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Publicado em número 225 - (pp. 8-15)

Desafios da Igreja na cidade atual

Por Pe. José Comblin

A maioria dos problemas gerados pela cidade procedem mais da nova cultura ocidental do que da estrutura da cidade. As cidades variam muito na história, e os problemas das cidades atuais são, em primeiro lugar, os problemas nascidos da nova cultura. Essa cultura se identifica, de certo modo, com a vida urbana atual, sobretudo nas grandes cidades. Mais do que um problema de oposição campo-cidade, encontramos um problema de oposição cultura antiga-cultura atual.

Isso foi reconhecido pelos sociólogos há um século. No entanto, naquele tempo, os autores entendiam por nova cultura a cultura moderna. Hoje tal cultura foi suplantada pela cultura pós-moderna, quase inteiramente norte-americana. Os Estados Unidos são, na atualidade, quase a única fonte de cultura do mundo ocidental — novidade que se estabeleceu, sobretudo no decorrer dos últimos 30 anos, havendo grande difusão de iniciação popular dessa cultura sobretudo mediante a TV.

De modo geral, as reflexões pastorais pecam por excesso de idealismo — ou seja, de irrealismo. São reflexões feitas para um mundo ideal que não existe, falando de uma Igreja ideal que também não existe. A Igreja de que falam os documentos eclesiásticos é construção ideal, traduz a ideologia do clero, a doutrina que lhe permite valorizar-se e legitimar tudo o que está fazendo, com a ajuda de princípios espirituais. A Igreja que existe não combina com essa descrição.

Ao propor suas reflexões pastorais, o clero sente-se movido por motivações abstratas de grande beleza espiritual. Graças a essas reflexões, o clero pensa que está realmente trabalhando pelo Reino de Deus. A realidade, no entanto, não atende a tal propósito. Na hora do agir, os princípios pastorais definidos e renovados com convicção nas reuniões pastorais simplesmente desaparecem e outros princípios muito mais concretos, mas geralmente inconscientes, prevalecem.

Exemplifico isso com uma experiência pessoal. Trabalhei oito anos em uma paróquia com mais três sacerdotes. Havia, naturalmente, reuniões de planejamento e organização pastoral. Não tenho lembrança de que nessas reuniões o assunto principal tivesse sido a preocupação com o evangelho. Examinando o conjunto desses oito anos, para expressá-lo de modo sintético, todas as conversas se referiam ao poder da paróquia, do clero, daquilo que chamávamos de Igreja — poder por meio das escolas e demais instituições que era necessário fazer funcionar; poder pelo relacionamento com as autoridades públicas e com as pessoas ou famílias importantes na sociedade. Se alguém tivesse dito abertamente que a nossa preocupação chamada de pastoral era, na realidade, pura preocupação de poder, todos teríamos ficado escandalizados e teríamos protestado veementemente. No entanto, refletindo seriamente sobre isso após alguns anos, cheguei à conclusão de que essa era a realidade, muito mais trivial do que as belezas teológicas. Evidentemente a procura do poder era justificada para servir melhor e ajudar a melhorar a situação; sempre havia motivos sobrenaturais. Todos fazíamos exame de consciência, confessando-nos semanalmente, mas não descobrimos o óbvio: a preocupação pelo poder da Igreja.

Pode-se naturalmente ponderar que nem todas as paróquias são assim. Tenho a impressão de que reproduzíamos a média: não éramos animadores de uma paróquia ótima, mas também não éramos animadores de uma paróquia péssima. Por sinal, o arcebispado estava feliz porque era justamente isso que esperava — não havia a preocupação em saber se na paróquia se praticava o evangelho. Isso sé dava por descontado. O mais importante era saber que, graças à paróquia, o poder da Igreja aumentava.

Isso para assinalar que, quando falamos em Igreja, devemos sempre determinar se estamos falando da Igreja ideal, da teórica, da dos documentos eclesiásticos e da teologia ou da Igreja real.

