os cristãos (At 10,34). Nenhum batizado é essencialmente distinto dos demais. Todos, pelo batismo, são chamados a viver a perfeição, o amor, sem nenhum tipo de limites. O que temos, desde os tempos do Novo Testamento, são formas diferenciadas de viver o seguimento de Cristo. Assim sendo, cada vocação específica (dos cristãos leigos e leigas, da vida consagrada, dos ministérios ordenados) vai buscar assumir e exprimir em plenitude, de acordo com os dons recebidos no próprio batismo, a única e verdadeira consagração.

Tudo isso mostra que as vocações específicas não são consagrações ou novas consagrações, mas apenas a realização do batismo mediante uma resposta pessoal. Na dinâmica do Novo Testamento, em que só se batizam adultos, essa realização ou resposta já se dá com o próprio batismo. No nosso caso, porque somos batizados ainda crianças, o ato de assumir um compromisso público (crisma, matrimônio, profissão religiosa, ordenação) significa o desdobramento daquela vocação batismal recebida na infância. Vista dentro dessa ótica, a vocação batismal acaba, de uma vez por todas, com qualquer tentativa de superioridade de alguém e de eliminação das diferenças. O batismo gera a unidade da dignidade e fomenta as legítimas diversidades.

 

5. Todos batizados, vocacionados e enviados

A vocação batismal ajuda-nos também a entender melhor a íntima relação existente entre consagração e missão. Nós, com muita frequência, fazemos uma separação entre consagração e missão[22]. É comum ouvirmos falar de vocação sem a necessária interação com a missão. Ora, a redescoberta da vocação batismal ajuda-nos a perceber que todas as pessoas batizadas são chamadas por Deus e enviadas em missão.

Nós precisamos não somente superar a tentação de achar que vocação diz respeito exclusivamente a padres e freiras. Precisamos ir mais além, entendendo que toda vocação é sempre para a missão[23]. Torna-se indispensável redescobrir a missionariedade da Igreja e a consciência missionária. Não basta perguntar-se o que é preciso fazer. É mais urgente a pergunta sobre quem vai fazer. Tanto na animação vocacional como nos diversos espaços de formação, é indispensável criar a consciência missionária. Nesse trabalho de conscientização, devem-se abrir os horizontes dos âmbitos da missão, sem esquecer a missão universal “ad gentes”, além das fronteiras da Igreja local, diocesana, ou dos “muros” do próprio instituto ou instituição.

Esse estilo de conscientização supõe espiritualidade, capacidade de deixar-se inquietar pelos apelos divinos que chegam até nós por intermédio dos que estão mais distantes, excluídos, abandonados. Supõe uma Igreja que não fique apenas preocupada com seus problemas internos, mas também seja sensível aos dramas dos que vivem “lá fora”. Uma Igreja corajosa, inserida, capaz de se compadecer da miséria e dos sofrimentos do povo.

A vocação batismal é missionária: “Desejaria que todos e cada um de nós pudéssemos visitar, pelo menos em espírito, a própria pia batismal, mergulhar nela a nossa cabeça e redescobrir a missionariedade do próprio batismo. Eu sou batizado? Então, devo ser missionário. Se eu não sou missionário, então não sou cristão” (Dom Pedro Casaldáliga).

Além da espiritualidade da encarnação, da kénosis, é indispensável, para termos uma Igreja com ardor missionário, evitar o fenômeno do desclassamento e do aburguesamento daqueles e daquelas que, por vocação e missão, são chamados a sair para ir ao encontro dos outros. Na Igreja católica é muito comum que pessoas, ao entrarem na vida religiosa e nos seminários, passem a levar uma vida bastante cômoda, não tendo as preocupações que afligem o “comum dos mortais”, especialmente no que diz respeito ao campo econômico. Isso favorece o distanciamento da realidade e a perda do espírito missionário. Normalmente, quem veio do mundo dos pobres, ao tornar-se rico, não deseja voltar para o meio dos excluídos[24].

Esse fenômeno, expressão de uma Igreja pouco missionária, tem a sua raiz na perda da identidade cristã recebida no batismo. De fato, este sacramento, vivido na perspectiva do horizonte do batismo de Jesus, leva à desinstalação e à audácia. Para Jesus, o seu batismo foi uma manifestação de coragem e a expressão de deslocamento na direção dos mais pobres e dos mais excluídos. Ele quis ser o “filho de Adão” (Lc 3,38) que, após o seu batismo, volta para o local “onde fora criado” (Lc 4,16) e aí proclama solenemente que recebera a unção do Espírito para anunciar a boa notícia aos pobres (Lc 4,18-19), chegando a provocar confusão e sofrendo ameaça de morte. Assim sendo, “os cristãos, vivendo segundo o Espírito, assumem, como Jesus, o Verbo que se fez carne, os desafios da humanidade. O centro da vida de todos os batizados é a pessoa de Jesus e sua proposta transformadora de amor e de justiça”[25].

