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Publicado em número 130 - (pp. 26-31)

Igreja e poder político

Por J. B. Libânio

Quando nos vales dos grandes rios, comunidades se organizaram em sociedade de trabalho, sob um comando geral, nasce um Estado, nasce o poder político propriamente dito. Quando, na Grécia, se levantou pela primeira vez a pergunta — qual é o melhor Estado —, a partir da pluralidade de unidades políticas, suficientemente fortes para se rejeitarem mutuamente e nenhuma tão poderosa pa­ra submeter todas as outras, nasce a Política, como teoria do Estado[1].

Quando a Igreja deixa sua fase inicial carismática, pentecostal, e lança-se, organizadamente, à tarefa de implantar-se no mundo, processa-se sua necessária institucionalização, cada vez mais complexa. E quando esta Igreja se defronta com esse Estado, nasce o problema da relação Igreja e Poder Político, que até hoje nos acompanha sob as formas mais diversas.

Hoje nos é feita a pergunta: como se posiciona a Igreja que optou pelos pobres, frente ao poder político? Se há alguma novidade na pergunta, significa que:

a) existe uma relação profunda entre Igreja (poder religioso) e Poder Político;

b) há vários modelos de relação;

c) há uma Igreja que optou pelos pobres e por isso criou ou está criando um novo modelo de relação com o Poder Político.

 

Este artigo pretende esclarecer esses três pontos. Primeiramente analisaremos a relação interna entre o elemento sagrado — presente na Igreja — e o Poder Político. Em vez de fazermos análises históricas, contrapondo uma Igreja que optou pelos pobres a outra Igreja, as quais terminam sempre em simplificações de sabor apologético e em posicionamentos emocionais, seguiremos o método das “figuras modelares”. Criaremos dois modelos teóricos de Igreja em relação com o Poder Político, que certamente só são pensáveis, porque a realidade histórica nos permitiu imaginá-los. Mas não querem ser uma análise de uma determinada Igreja, mas somente uma “figura-espelho”, um “modelo” contra o qual o leitor poderá interpretar as realidades concretas de igrejas que conhece e exercer sobre elas a justa crítica. Tratar-se-á, pois, de aproximar mais ou menos uma Igreja concreta aos modelos descritos e assim compreender-se-á que significa realmente criar uma Igreja que optou pelos pobres sem contraporem-se polemicamente igrejas, com pouco fruto pastoral, acionando antes mecanismos conscientes e inconscientes de defesa e ataque.

 

I. HÁ ALGO DE SAGRADO EM TODO PODER

Uma breve consideração socioantropológica do poder pode permitir-nos perceber seu nexo com o sagrado. O poder faz-se necessário quando uma realidade social é ao mesmo tempo complexa, conflitiva, ameaçada internamente por interesses, aspirações e desejos de indivíduos e grupos de um lado, e doutro quer manter-se integrada, unida e unificada numa totalidade e coletividade única.[2] Por isso, o poder exerce uma função de coesão, de integração interna, já que não bastam os costumes, as simples leis e as regras a que todos se conformariam. A força dispersiva dos desejos, ambições, lutas e conflitos internos exige um poder de coesão além da simples inércia de tradições ancestrais. Além do mais, o poder defende a comunidade das ameaças de fora.[3]

Para cumprir tal função, o poder tem dois braços. O braço forte da constrição, do domínio, da imposição, obriga os membros da comunidade ou sociedade a cumprirem as decisões tomadas. Por sua vez, os súditos se submetem, sejam quais forem os meios usados para se impor tal submissão. É bem conhecida a célebre definição de M. Weber, segundo a qual o Estado se caracteriza pelo monopólio do uso legítimo da violência.[4] Coloca-se o acento no braço da coerção, considerada como o meio específico do poder político.

Um poder estabelecido somente sobre esse braço da força, da violência, da imposição, estaria manco. Falta-lhe o outro braço. O mais importante. Ainda que somente “in obliquo”, a definição de M. Weber se refere ao caráter de “legitimidade” que deve ter o uso da força. Daí que a maior força do poder é elaborar constantemente a ideologia que o autorize, o legitime, o faça aceito pelos súditos.[5] Apresenta-se com autoridade e recebe dos súditos, não a simples submissão, mas a obediência. Por isso, Maquiavel deu conselhos concretos ao magnífico Lorenzo de Médicis para ser estimado, amado e temido, devendo evitar de ser odiado.[6] Todo esse “maquiavelismo” revela a importância da face de legitimidade do poder. Esse duplo lado do poder dá-lhe o caráter de verdade e ambiguidade. Verdade porque busca justificar-se, mostrar-se como garantia e segurança para os cidadãos. E ambiguidade, porque justifica frequentemente muita desigualdade e injustiça, a tal ponto que a linha marxista prefere manter contínua desconfiança em relação ao exercício do poder do Estado (burguês), considerando-o antes instrumento de exploração das massas trabalhadoras por parte das classes burguesas.