 

 

1. Igreja da cristandade

Ao longo de 16 séculos de cristandade, o clero edificou uma Igreja cujas bases procederam de duas fontes. Por um lado, há o evangelho tal como foi transmitido pela tradição bíblica e por uma Tradição geralmente escondida de discípulos verdadeiros de Jesus. Por outro, há um sistema religioso cuja inspiração está no sentimento religioso espontâneo dos povos em que se difundiu o cristianismo: no Ocidente, essa mistura vem das antigas religiões do mundo mediterrâneo, acrescidas dos costumes e tradições do mundo céltico-irlandês e germânico, e, na América, das tradições indígenas ou africanas. De tudo isso se criou um sistema bastante homogêneo que foi, durante séculos, a base da unanimidade religiosa na cristandade.

Durante os séculos de cristandade, até o século XVIII na Europa e até o século XIX na América, houve homogeneidade religiosa: a quase unanimidade viveu e praticou o sistema religioso montado pelo clero. Esse sistema se apresentava como a religião fundada por Jesus Cristo, ainda que a maior parte dele não procedesse de Jesus Cristo, mas das religiões anteriores ao cristianismo (nem as revisões da Reforma mudaram notavelmente o sistema, apesar da negação radical das imagens e outras tradições).

É muito provável que, se a Igreja tivesse ensinado apenas o evangelho, teria permanecido como minoria marginalizada e muitas vezes perseguida — como foi nos primeiros 250 anos no império romano e durante muitos séculos em várias regiões da Ásia, como no Japão, por exemplo. Onde e quando não gozava da proteção militar e política das potências ocidentais dominantes, o cristianismo era minoria exposta à perseguição.

Houve 16 séculos de cristandade e somos seus herdeiros. Oxalá fôssemos todos herdeiros conscientes, mas a maioria permanece inconsciente e identifica simplesmente o cristianismo com aquilo que se apresenta com esse nome. Ora, no tempo do império romano e dos seus sucessores, o cristianismo foi vivido dentro de um sistema religioso que era herança dos povos anteriores a sua conversão.

Há um documento eloquente que manifesta a maneira como se fez a cristandade. Trata-se da famosa carta do Papa São Gregório aos monges que enviou à Inglaterra para evangelizar os povos daquela ilha. Nessa carta, o Papa recomenda que os monges se dirijam para os lugares de culto, os santuários onde os pagãos veneravam as suas divindades. Ali os monges deveriam retirar as imagens das divindades pagãs e pôr no seu lugar imagens dos santos católicos. Dessa maneira, os povos pagãos continuariam celebrando o mesmo culto, mas agora dirigido aos santos cristãos — ainda que não estivessem conscientes da mudança. Assim, os povos se converteriam. De fato, eles se converteram, mas vale perguntar: que, conversão era essa, em que não intervinha o evangelho de modo algum? Pode-se dizer que os povos da Inglaterra se converteram ao cristianismo ou que a Igreja se converteu à religião dos povos ingleses? Quem mudou mais? Não foram os monges cristãos? Em todo o caso, a conversão esteve baseada numa ambiguidade, e essa ambiguidade persevera até hoje nos restos de cristandade que ainda subsistem.

Não se trata de querer julgar o passado. O que deve preocupar-nos é isto: que esse sistema funcionou durante séculos, entrou em decadência há pelo menos dois ou três séculos e já está no final da sua curva descendente. Ainda há idosos que praticam a religião da cristandade, mas já não há jovens. Isso quer dizer que, no máximo, a antiga cristandade ainda pode sobreviver 50 anos em alguns conventículos integristas sectários (presentes na Igreja de hoje e que ameaçam assumir o controle, o que faria da Igreja uma seita isolada do mundo, ainda que com o projeto de dominá-lo). Em geral, o clero não quer aceitar essa realidade. Somente a aceitará quando a cristandade tiver desaparecido completamente. Jamais os responsáveis de uma instituição decadente são capazes de perceber a sua verdadeira situação. São como os doentes que até a morte negam a sua doença. Com isso conservam as suas razões de viver.

O que significa o fim da cristandade? Significa que se dissolve o sistema que, durante 16 séculos, misturou as religiões antigas, anteriores ao cristianismo, com o evangelho de Jesus Cristo. Uma vez que se dissolve a associação, reaparecem os dois elementos: por um lado, o evangelho e, por outro, as religiões dos povos atuais.

