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Publicado em número 112

Igreja, difícil busca de identidade

Por Luiz Roberto Benedetti

Quando estudava os pontos a desenvolver esta reflexão sobre a história da Igreja católica no Brasil, vieram-me à mente duas citações. Lembrei-me de Walter Benjamin falando da necessidade do historiador fazer uma opção metodológica pelos vencidos. Quando ele se põe deste lado, sua tarefa é escovar a história a contrapelo. Evitar a todo o custo qualquer simpatia com o vencedor, pois diz ele: “Todos aqueles que até agora venceram participam do cortejo triunfal, onde os senhores do momento pisoteiam os corpos dos vencidos de hoje”. A segunda citação é de Metz. Comentando o cristianismo como memorial da paixão, ele diz que é preciso uma espécie de anti-história a partir da memória do sofrimento. “Um conceito de história no qual as alternativas dos vencidos e aniquilados fossem também levadas em conta; um conceito de história ex memoria passionis, enquanto história dos vencidos”.

Há cerca de dois anos num romance de Morris West um dos personagens diz que a História, especialmente a História da Igreja, é sempre escrita para justificar os sobreviventes.

Não se trata apenas de acreditar na impossibilidade de uma história neutra. Qualquer escrita da História tem uma dimensão política, da qual é impossível escapar. Os interesses de classe do historiador, condicionam o alinhamento e a interpretação dos fatos. Mas trata-se de ir além: a escrita da história é um gesto de poder. Erige como fato, como realidade, aquilo que interessa (no sentido classista) a um determinado setor da sociedade em que vive aquele que escreve. Ao mesmo tempo, sepulta, silencia os expropriados, os vencidos no cotidiano da realidade. A escrita da história dá a palavra ao vencido ou ao vencedor!

Falamos neste artigo de uma Igreja situada no processo histórico construindo sua identidade, ou melhor, buscando sua identidade. Se não a buscasse continuamente não seria histórica, e num plano mais teológico, não estaria em processo de conversão. A pergunta, afinal, é a seguinte: O que é a Igreja, quando analisada no conjunto das relações sociais, isto é, na sociedade, e na História?

1. Uma releitura crítica

A literatura mais recente sobre a Igreja católica, e mais precisamente sobre a Igreja católica no Brasil e América Latina, começa a dar conta de uma espécie de “guinada à direita” (na falta de melhor termo) por parte de uma instituição que nos piores anos de arbítrio e ditadura, fez-se porta-voz dos sem voz nem vez. Retórica à parte, o avanço político da Igreja foi significativo e estamos ainda muito próximos aos fatos para medir o seu alcance.

De um ponto de vista metodológico, entretanto, uma aquisição parece fundamental: a Igreja deixou de ser o sólido monólito — imagem que sempre gostou de apresentar de si mesma — e as contradições e conflitos da sociedade de classes refletem-se com maior ou menor intensidade em seu interior. Mais ainda: tal situação possibilitou a releitura crítica de um passado onde tais conflitos foram sistematicamente negados.

Se isso é uma aquisição, não deixa de ser um problema: como identificar em tal situação a “Igreja”. Sociologicamente parece fácil: identifica-se Igreja e Instituição; esta com a hierarquia. Entretanto, teologicamente isto não parece tão claro. E mais, se a sociologia adota uma postura mais dialética, descobrir-se-á que sempre houve na Igreja pelo menos duas percepções da crença: a dos dominantes (na Igreja e na sociedade) e a dos dominados. E se estes últimos são teologicamente os portadores da identidade da Igreja (que é Igreja na medida em que descobre neles a interrogação de Deus), onde está a identidade?

A leitura da Igreja pós-republicana tentará levantar algumas questões nesta linha. Quem foram os silenciados ao longo desses anos?