 

6. Conclusão: Assumir uma postura corajosa

Como cristãos e cristãs, precisamos assumir uma postura corajosa: redescobrir o lugar e o significado da vocação batismal. Para que isso aconteça, é necessário rever e até abolir a praxe herdada da cristandade, que terminou transformando o batismo em mero costume, em simples e pura tradição, num ato social e banal, sem consequências maiores. Nessa revisão, não se deve excluir a possibilidade de batizar somente adultos, desde que o batismo de crianças não seja mais a expressão de uma adesão firme ao discipulado, ao seguimento de Jesus Cristo.

Pelo batismo, o cristão ou cristã “é vocacionado, chamado pelo Pai a ser ouvinte da Palavra”[26]. Por essa razão, não é possível continuar com “tradições” que terminam por negar a essência do cristianismo e por afastar as pessoas da verdadeira perspectiva do evangelho. É chegada a hora de uma autêntica ruptura, permitindo que a experiência do batismo seja, de fato, expressão da santidade do Povo de Deus (cf. Puebla 252).

Com coragem, é preciso não adiar mais a mudança. Precisamos passar para uma nova prática batismal. É verdade que o batismo “de per si é só o início e o exórdio” (UR 22) da vida cristã. No entanto, é também verdade que ele “tende inteiramente à consecução da plenitude de vida em Cristo” e “ordena-se à íntegra profissão de fé” (UR 22). Por esse motivo, não é possível nem admissível continuar com uma praxe que, concretamente, não possibilita a incorporação integral no projeto salvífico de Cristo nem a total inserção na comunhão eucarística, isto é, na plena participação na vida eclesial.

Os benefícios do batismo precisam ser vistos nessa ótica, e não somente numa pura e simples visão purificadora do pecado original. Coisa essa, aliás, ultrapassada e arcaica. Temos, portanto, a obrigação de pensar numa celebração batismal e numa práxis dela decorrente que “redundem em bem dos cristãos no tempo presente, consolidem e recriem a Igreja mediante a graça divina e estimulem a passagem dessa graça à ação moral na sociedade”[27].



[1] Cf. GRASSO, D., Ainda devemos batizar as crianças?, São Paulo, Paulinas, 1979.

[2] CNBB, Pastoral dos sacramentos da iniciação cristã, São Paulo, Paulus, 1980, p. 10.

[3] Cf. Guia pedagógico de pastoral vocacional, São Paulo, Paulus, 1983, pp. 8-9.

[4] Ibid., Pastoral dos sacramentos da iniciação cristã, p. 9.

[5] CNBB, Batismo de crianças, São Paulo, Paulinas, 1980, nº 28.

[6] Ibid., Guia pedagógico de pastoral vocacional, pp. 29-30.

[7] Cf. ibid., pp. 26-29.

[8] Ibid., p. 31.

[9] Ibid., Pastoral dos sacramentos da iniciação cristã, p. 9.

[10] Ibid., p. 11.

[11] CNBB, “Batismo: fonte de todas as vocações”, in Texto-Base do Ano Vocacional 2003, Brasília, 2002, nº 86.

[12] FORTE, B., Introdução aos sacramentos, São Paulo, Paulus, 1996, pp. 41-47.

[13] Cf. DE JESUS, A. M. G., “As discípulas nos Atos dos Apóstolos”, in Espírito 85 (junho de 2001), pp. 10-18.

[14] Ibid., Batismo: fonte de todas as vocações, nº 90.

[15] CNBB, Regimento da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), São Paulo, Paulinas, 2002, nº 258.

[16] Ibid., Batismo: fonte de todas as vocações, nº 5.

[17] Ibid., nº 10.

[18] Cf. CASTILLO, J. M., Símbolos de libertad. Teología de los sacramentos, Salamanca, Sígueme, 1981, pp. 189-192.

[19] Ibid., Batismo: fonte de todas as vocações, nº 84.

[20] Ibid., nº 138.

[21] DE GENOVER, C. P., Teologia do batismo e vida religiosa renovada, São Paulo, Loyola, 1985, pp. 19-40.

[22] Ibid., pp. 35-40.

[23] Ibid., Batismo: fonte de todas as vocações, nn. 156-157.

[24] Ibid., nº 158.

[25] Ibid., nº 90.

[26] Ibid., nº 86.

[27] ROSATO, P. L, Introdução à teologia dos sacramentos, São Paulo, Loyola, 1999, p. 53.

Pe. José Lisboa Moreira de Oliveira, sdv