 

2. A Igreja na atualidade e seus desafios

Diante dessa situação, há duas maneiras de enxergar os desafios. Pode-se contemplar o desafio do evangelho, mediante o questionamento de como, onde, quando se pode anunciá-lo na nova situação cultural, numa sociedade conduzida por um novo sistema de valores que está substituindo a cristandade. Mas pode-se também partir de outro desafio: já que a Igreja perdeu espaço na nova cultura, como pode reconquistar esse espaço, recuperar o prestígio perdido e a audiência que teve durante tantos séculos? O que a Igreja fez durante séculos, integrando-se no sistema religioso dos povos, não poderia ser refeito dentro do novo sistema religioso e da cultura religiosa dos povos atuais? Tratar-se-ia de refazer uma nova cristandade com base nas religiões atuais. Vamos considerar primeiro esta última maneira de enxergar o desafio.

Os povos atuais não são povos sem religião. Nem o ateísmo é sinal de ausência de religião. O próprio ateísmo pode ser uma religião, porque coloca outro absoluto no lugar do absoluto da cristandade. Os ateus não querem dar-lhe o nome de Deus porque este nome foi confiscado pela cristandade. Mas podem dar-lhe outro nome. Claro que há, houve e haverá minorias de ateus, mas este é um fenômeno minoritário e marginal que requer um tratamento específico, não dizendo respeito ao grande desafio da sociedade. Assim como há pessoas sem sensibilidade musical, sem capacidade de comunicação ou de relacionamento social, há pessoas sem sentimento religioso. Mas isso é um defeito que atinge pequena minoria e não constitui problema nem desafio. O ateísmo nunca foi e nunca será um desafio. O desafio são as novas religiões contemporâneas.

O problema é identificar essa religião contemporânea que muitas vezes não usa a palavra religião, justamente porque esta palavra parece referir-se a fenômenos de outro nível cultural, e que os contemporâneos querem distanciar-se claramente das culturas tradicionais. Os contemporâneos cultivam uma religião à qual não dão o nome de religião. Além disso, parece haver também outras motivações na recusa do nome de religião.

Qual é o valor absoluto no mundo ocidental atual? Qual é o valor ao qual todos os outros valores se referem? Com certeza, trata-se do bem-estar. O absoluto é sentir-se bem, sentir-se em harmonia com o próprio corpo, com a mente, com os outros, com o mundo em geral. Ter o sentimento de participar emocionalmente da vida do universo, sentir-se à vontade, sentir-se feliz. Nesse sentido, a felicidade é o valor absoluto, uma felicidade profundamente corporal. O mais profundo da ruptura com a modernidade foi e ainda é a afirmação do corpo contra a mente, do reino do corpo contra o reino das ideias, das abstrações, das teorias. O deus contemporâneo é corporal. O novo deus é um deus que goza da sua corporeidade e serve como modelo para todos, porque todos aspiram integrar-se nele.

Essa felicidade corporal é um valor absoluto que se impõe a todos, fazendo parte do sistema que se transmite às novas gerações. Apresenta expressões mais sofisticadas ou explicitadas que são filosofias de tipo mais ou menos panteísta, em que o holismo é total e o todo é equivalente ao Todo. Até hoje não produziu expressões filosóficas marcantes, e possivelmente a rejeição do mundo das ideias seja um fator capaz de inibir qualquer sistema semelhante. Porém, há grande difusão de iniciação popular, abrangendo a quase totalidade da programação da TV, 90% das publicações populares, das canções e do cinema. Toda essa cultura é americana e difunde um ideal humano, uma referência absoluta. Na América, ela se mistura com elementos das religiões tradicionais. Na Europa, a separação é mais forte. Na América Latina, as religiões tradicionais adaptam-se a ela muito bem, de modo espontâneo e cada vez mais sistemático.

