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Publicado em número 131 - (pp. 21-25)

“CEBs, povo de Deus em busca da Terra prometida”

De 22 a 24 de julho de 1986, os participantes do 6º Encontro Intereclesial das CEBs debateram seus problemas. O Documento Final reassume os principais anseios apresentados.

 

Queridas Irmãs e Irmãos,

 

1. Nós, representantes das CEBs de todo o Brasil, reunidos em nome de Deus e das nossas comunidades, junto ao Santuário do Divino Pai Eterno em Trindade, Goiás, de 22 a 24 de julho de 1986, com muita alegria nos dirigimos a vocês para destacar alguns pontos fundamentais do que aconteceu nesta semana tão importante para toda a Igreja.

2. Somos 1.627 pessoas, sendo 742 representantes da base, 203 agentes de pastoral, 56 observadores latino-americanos, 17 observadores de outros países, 30 assessores, 10 representantes dos povos indígenas, 16 representantes de igrejas evangélicas, 51 bispos, 35 observadores nacionais, 86 pessoas da imprensa e documentação, 381 pessoas, homens e mulheres, das equipes de serviço.

3. Sentimos particular satisfação com a presença dos nossos queridos irmãos evangélicos, com a presença dos sofridos irmãos de outros países da América Latina, do Caribe e da África, e os irmãos do Canadá e da Europa; com a presença do Secretário da CNBB, D. Luciano Mendes de Almeida, do responsável nacional pelas CEBs, D. Celso Queiroz, do Cardeal Primaz da Holanda, D. Adriano Simonis e de grande número de nossos bispos. Sentimo-nos profundamente comovidos com a presença de Dona Olinda, mãe de padre Josimo, que nos trouxe à memória a figura corajosa da Mãe das Dores e de todas as mães de nosso povo de mártires. A palavra e a bênção que o Papa nos enviou nos confirmaram na caminhada e nos fizeram sentir em comunhão com toda a Igreja.

4. O encontro foi realmente um grande momento de partilha, reflexão e celebração: celebração de solidariedade, penitência, comunhão, ação de graças, esperança e compromisso e de modo impressionante e comovente a celebração dos nossos mártires. Nestes dias, procuramos ouvir o clamor do povo e descobrir o rumo do Espírito de Deus que sopra no mundo e na nossa história. À luz da Palavra de Deus, refletimos sobre a nossa responsabilidade como cristãos e sobre a missão das nossas comunidades na atual situação do Brasil, em busca de novas pistas de trabalho e luta.

 

PRIMEIRO DIA

“O jeito novo de toda a Igreja ser”

5. No primeiro dia, trocamos ideias sobre o novo jeito de ser Igreja. Vimos a força que nos vem da Palavra de Deus na nossa caminhada e na luta pela transformação da sociedade. A Palavra de Deus, lida a partir da realidade do povo e celebrada na comunidade, é alimento que nos sustenta para o serviço do amor e para o compromisso de fé com a caminhada do povo. A Bíblia é companheira e parceira de luta, sempre presente, como água do rio que carrega o barquinho das CEBs.

6. Na comunidade procuramos imitar Deus, cuja Trindade é a melhor comunidade: Pai, Filho e Espírito Santo. Três pessoas distintas, cada uma com o seu modo próprio de ser e, ao mesmo tempo, tão unidas que são um só Deus, que quer ver seu povo livre e feliz. Assim, na comunidade há variedade de serviços: leigos, padres e bispos, cada um com o seu modo próprio de ser, porém, todos unidos a favor da libertação do povo.

7. As CEBs têm a missão de ajudar cada pessoa a ser mais gente, assumindo cada vez mais a causa do oprimido e, com isto, ajudar todos a participar de forma consciente, como fermento de transformação. As CEBs são serviço que nos empurra na busca do Reino de paz, de justiça e de amor. Para que isto aconteça, são necessárias organização e participação na vida da Igreja e da sociedade. Este serviço ao povo é que converte o coração de todos: bispos, padres, pastores, religiosos(as) e leigos(as), e nos faz viver melhor o Evangelho.