2. De cima para baixo

A proclamação da República encontra a Igreja em pleno processo de revitalização interna, ou de romanização, para usarmos uma expressão de Roger Bastide. Uma identidade que até então se encontrava, por paradoxal que isso possa parecer, na identificação com os objetivos do Estado. Era a religião oficial. Mas o Império, a bem da verdade, já havia abalado seriamente a aliança que o Padroado representava. A questão religiosa estava presente no coração dos bispos quando, em sua primeira pastoral coletiva, se rejubilam com a queda do trono, enquanto o altar permanecia de pé. Todavia, sente-se no escrito uma Igreja perplexa:

“Que será de ti, coitado e querido povo do Brasil; se além de tudo te roubam também a tua fé, e ficas sem Deus, sem Deus na família, sem Deus na escola, sem Deus no governo e nas repartições públicas, sem Deus nos últimos momentos da vida, e até na morte e na sepultura sem Deus! Será possível!

Basta, que te não há de suceder tamanha desgraça! Povo católico, tu ouvirás a voz de teus pastores, que só se inspiram no vivo desejo de salvar-te.

E primeiramente, que se há de pensar dessa separação da Igreja e do Estado, que infelizmente está consumada entre nós pelo decreto do governo provisório de 7 de janeiro do corrente ano? É porventura, em si, boa, e deve ser aceita e aplaudida por nós católicos?

Em segundo lugar, que havemos de pensar do decreto enquanto franqueia liberdade a todos os cultos?

Em terceiro lugar, enfim, que temos de fazer os católicos do Brasil em face da nova situação criada à nossa Igreja?”[1].

Apesar de haver uma recusa da separação entre Igreja e Estado — e isso é atestado pelas duas pastorais coletivas (1890 e 1900), diz a segunda: “Talvez seus promotores pretendam desculpar-se, porque, separando o Estado da Igreja deixaram a esta mais liberdade. Se é certo, que a Igreja ficou mais livre (grifo meu) do que no tempo da falsa proteção que lhe dava o passado regime, não é menos certa a injustiça desta medida violenta”[2].

A instituição eclesiástica — cuja identidade se baseava na sua identificação com o Estado, na realidade do Brasil “país católico” — deve redefinir sua identidade. E se moldará à da Igreja universal. Para isso, substituirá todas as devoções populares e irmandades por suas congêneres de corte europeu; colocará sob controle clerical — um clero zeloso, virtuoso e obediente se formará em seminários rigidamente disciplinadores — as formas de organização do catolicismo leigo. Importará ordens congregações religiosas masculinas e femininas que ocuparão os setores estratégicos de controle ideológico-político da sociedade: escola e assistência social (hospitais, asilos, orfanatos). Os religiosos “vinham de fora e não estavam naturalmente ligados ao Brasil por sentimentos profundos. Sua verdadeira família era a de Roma”[3].

Formava-se um catolicismo universalista “com total rigidez doutrinária e moral”[4]. Opção que não deixava de ser o reforço da instituição. Buscava-se uma autonomia de fato, uma vez que se a tinha de direito. Mas havia a contrapartida: deixava intacta sua aliança com os setores dominantes da sociedade. Mais ainda, reforçava-se, robustecia-se — através de uma centralização rigidamente autoritária — para negociar com o Estado um novo reconhecimento. E isso a preço do silenciamento das camadas populares, cuja expressão religiosa era legitimada pela casta clerical.

Aqui uma breve digressão. A Igreja é na época esta, a romanizada. Tem sua história escrita nas crônicas, nas atas, nos devocionários, nas instruções e normas. Mas há a história inscrita — lendas, milagres, orações, devoções —transmitida de geração em geração. Esta história que se recusa a uma escrita, história viva, palpitante, sofrida, não tem identidade eclesial por quê? Por recusar-se a uma flexão frente àqueles que querem transformá-la num belo monumento. Essas devoções se tornam eclesiais ao perderem sua identidade, isto é, ao submeterem-se ao controle clerical. Leia-se o que Puebla fala da religião popular e ter-se-á um quadro bem nítido do que significa uma pastoral centrada no controle clerical.