Esse mundo do bem-estar físico e mental é povoado de entes favoráveis, como anjos, espíritos e fadas. A magia ressuscita com mais força do que nunca. Ao lado das ciências, cujos ideais são herança da modernidade, o que predomina no mundo de hoje são as forças mágicas, os mistérios, os entes fabulosos, as novas mitologias, o sobrenatural e o religioso. Os contemporâneos usam a racionalidade da ciência, mas o seu coração não está na ciência, e sim na magia. Os homens do século XIX queriam ser adultos, racionais e aparecer como adultos. Os contemporâneos querem ser jovens que nunca chegam a ser adultos. Rejeitam a condição de adultos.

Na mente contemporânea, a mitologia tem muito mais força do que a ciência. Os mestres da nossa época são Paulo Coelho e Harry Potter. Tudo indica que, nos tempos vindouros, essas tendências serão cada vez mais acentuadas. O século XXI gosta de viver num mundo sobrenatural e procura fazer deste mundo uma cópia do sobrenatural, onde todos são felizes, tudo é fácil e abundante e o corpo humano é todo-poderoso porque é sempre assistido por forças sobrenaturais.

Antigamente o centro das religiões tradicionais era o culto: atos dirigidos para as divindades contempladas fora da pessoa humana. O que se pedia às divindades era a vida e as condições da vida: a chuva, a eliminação dos inimigos naturais, a preservação dos cataclismos naturais, a saúde sobretudo. Numa palavra, pediam-se milagres — e de fato a vida estava repleta de milagres, era vivida como vitória permanente sobre ameaças constantes graças à ajuda de forças sobrenaturais.

 

3. Práticas das religiões pós-modernas

Nas religiões pós-modernas, as atividades principais são atividades de iniciação por meio das quais o corpo atinge a sua maior perfeição: práticas de autoajuda, exercícios físicos ou mentais, recurso às receitas das antigas religiões orientais que são novas para o Ocidente. Os contemporâneos dedicam várias horas por semana a essas atividades, das quais recebem um sentimento de bem-estar, paz, tranquilidade. Trata-se de penetrar pouco a pouco no mundo da felicidade por meio de etapas sucessivas e perseverantes.

No passado, as pessoas praticavam exercícios físicos por motivos racionais: a ginástica era praticada por necessidade compreensível racionalmente. Hoje, não. Buscar a perfeição da vida corporal é entrar com fé e abandono num mundo de forças mágicas. É estar relacionado com as energias do universo e com a Totalidade. Esses exercícios tornaram-se religiosos.

Cada forma de iniciação tem os seus ministros, cujas receitas devem ser seguidas com religioso respeito e total submissão, como se fossem liturgias. Aliás, as novas liturgias usam imensa variedade de objetos: pedras, líquidos, bebidas, comidas, plantas, animais. Servem-se de gestos rituais, de lugares sagrados e de tempos sagrados. Tudo isso tem valor sagrado porque é o caminho para chegar à felicidade.

Essas práticas são individuais, mas vividas dentro de instituições em que as pessoas se encontram e se estimulam mutuamente. Formam comunidades de devotos, usando diferentes métodos de felicidade. Formam-se, dessa maneira, inúmeras comunidades de base.

Nessas comunidades se cultiva a devoção, o otimismo, o sentimento de bem-estar; todos os sentimentos negativos estão excluídos; todos têm a obrigação de estar felizes.

Existem inúmeras receitas para despertar o sentimento de felicidade. As mais vulgares são as drogas, que, infelizmente, ocupam espaço amplo no cultivo da felicidade. Claro que as drogas são um método radicalmente inferior, destrutivo da personalidade, refúgio das pessoas que não se dão ao esforço e ao trabalho de desenvolver métodos mais elevados de conquista da felicidade.

O evangelho acostumou-nos à ideia de que religião é compromisso. Mas isso somente na vida segundo o evangelho. Nas religiões tradicionais, o compromisso não é tão comum. Quem professa essas religiões busca nelas meios para alcançar mais vida, mais felicidade, pela participação em forças sobrenaturais. As novas religiões não são diferentes.