 

SEGUNDO DIA

“A luta pela nova sociedade”

8. No segundo dia, refletimos sobre a luta que fazemos pela nova sociedade. Nesta reflexão apareceram alguns pontos muito importantes que merecem a atenção de todos:

a) Vimos a importância da ação política dos cristãos, pois vivendo em sociedade, sem a política somos uns desorientados e não chegamos a lugar nenhum.

b) As CEBs precisam chegar a uma definição mais clara na questão partidária: discutir juntos o programa dos partidos e o perfil dos candidatos, e verificar se eles têm compromisso real com a caminhada do povo.

c) As CEBs devem favorecer, apoiar e acompanhar estes militantes que estão à frente da luta e, se necessário, cobrar deles os compromissos assumidos.

d) Apoiamos a luta dos índios pela sua autodeterminação, pela urgente demarcação das suas terras e pela preservação da sua cultura.

e) Assumimos a luta dos negros pelos seus direitos e, com eles, lutamos contra qualquer forma de discriminação.

f) Destacamos a importância da participação cada vez maior das mulheres na luta pela nova sociedade e, mulheres e homens, queremos lutar contra toda forma de machismo como também contra a exploração da mulher, prostituição do menor e a marginalização da mãe solteira.

g) Denunciamos o trabalho escravo no campo e a exploração das lavadeiras, domésticas, operários, boias-frias, pescadores e trabalhadores em geral.

h) Enche-nos de esperança a presença e a participação das crianças e dos jovens que, animados por suas catequistas e coordenadores, entram cada vez mais na caminhada libertadora do povo em busca da Terra Prometida.

i) Repudiando a forma antipopular como foi encaminhada a questão da Constituinte, mesmo assim assumimos o compromisso de lutar para que da Constituinte possa sair uma Constituição que respeite os direitos dos povos.

9. As CEBs são um ensaio do Reino, o coração da nova sociedade, um pedacinho da Terra Prometida por Deus.

10. As lutas do povo são como as fontes de água que brotam do chão, viram o riachinho que desce o morro até se transformar em rio. E o rio, com a força de Deus e a união do povo, vai crescer até levar de roldão a velha sociedade construída em cima da exploração do povo.

11. O movimento popular tem muitos rios: o rio do sindicato, o rio do partido político, o rio das associações de moradores, o rio do movimento dos sem-terra, dos favelados, da mulher marginalizada, dos pescadores, dos hansenianos, dos deficientes físicos, das crianças, das mulheres, dos negros, das nações indígenas. Há rios que já são grandes, outros ainda pequenos. Mas as lutas narradas pelo povo mostram que elas estão crescendo em todo o Brasil, passando de lutas de resistência para lutas de conquista. É o projeto político do povo que vai canalizar as águas dos riachos para o grande rio que vai acabar com a sociedade de lucro e opressão e fundar a sociedade do jeito que Deus quer.

 

TERCEIRO DIA

“Terra de Deus, terra de irmãos”

12.  No terceiro dia, refletimos sobre a questão da terra na cidade e particularmente no campo. A luta pela terra não é só uma luta econômica. É uma luta pela dignidade das pessoas, que exigem serem reconhecidas como filhas e filhos de Deus. Por isso a terra é mais do que um pedaço de chão. Ela é dom de Deus, o lugar do trabalho e da vida.

13.  Por isso, a luta pela terra é, para o lavrador, a luta pela vida. Para o grande proprietário, a terra é como se fosse uma vaca: ele quer que ela dê o dinheiro que o enriquece; enquanto o lavrador quer que ela lhe dê o leite que o alimenta. O latifundiário não quer ceder, porque ele não se sente apenas dono da terra, mas também dono da vida das pessoas e dono do poder. Ele está matando. Os mártires estão aí, como prova. E até quando vai continuar matando? Basta de assassinos! Queremos nossos líderes vivos!

14.  Mas o povo não cede diante das mortes, não se amedronta. Ele está lutando em defesa da vida. E sua luta está minando o poder dos grandes. Eles têm que enganar o povo, para ver se conquistam a legitimidade. O governo assina um plano legal de reforma agrária, mas o que põe em prática é outra coisa: um plano elaborado por forças contrárias à participação e aos interesses do povoe feito no maior segredo.

15.  Os lavradores, sentindo-se parte do povo que é fonte do poder, já estão fazendo suas próprias leis, a que eles respeitam. Não precisam de polícia para guardar suas leis, porque são leis legítimas, que eles próprios seguem.

16.  Esclarecidos e animados por estas reflexões, convidamos vocês todos, irmãs e irmãos, para entrarem com toda a firmeza e fé nesta luta por uma reforma agrária do povo. Sabemos que Deus está conosco, ele que chama Abraão para ir em busca da terra. Chama Moisés para libertar o povo do Egito e conduzi-lo para a terra onde corre leite e mel. De Jesus temos a promessa: “Estarei com vocês até o fim dos tempos!” Ele disse: “Coragem! Eu venci o mundo!” Deixou conosco Maria, a Mãe dos caminhantes, que nos ensina a caminhar em busca da Terra Prometida!