Aqui o sociólogo pergunta ao teólogo: por que esse catolicismo popular só adquire identidade, exatamente ao ser silenciado, ao submeter-se a uma identidade “exterior” (o clérigo, o padre)? Ou seja, como fica a identidade da Igreja nas relações de dominação simbólica que permeiam a relação leigo-clérigo? Hoornaert sugere: “Perceber o problema do catolicismo popular significa pois abandonar o ‘lugar’ central que é o lugar de quem oprime o povo e passar a encarar o catolicismo do povo como uma fronteira a ser respeitada, uma alteridade desconhecida e original, uma novidade a ser estudada, ouvida, contemplada e admirada como uma revelação do próprio Deus”[5].

Todos os esforços da instituição orientavam-se na busca daquilo que Bruneau chama de neocristandade. A Igreja já não é mais a cultura da sociedade: enfrenta a Maçonaria, o modernismo, a penetração da ideologia liberal, o positivismo, as outras religiões, mas ainda conserva como representação de si mesma, como autoimagem a de detentora do monopólio religioso que lhe caberia de direito e de fato. É para reconquistá-lo que lutará. Um dos intérpretes do período, Ralph Della Cava, coloca a Igreja da República velha frente a duas opções, simbolizadas pelas figuras do missionário redentorista Pe. Júlio Maria e de D. Sebastião Leme.

O primeiro quer um catolicismo envolvido nas lutas sociais, longe dos conchavos dos poderosos da época. Quer o fim de um catolicismo desfibrado que vê na Igreja “a simples administradora de sacramentos e empresa de funerais”[6].Em suma, queria que a Igreja pregasse ao povo. D. Sebastião Leme propunha linha diversa: para ele o país era católico e a Igreja tinha pouca influência, sobretudo na elite intelectual, agnóstica, positivista, secularizada. Era por aí que se deveria atacar o problema. A uma reforma de baixo para cima, D. Sebastião Leme propunha o inverso. O realinhamento de interesses entre Igreja e classe dominante só necessitava de um líder, no caso, D. Sebastião Leme. Ele o fez com talento e brilho. Se uma nação é católica não pode ser governada por descrentes. O que ele fez? Preparou um grupo de intelectuais católicos aguerridos, reforçou as fileiras o mais que pôde, evitou dispersões. Uma vez fortalecida, a Igreja estava em condições de negociar com o Estado o reconhecimento, senão de direito pelo menos de fato, como religião oficial.

D. Sebastião Leme e Getúlio Vargas se entendem. E a Constituição, votada em 1934, coroará de êxito as tentativas de D. Sebastião Leme: a Constituição começa invocando o nome de Deus; os religiosos têm direitos civis reconhecidos; o casamento religioso é reconhecido pela lei civil, o divórcio é proibido. O ensino religioso é facultado em horários de aula nas escolas. As obras de caridade da Igreja, e até mesmo seus seminários, podem ser financiados pelo Estado. Para Della Cava “de um ponto de vista sociológico, as concessões eram equivalentes à manutenção contínua do catolicismo como um sistema religioso total. Envolviam, respectivamente: a definição ideológica e a coesão da unidade primária da sociedade — a família; um mecanismo permanente de socialização dos novos membros e uma base permanente de recrutamento de novos quadros — o sistema escolar; por fim a alocação de recursos nacionais escassos para, falando em linguagem técnica, um setor economicamente não produtivo da sociedade brasileira”[7].

Três organizações-chave são acionadas por D. Sebastião Leme: em 1932 surge a Liga Eleitoral Católica, como forma de mobilizar e orientar o voto dos católicos; em 1935, a Ação Católica, cópia do modelo italiano, criada para cristianizar o mundo, na realidade exacerbando ao extremo o espírito de cristandade; e os Círculos Operários, braço direito da política trabalhista do Estado Novo. Pregava a harmonia capital-trabalho. Apesar da duração efêmera (foi forte enquanto foi forte o governo de Vargas), criou quadros, dos quais saíram alguns dos interventores sindicais para os golpistas de 1964.