Entre os métodos coletivos para alcançar a felicidade está a música: as canções e os festivais de canções, que se realizam pelo menos aos sábados — e nas grandes cidades todas as noites em inúmeros lugares —, substituem os antigos atos de culto público. A música atual dos cancioneiros é o meio mais divulgado de criar felicidade. Os festivais da canção são verdadeiras liturgias para a juventude. Ali os jovens se encontram com eles mesmos, com os outros e com as energias do universo, sentindo as próprias pulsações da vida. Não é simplesmente uma diversão, mas uma participação na vida coletiva e nas energias do mundo. Ali é que se sente a vida.

Todas as religiões tradicionais celebravam as suas festas. As festas eram oportunidades para reunir a assembleia de todo o povo, marcando os tempos fortes da existência. Dividiam o tempo da existência humana e lhe davam sentido.

Hoje, as festas dividiram-se em duas categorias. Primeiro há as festas do indivíduo: aniversários, promoções, ritos de passagem. As festas renovam o sentimento de importância da pessoa, aumentam a, afirmação de si e, ao mesmo tempo, reforçam a autoafirmação de cada participante.

Ao lado disso, as festas coletivas foram substituídas pelas férias. Na civilização atual não há nada mais importante do que as férias. Elas são muito mais importantes do que o trabalho, que — exaltado na modernidade — perdeu todo o prestígio. Durante o ano, todas as pessoas estão preparando as férias. Projetam viagens, encontros, visitas. Nas férias, viaja-se. Não há “férias sérias” dentro de casa ou na própria cidade. Férias são sinônimo de deslocamento aos lugares turísticos, às montanhas, às regiões privilegiadas onde há sol e calor e, sobretudo, à praia — verdadeiro lugar sagrado dos indivíduos contemporâneos.

O indivíduo contemporâneo sente realmente que existe quando está de férias. Nas férias, vive-se! Não é sem razão que a principal indústria de hoje é o turismo, que tenderá a crescer até que todos possam realmente ter verdadeiras férias.

É verdade que algumas festas tradicionais se mantêm no calendário: Natal, Ano-Novo, Páscoa, festas juninas e outras menores. Mas, cada vez mais, essas festas são motivo para viagens. Celebrar o Natal quer dizer viajar. As pessoas se perguntam: onde é que vamos celebrar o Natal, ou o Ano-Novo, ou a Semana Santa, ou São João? Celebrar a Semana Santa quer dizer viajar. As agências de turismo oferecem pacotes para todos os gostos. Dessa maneira, as festas tradicionais são absorvidas pelas festas novas, que são as férias.

Também o domingo foi absorvido pelas férias. Costuma-se passá-lo na praia ou no campo. Dedica-se esse dia à nova religião.

Todos os exercícios dessa religião são materiais ou quase. Por conseguinte, precisam ser comprados. São caros — e cada vez mais caros, porque sempre mais desenvolvidos. Por isso, no centro dessa nova religião está o dinheiro. Nada se pode fazer sem dinheiro. A felicidade se conquista mediante o dinheiro. Daí a exaltação ao dinheiro, que pode trazer tantos bens. No entanto, o dinheiro não vale tanto em si quanto pelas satisfações que permite comprar. A propaganda mostra as maravilhas que os bilionários podem comprar — são os diferentes tipos de felicidade.

O dinheiro torna-se muito valorizado, mas está a serviço de um valor superior, que é a felicidade corporal.

Basta isso para situar o mundo da nova religião. Surge a questão: como seria possível refazer com essa religião o que os monges do tempo do Papa Gregório fizeram? Aparentemente eles não tiveram muita dificuldade: tiraram as imagens pagãs e puseram imagens cristãs, sem que ninguém viesse impedir ou protestar. Eles tinham um poder imenso que os agentes de pastoral não têm mais hoje. O mesmo método impositivo e autoritário seria impossível na atualidade.

A cristandade antiga realizou-se pela imposição. A sociedade antiga era autoritária e hierárquica. A religião não era objeto de opção pessoal, a não ser de modo muito limitado, como, por exemplo, no caso da escolha entre diversas irmandades. A religião era parte — e mais do que parte —, era o fundamento da sociedade e, por isso, tinha de ser homogênea. O papel do clero era exercer a hegemonia dentro da sociedade e manter rigorosamente a homogeneidade religiosa. Assim fizeram os vigários do interior durante 16 séculos.