17.  Queremos agora apresentar a vocês mais algumas propostas que surgiram durante este encontro.

 

O 6º Encontro Intereclesial apela:

1º) À CNBB, para que encaminhe um pedido ao Secretariado Geral do Sínodo em Roma para que as CEBs possam estar presentes através de alguns de seus animadores, quer na preparação do Sínodo sobre os Leigos, quer na sua realização em Roma.

2º) Às várias instâncias da Igreja, para que abram sem tardar o debate sobre a participação da mulher nos vários níveis de serviço, de ministério e de representação dentro da Igreja.

3º) Aos bispos e padres, religiosos e religiosas, teólogos e teólogas, para que assumam a caminhada do povo oprimido e favoreçam sem ambiguidades o novo modo de ser Igreja, segundo o modelo da Trindade que é a melhor comunidade.

4º) Às Comunidades Eclesiais de Base, para que deem sua contribuição concreta para a elaboração de uma Constituição que corresponda aos interesses populares, apoiando atividades, como:

• Romaria a Brasília durante a Assembleia Nacional Constituinte.

• Assembleia Constituinte simultânea de cunho popular.

• Organizar, em nível local, comitês populares e manter, em nível nacional, uma comissão permanente constituída de representantes do Congresso Nacional Constituinte, no sentido de garantir a expressão constitucional dos direitos do povo oprimido.

• Plebiscito nacional para a apreciação popular da nova Constituição.

• Versão popular da nova Constituição.

5º) Aos bispos e padres, para que deem um acompanhamento pastoral efetivo àqueles cristãos das bases que assumem a luta partidária, inclusive em cargos eletivos, a fim de que permaneçam ligados à comunidade eclesial, inclusive em suas funções, e ao mesmo tempo levem para dentro dos partidos o fermento libertador do Evangelho, respeitando sempre a posição suprapartidária da Igreja.

6º) Às CEBs, para que continuem com força cada vez maior na luta por um projeto de reforma agrária popular, participando firme e pacificamente em atividades, como:

• Resistência à expulsão da própria terra.

• Legítima ocupação de terras ociosas na cidade e no campo, procurando evitar a violência.

• Acampamentos diversos.

• Romarias da terra.

• Organização comunitária própria nas áreas ocupadas.

• Pressões sobre o INCRA e outros órgãos do governo.

• Acompanhamento pastoral dos sem-terra etc.

Que a Igreja dê o exemplo de uma reforma agrária popular em suas próprias terras, como já vem acontecendo em várias dioceses.

7º) Às CEBs, para que pressionem com todos os meios possíveis, sobretudo através da imprensa, as autoridades judiciais e policiais, a fim de que os autores, mandantes e mandados, de crimes particularmente cometidos contra gente do povo, sejam julgados e as sentenças devidamente cumpridas.

8º) Às igrejas locais, para que identifiquem com urgência os membros das CEBs comprometidos na luta do campo e que estão “marcados para morrer”, e lhes deem toda proteção possível, quer através de todos os recursos legais, quer por uma constante guarda até mesmo pessoal.

9º) A toda a Igreja, particularmente às CEBs, para que assumam um compromisso de solidariedade com todos os países irmãos da América Latina, de modo especial com os irmãos sofridos da América Central. Por ocasião da celebração dos 500 anos de Evangelização da América Latina, recuperem a memória histórica das vítimas da colonização, índios, negros e outros oprimidos, em função de uma nova e corajosa Evangelização libertadora no Continente.

 

Finalizando, queremos expressar o nosso mais vivo agradecimento à igreja local, que tão calorosamente nos acolheu, a seu pastor Dom Antônio Ribeiro de Oliveira que se mostrou verdadeiro servidor dos seus irmãos, e em particular às equipes de coordenação e de serviço, que trabalharam com tanta generosidade e eficácia, e a todo regional centro-oeste e extremo-oeste, pelo trabalho de preparação, iniciado pelo profético pastor Dom Fernando Gomes, e tão bem assumido pelo seu sucessor.

Irmãs e Irmãos, renovados na esperança e acompanhados por Maria, a Mãe de Jesus, e nossos mártires, prossigamos na caminhada com a bênção da melhor comunidade: Pai, Filho e Espírito Santo.