Pode-se assim resumir: a Igreja reencontrou sua identidade tornando-se de fato a religião oficial do Brasil, às custas de uma moldagem ao modelo universalista de Roma — centralista, vertical, autoritário — e de um entendimento com o Estado. Nesse modelo, os leigos só tinham identidade na medida em que se perdiam, isto é, clericalizavam-se.

3. Os anos 1950

Os anos 1950 assistem à percepção dos problemas sociais por parte da Igreja, e da necessidade de mudanças sociais profundas. Percepção por parte da hierarquia, não em sua totalidade, mas sim de alguns bispos, sensíveis às vozes proféticas então representadas pela Ação Católica especializada. Em 1952 surgia a CNBB com D. Helder Câmara. Dois anos depois, D. Armando Lombardi era nomeado Núncio apostólico, e em seu mandato nenhum bispo conservador foi nomeado. Trechos de um depoimento tomado por Bruneau dizem que ele “encontrava-se semanalmente com D. Helder, planejava estratégias para mudança, assistiu à maioria dos encontros da CNBB, onde foram formuladas declarações sociais avançadas (por exemplo, em Campina Grande, em 1956; Natal, em 1959; e São Paulo, em 1960), e apoiou publicamente essa orientação. D. Armando influiu na nomeação para bispos de um grande número de jovens progressistas que viriam a ser os líderes do setor ativo pós-64. O Núncio também defendeu os ‘excessos’ da ACB junto aos bispos que a criticavam, e em vários encontros tornou claro seu apoio à Organização”[8].

D. Helder, o Núncio e os bispos do Nordeste juntam seus esforços aos do governo para o combate às secas do Nordeste, a abertura para o populismo e desenvolvimentismo e preparam o caminho para as grandes viradas dos anos 1960, década de João XXIII e suas encíclicas, Vaticano II, Medellín, Paulo VI e a “Populorum Progressio”, mas também época da liquidação da Ação Católica. Época também de acirramento da concorrência de outros credos e forças religiosas, devido ao processo de urbanização.

Em 1959 acontece a Revolução Cubana e na sua esteira uma série de fatores obrigam a Igreja a rever sua estratégia de sobrevivência e manutenção e/ou busca de uma nova identidade. O apoio ao desenvolvimentismo, às reformas de base, o planejamento pastoral (Plano de Emergência — 1962) de um lado mostram o desabrochar de sementes plantadas em 1950 (sobretudo a CNBB), de outro mostram que a Igreja busca no planejamento um acordo tácito com o que constitui a prática econômico-social de então, a economia planejada. E isso é perigoso, porque o planejamento por definição exclui a participação popular.

A Igreja afina-se com o movimento populista. Afinal, seu desenvolvimentismo não ameaçava o princípio sagrado, da propriedade privada e não contestava o princípio da autoridade (que era afinal quem promovia o desenvolvimento). Mas no momento em que o populismo entra em crise, a instituição precisa fazer uma escolha. Entendamos antes a crise.

4. A crise e o golpe

Dois modelos de desenvolvimento são propostos, sem que nenhum dos grupos políticos que os propunha tivesse força política para fazê-lo valer. Os que defendiam o primeiro modelo queriam reformas de base, ao nível da produção, distribuição da propriedade da terra; a criação de um amplo mercado interno, nele incorporando as grandes massas marginalizadas (do campo); aumento acelerado da produção industrial com independência no plano tecnológico e financeiro. O segundo modelo implicava numa subordinação aos interesses internacionais e aos interesses da grande burguesia nacional, identificada com os primeiros desde os anos JK (1955-1960). “Essa alternativa pressupunha o desenvolvimento sem transformação da estrutura econômica do país. É o desenvolvimento econômico dependente-associado, que o país vem realizando depois do golpe de Estado de 1964”[9].Não convém dar detalhes. O importante é que o golpe militar — no impasse que se estabelecera — resolveu o problema no interesse dos partidários do segundo modelo.