Agora estamos numa sociedade de mercado. Não há nenhuma imposição oficial em matéria de religião, o que não significa que todas as religiões sejam aceitas. São aceitas aquelas que se integram dentro do sistema de mercado, ou seja, desistem do sistema autoritário e entram nas regras do mercado (daí as dificuldades de integração do islamismo, que não aceita o mercado).

A regra do mercado é a competição. Vence a religião ou o grupo religioso que é mais competitivo. Cada religião deve ganhar adeptos, se quer vencer. Não pode impor. Deve seduzir, convencer. A religião entra como mercadoria e deve seguir as normas do mercado.

Para as religiões tradicionais da época da cristandade, esse sistema representa total desequilíbrio. Os modos de agir da cristandade são justamente aqueles que suscitam mais rejeição — o que se nota, de modo particular, no caso do catolicismo.

A religião da cristandade invoca sempre a verdade como argumento definitivo. No sistema de mercado, a verdade não conta. O importante é a utilidade, a capacidade de gerar satisfação. Não se compra um objeto porque é verdadeiro, mas porque é útil, agradável e dá satisfação.

 

4. A religião e o marketing

Existe toda uma ciência que ajuda a vender. Trata-se da ciência mais importante de hoje: o marketing. Hoje, mais do que produzir — o que é bastante fácil —, o importante é vender. A arte de vender é a que conta, porque um objeto é tido como inútil, se não se consegue vendê-lo. Por isso, num regime de mercado, não adianta invocar a verdade, é preciso mostrar a utilidade, a satisfação. Não é preciso convencer, mas seduzir. É preciso oferecer algo que responda a um desejo e, eventualmente, despertar o desejo ao qual o objeto que se quer vender será fonte de satisfação.

Pode-se aplicar o marketing à religião? A experiência mostra que sim. Nos Estados Unidos, o marketing é aplicado com êxito há pelo menos três décadas pelas Igrejas da extrema-direita — as mais fundamentalistas. Há 25 anos, com a, Igreja Universal do Reino de Deus, começou no Brasil a época do neopentecostalismo — hoje em pleno desenvolvimento em todas as classes sociais. As chamadas Igrejas neopentecostais praticam, com a maior eficácia, o marketing religioso e, por isso mesmo, são olhadas com inveja pelas outras Igrejas — que começam a perceber a perda de terreno no mercado por não conhecerem nem aplicarem o marketing.

Essa situação gera uma tentação quase irresistível de aprender também a arte do marketing. Essa evolução é inevitável. A Igreja católica vai entrar cada vez mais na era do marketing. Por sinal, ela já entrou, e com muito entusiasmo.

Importa dar atenção a esse fenômeno, porque o pentecostalismo é o fenômeno religioso mais importante do mundo desde a Reforma protestante do século XVI. Veio para provocar um maremoto e abalar as Igrejas tradicionais com mais força do que Lutero ou Calvino no seu tempo, por ser muito mais radical.

Quando o fundador da Assembleia de Deus se separou da congregação a que pertencia e resolveu fundar a sua própria, não imaginava a imensa repercussão do seu gesto. Em cem anos o seu gesto provocou a migração de centenas de milhões de cristãos das mais diversas denominações para o movimento pentecostal que iniciou.

O seu gesto foi uma ruptura radical com a cristandade — com o sistema autoritário no cristianismo. Iniciou uma forma de cristianismo que atrai não pela imposição da verdade, mas pela experiência de vida que fornece. A presença imediata e sensível do Espírito mudava tudo. Doravante os cristãos passam a ter contato imediato com o Espírito e receber a vida dele. Em primeiro lugar vem a saúde — pois a cura foi determinante na sedução das multidões. Restituição da saúde, expulsão dos demônios, bênçãos de todo tipo, proteção nos perigos, prosperidade, paz, reconciliação, emprego, todos esses bens vitais são recuperados imediatamente graças à força divina diretamente presente. O pentecostalismo, sem ter de voltar às bases religiosas tradicionais, doravante sente-se livre dos laços autoritários, formalistas, hierarquizados da cristandade. Pentecostalismo significa o fim da cristandade.

No início e durante varias gerações, o pentecostalismo mostrou-se apegado a costumes e ritos antigos da cristandade: a Bíblia, a austeridade moral tradicional, o culto à família. No entanto, com o decorrer dos tempos e a penetração na nova cultura, o conteúdo mudou. O movimento não conseguiu defender-se da pressão do novo contexto religioso contemporâneo. Com o neopentecostalismo, o movimento abandonou os seus elementos cristãos e voltou a ser uma religião natural, entrou na corrente da religião neomoderna. No neopentecostalismo, o resto de conteúdo devido ao cristianismo desapareceu o que ficou foi o equivalente da antiga religião pré-cristã, a religião nova da pós-modernidade. O neopentecostalismo adotou o marketing religioso sem escrúpulos porque já tinha eliminado o conteúdo do evangelho. O seu Jesus é expressão da força viva benfazeja da pós-modernidade. Tem pouco em comum com o Jesus do evangelho. É uma reinterpretação à luz da pós-modernidade.

O neopentecostalismo, já sem ligação com as estruturas antigas da cristandade, aceita a separação da religião pós-moderna e do evangelho. Entra sem remorso na pura religião pós-moderna. Isso lhe permite dedicar-se sem inibição às regras do marketing, pois este convive muito bem com a religião pós-moderna.

Jesus torna-se naquele que oferece todos os bens desejados pela cultura pós-moderna: a saúde, o bem-estar corporal, a felicidade, a prosperidade, a riqueza, o êxito na vida. Tem um público ilimitado nas massas, entre todos aqueles que se sentem frustrados no mundo pós-moderno, porque não conseguem triunfar no mercado. A religião oferece métodos de recuperação para todos os frustrados no mercado pós-moderno.

O neopentecostalismo deve triunfar no mercado porque não exige compromisso, oferece satisfação imediata, promete tudo o que faz falta na vida da maioria. No momento do entusiasmo, as pessoas sabem que devem entregar o seu dinheiro. O dinheiro destina-se a trazer felicidade, e essa religião oferece a felicidade — requerendo, em contrapartida, dinheiro.

O neopentecostalismo é a melhor adaptação do cristianismo ao mundo religioso da atual civilização ocidental, atualmente dominante nas grandes cidades. A dificuldade está em saber se ainda é cristã. Faz sucesso, mas será o sucesso do cristianismo ou o de uma nova religião pós-moderna, superficialmente cristã, por manter alguns símbolos cristãos?

O projeto de formar nova síntese entre a religião da atualidade e o cristianismo parece ser impossível. O neopentecostalismo parece mostrar a impossibilidade do projeto. A atração pelo êxito é tal, que, para alcançar o sucesso, os líderes religiosos estão dispostos a sacrificar o conteúdo do evangelho — na teologia da prosperidade, por exemplo, que é a negação do evangelho. Em outras palavras, parece que uma nova cristandade é impossível na atual situação.

Essas considerações destinam-se àqueles que se sentem seduzidos pelo êxito do neopentecostalismo, bem como pelas outras formas de adaptação cristã das novas religiões. Não estarão finalmente destinadas a sacrificar o essencial do cristianismo? Não há como concluir com exatidão, pois estamos em pleno processo de desenvolvimento desse fenômeno.

 

5. Como viver o evangelho na cultura atual?

Passemos ao segundo elemento da antiga cristandade: o evangelho de Jesus Cristo. Como viver o evangelho na atual cultura pós-moderna que é a cultura urbana?

O desafio é: como viver o evangelho fora de um contexto de cristandade?

A primeira condição é ter consciência da distância que há entre o evangelho e a nova cultura. Quem está acostumado à cristandade não faz distinção entre ser cristão e ser da sua cultura. Agora, sim, a distinção há de ser bem consciente. Sem isso não é possível dar-se conta do que é o evangelho.