A hierarquia como conjunto pôs-se ao lado dos golpistas, esquecendo seus militantes do outro lado, embora no documento que agora citamos haja referência a eles: “Atendendo à geral e angustiosa expectativa do povo brasileiro, que via a marcha acelerada do comunismo para a conquista do poder, as forças armadas acudiram em tempo, e evitaram se consumasse a implantação do regime bolchevista em nossa terra. Seria, além do mais que se pode imaginar, a supressão das liberdades mais sagradas, e, de modo especial, da liberdade religiosa e da civil. Logo após o movimento vitorioso da revolução, verificou-se uma sensação de alívio e de esperança, sobretudo, porque, em face do clima de insegurança e quase desespero em que se encontravam as diferentes classes ou grupos sociais, a proteção divina se fez sentir de maneira sensível e insofismável. De uma à outra extremidade da Pátria transborda dos corações o mesmo sentimento de gratidão a Deus, pelo êxito incruento de uma revolução armada. Ao rendermos graças a Deus, que atendeu às orações de milhões de brasileiros e nos livrou do perigo comunista, agradecemos aos militares que, com grave risco de suas vidas, se levantaram em nome dos supremos interesses da Nação, e gratos somos a quantos concorreram para libertarem-na do abismo iminente”[10].

Os setores da Ação Católica que nos anos 1960 haviam se definido por uma opção política clara, sobretudo a JUC, que em Congresso do mesmo ano tinha definido seu ideal histórico em termos de participação na transformação do mundo (não em sua sacralização), eram duramente reprimidos pelos golpistas de 1964. A leitura da declaração episcopal, da qual foi extraído o texto acima, defende em parte a Ação Católica, sobretudo o MEB (Movimento de Educação de Base), patrocinado pela Igreja e levado à frente sobretudo pelos jucistas. O documento, primeiro agradece a Deus e aos militares (esqueceram-se os bispos de “não tomar o santo nome de Deus em vão”!), e depois refuta acusações contra sacerdotes e fiéis (sobretudo membros da Ação Católica), e acaba reafirmando apoio às reformas que eram exigidas ou pelo menos apoiadas pelos bispos antes do golpe.

É a própria natureza do discurso eclesiástico — tal como esse — que torna difícil falar de identidade da Igreja, sobretudo nas sociedades em conflito. A Igreja é, por definição, compromisso no mundo e com o mundo — entendendo-se por mundo o conjunto das relações sociais (contrapondo-se à seita que normalmente é recusa do mundo). Neste sentido ela tem um discurso suficientemente genérico, capaz de não ferir os interesses das várias classes sociais que constituem a sociedade.

Entretanto, os fatos posteriores mostraram que a Igreja se definia. E se definia contra esses setores da Ação Católica mais consequentes. É difícil ser imparcial. Se o fechamento político provocado pelo golpe levou os militantes cristãos a uma radicalização política, que no seu limite chegou a Ação Popular (e isso era insuportável para a hierarquia) também deve-se perguntar: tal radicalização para fora (em direção a um partido político) não foi motivada pela própria hierarquia que, de uma forma ou de outra, fechou o campo de atuação ao leigo? Ou seja, a Igreja não dizia mais nada a eles e eles não diziam mais nada a ela, sobretudo a partir de fins de 1964, quando D. Agnelo Rossi e D. José Gonçalves foram eleitos para a direção da CNBB. “A organização era dirigida por um tipo burocrático e nenhum dos seus vice-presidentes e conselheiros tinham qualquer compromisso com o que a CNBB representara anteriormente. Isso foi, naturalmente, intencional e só a mudança do pessoal já foi suficiente para transformar completamente a instituição”[11].

A Igreja enquanto instituição definiu-se: “… A hierarquia mostrou-se consistente nos seus interesses e, conforme as palavras de De Kadt ‘… foi de cabeça erguida ao encontro do desafio da JUC…’. Primeiro, desarticulou a JUC e, logo depois, a JOC e o MEB. Em menos de uma década, as três experiências centrais da renovação católica tinham chegado ao fim. A baixa foi horrenda. Deixava a Igreja a juventude católica dos anos 1960. Teria sido a última geração generosa e ainda leal ao Evangelho?”[12].