Em segundo lugar, é preciso fazer opção por uma vida alternativa, não integrada ao coração da cultura atual. Necessariamente o cristão precisa tomar parte nas atividades sociais, mas sem compromisso incondicional, pelo contrário, com o projeto de buscar uma sociedade alternativa.

Em terceiro lugar, pode-se dizer que é quase impossível viver de acordo com o evangelho sozinho. Antigamente o cristianismo era vivido na família, mas a família deixou de ser religiosamente homogênea, deixou de ser uma comunidade de fé. Frequentemente cada um tem a sua própria religião. Então cada cristão precisa de uma comunidade de fé para alimentar a sua adesão ao evangelho.

Em lugar da paróquia, o centro da vida cristã será a pequena comunidade: lugar da iniciação, da formação, dos sacramentos, da educação, do discernimento moral, da preparação para o agir dentro da sociedade. A paróquia sobreviverá até que desapareçam os últimos representantes da antiga cristandade. Se não houver pequenas comunidades cristãs, as novas gerações farão toda a sua adesão às novas religiões — também na forma de neopentecostalismos católicos.

Nasce o desafio de manter uma unidade e colaboração entre todas essas comunidades pequenas. Outrora o que estabelecia a unidade era o clero homogêneo, uniforme, e o direito canônico, que enunciava todos os poderes da hierarquia e do clero. A organização hierárquica fazia a unidade. Claro que, hoje, esse tipo autoritário de organização não consegue se impor — basta ver como milhões de católicos vêm se emancipando da organização autoritária do clero, buscando por si próprios a sua maneira de ser cristãos.

Não há necessidade de insistir que uma organização em forma de pequenas comunidades exige a formação de centenas de milhares de animadores ou agentes de pastoral. O que existe atualmente como preparação não consegue cobrir nem a milésima parte das necessidades. Prefere-se fechar os olhos, entregando a Deus a responsabilidade de dirigir a Igreja.

Não se trata de ser contra a autoridade. Muito pelo contrário, desejamos que quem tem autoridade tenha a coragem de exercer a autoridade, tomando as decisões necessárias em lugar de adiá-las indefinidamente, por medo ou timidez. Mais do que nunca, a Igreja precisa de autoridades que tenham a coragem de governar com base no mundo atual, a partir dos sinais dos tempos, deixando de sonhar na possibilidade de voltar ao passado. Autoridades que não entregam a Deus o poder que receberam, rezando para que Deus faça o que elas não se atrevem a fazer.

À frente de cada Igreja urbana há (ou deveria haver) um bispo que deve enxergar longe, perceber o que está acontecendo e para onde vai a sua cidade. Uma pessoa que seja sinal, mostre os caminhos, desperte vocações não para “tapar os buracos”, mas para abrir caminhos novos. A Igreja, mais do que nunca, precisa de bispos, mas não de bispos que se contentem com aquilo que foi dito no mais recente Sínodo, em que se falava das coisas do passado e nada das coisas do futuro.

Se a hierarquia carecer de visão ou de coragem, a pastoral católica copiará o sistema neopentecostal, tratando apenas de achar um buraco no sistema para introduzir os sacramentos tradicionais. O evangelho será substituído pela teologia da prosperidade!

Se contemplamos agora a cidade como cidade, vemos nela um caos. Não é tarefa da Igreja pôr ordem nesse caos. Mas verdadeiros cristãos conseguirão achar espaços e tempos para dar testemunho do evangelho — com a condição de que sejam formados, preparados profundamente. Não se trata de preparação técnica, mas de preparação ao evangelho vivido pessoal e comunitariamente.

Em todo o caso, devemos perder a ilusão de que reflexões pastorais podem oferecer soluções aos problemas da cidade. Não temos solução pronta. O que podemos oferecer são pessoas livres, dedicadas, sacrificadas, com espírito de serviço na aplicação das suas capacidades humanas. O clero deve deixar de pensar que tem todas as soluções. O que tem é o evangelho, mas comunicar o evangelho não é a preocupação dominante da maior parte do clero na atualidade. Talvez seja esse o maior problema da Igreja na cidade.

Pe. José Comblin