Entretanto, a Igreja continuava dividida e até mais que antes. Em 1968, um golpe dentro do golpe, elimina de vez as “aparências” de democracia; a exploração do trabalho se visibilizava de forma tão escandalosa que impedia à Igreja manter a ficção da harmonia de classes; a repressão, a tortura, tudo isso levou a Igreja a mudar sua posição, ou pelo menos a tomar posição diante dos fatos que possibilitassem um mínimo de credibilidade às suas posições em documentos oficiais. E com isso defendeu os direitos humanos, lutou pela democracia, abriu caminhos para a participação política dos cristãos. Defendeu os perseguidos.

Floresceram as Comunidades Eclesiais de Base, que levaram a Igreja a buscar sua identidade junto aos pobres. A visita de João Paulo II parece ter confirmado esta caminhada. Os bispos apoiaram os padres franceses que estão presos. Seria uma nova identidade?

Mas sejamos realistas. A Igreja, enquanto instituição, é um corpo. E numa sociedade de classes manter a coesão, ou pelo menos segurar a divisão em limites toleráveis, implica em fazer concessões. Além disso, é uma entidade internacional e o governo centralizador, monárquico, de direito divino, tem peso decisivo. Alguns analistas falam de um “refluxo” da Igreja, comandado pelo Celam. As nomeações episcopais são, para sermos indulgentes, uma incógnita.

Certos fatos, pequenos é verdade, são significativos de uma escolha: a promulgação do código de direito canônico, põe um fecho ao Vaticano II e acaba com as experimentações; o “pito” aos padres ministros na Nicarágua (em flagrante contradição com a postura manifestamente política de João Paulo II na sua visita recente à Polônia); o “aviso” aos jesuítas; o apoio à Opus Dei (uma espécie de “ordem” religiosa leiga adaptada ao capitalismo tecnocrático); o apoio à Teresa de Calcutá (uma opção pelos oprimidos na linha da forma clássica de assistência aos pobres); e o cardinalato de Trujillo (ex-presidente do Celam).

O que significa tudo isso? Que a bela imagem dos anos 1968-1980 — uma Igreja identificada com os pobres, os perseguidos, as vítimas — foi fruto de uma conjuntura política específica? Com a abertura faz-se o fechamento do religioso ao político (sem querer insinuar, nem de longe, que o refúgio no “espiritual” não seja político, aliás, da pior espécie). e virá uma nova identidade, cujos contornos o Celam e o Vaticano delineariam como negação de um passado recente, libertador?


[1] “Pastoral Coletiva do Episcopado. Brasileiro, 1890”, em Ana Maria Moog Rodrigues. A igreja na república. Câmara dos Deputados/UNB, Brasília, 1981, p. 19.

[2] “Pastoral Coletiva do Episcopado Brasileiro, 1900”, idem, ibidem, p. 64.

[3] Roger Bastide. “Religion and church in Brazil”, em T. Lynn Smith e Alexander Marchand. Brazil, portrait of half a continent. Nova York: Dryden Press, 1951, p. 341.

[4] Idem, ibidem.

[5] Eduardo Hoornaert. “Catolicismo popular numa perspectiva de libertação: pressupostos”. REB, nº 141, mar., 1976, p. 195.

[6] Ana Maria Moog Rodrigues. A igreja na república. Câmara dos Deputados/UNB, 1981, p. 175.

[7] Ralph Della Cava. “Igreja e Estado no Brasil do século XX”. Estudos Cebrap, nº 12, 1975, p. 15.

[8] Citado por Della Cava, p. 35.

[9] Luiz Gonzaga de Souza Lima. Evolução política dos católicos e da igreja no Brasil — Hipóteses para uma interpretação. Petrópolis: Vozes, 1979, p. 27.

[10] Souza Lima, op. cit., p. 147.

[11] Thomaz Bruneau. O catolicismo brasileiro numa época de transição. São Paulo: Loyola, 1974, p. 220.

[12] Della Cava, op. cit., p. 45.

Luiz Roberto Benedetti