O sagrado insere-se, ora explícita, ora subrepticiamente, nas duas garras do poder. No exercício da dominação principalmente em culturas tradicionalmente religiosas, o poder político assume formas sagradas, como a ameaça da ira e castigo dos deuses (de Deus), a condenação de excomunhão ou heresia, a aplicação de penas religiosas.[7] O poder político apresenta-se dentro de um universo sagrado, em força do qual os membros do corpo social têm de submeter-se ao poder. O sagrado exerce a função de coerção que é tanto mais profunda e eficiente quanto mais intimamente penetra a consciência dos súditos. Além do mais, o poder político revela sua dimensão sagrada através do desejo e vontade de eternidade, com a repulsa radical do caos.[8]

Além da íntima ligação com a dimensão de violência do poder, à qual o sagrado não está ausente — não foram as guerras feitas por motivos religiosos as mais cruéis e violentas da história? —, o sagrado cumpre mais explicitamente o papel de legitimador do poder. Cria-se verdadeira dramaturgia do poder com símbolos, ritos, gestos, cerimônias, tomadas de empréstimo do universo sagrado na sua linguagem, na sua estrutura, no seu conteúdo. Uma análise detalhada dos rituais do poder e dos discursos legitimadores do mesmo deparará, sem dúvida, com a presença fortemente justificadora do religioso. Até hoje a humanidade não conseguiu melhor legitimação para o poder que o sagrado. Mesmo os Estados modernos que quiseram transcrever totalmente para a racionalidade os argumentos religiosos, se surpreendem invocando o sagrado para legitimar-se, em momentos de maior crise. Os símbolos sagrados mantêm uma força interna de legitimação tal que faz Maquiavel aconselhar aos governantes de “conservar na sua pureza a religião e suas cerimônias e de alimentar o respeito devido à sua santidade, porque não há sinal mais certo da ruína de um Estado que o desprezo do culto divino”[9].

 

II. HÁ ALGO DE POLÍTICO EM TODO SAGRADO

O reverso da medalha é também verdadeiro. As instituições sagradas são devoradas por dentro pelo desejo do poder. Precisamente porque sabem da força política do sagrado. Que a motivação dos membros da instituição seja diretamente política ou religiosa, não retira aos seus empreendimentos o caráter político.

A razão dessa relação interna entre o sagrado e o político talvez se possa encontrar na natureza mesma da prática religiosa, que se exprime no discurso religioso. Assim considerando algumas das características desse discurso, poderemos entender a relação entre o sagrado e o político, na perspectiva de nosso artigo.[10]

O discurso religioso funda-se numa experiência, transformada em seguida em tradição, que se apresenta como instauradora de novo espaço e novo tempo. Tudo começa com essa experiência. O que lhe antecedeu ou não teve sentido ou lhe foi preparação. E o que lhe sucederá só terá sentido se mantiver relação com tal experiência.

O discurso religioso ambiciona ser a expressão da verdade e do sentido global. Busca deter a exclusividade da verdade. Tolera no máximo estar ao lado de outro discurso, mas prefere situar-se contra todo discurso diferente. O diferente é excluído como herético, é excomungado. O discurso de verdade das instituições religiosas é, por isso, um discurso do poder. E à medida que ele pretende ser universal, considera todos os outros em função de si próprio. E se dentro da instituição religiosa surge um discurso diferente com pretensão de ser reconhecido, deve justificar-se mostrando ser uma volta, um reencontro com a pureza das origens, enquanto as manifestações institucionais presentes se corromperam. De novo, trava-se uma luta de poder sobre a autenticidade de interpretação da experiência fundante e da correta apropriação da tradição daí decorrente.

Como todo aquele que discorda do discurso religioso, encontra-se de certo modo, no erro, ele pretende, por isso, suprimir, reduzir, converter, seduzir os discursos diferentes. Nessa tarefa consiste fundamentalmente seu jogo de poder.

Tanto a Igreja na Cristandade medieval como nos séculos seguintes ao Concílio de Trento, na grande restauração católica, conheceu o poder do religioso em todo o seu esplendor.[11] A mesma análise vale de outras instituições religiosas. No momento interessa-nos uma reflexão de envergadura teórica, em que percebamos esse nexo profundo entre o sagrado e o poder.

 

III. A IGREJA-PODER EM DIÁLOGO COM O PODER DAS ELITES

Os modelos podem ser multiplicados indefinidamente. Mas na brevidade dessa reflexão, vamos trabalhar somente com dois modelos de Igreja na sua relação com o poder. No caso da Igreja entram em jogo três elementos: 1) a representação que a Igreja faz de si enquanto poder; 2) a que ela faz de seu parceiro; 3) a fonte inspiradora para ambas as representações e sua mútua relação.[12]

 

1. A representação que a Igreja-poder faz de si

Não se trata de análise histórica, mas de criação de modelo, que se constrói contra o fundo da história. A Igreja define-se a partir do esquema de “sociedade perfeita”. Reivindica para si, enquanto sociedade perfeita, todos aqueles poderes que constituem a essência de uma sociedade e lhe garantem a liberdade e a efetividade de sua atuação. Por detrás está não só a ideia de uma sociedade completa (perfeita), mas também soberana. E tal termo conota duplo poder “ad intra” e “ad extra”. Em relação aos membros de dentro, a Igreja deve dispor de todos os meios de direito e de força para poder tornar eficaz sua vontade, para cumprir sua finalidade institucional, para fazer valer as decisões que afetam e regulam a sua vida interna. Em relação às outras instituições, reivindica autonomia, independência, não aceitando intromissões estranhas nos seus negócios internos.[13]

A Igreja constitui-se a partir da necessidade de administrar dois bens fundamentais: A Palavra de Deus e as práticas sacramentais (de graça). Por isso, seu poder se institucionaliza em função dessa dupla realidade: Palavra e Sacramento. Portanto, temos na Igreja três elementos fundamentais: Palavra, Sacramento e a organização institucional em vista dos dois primeiros. Ora, o poder vai se dividir conforme essas três esferas. O poder sobre a Palavra (magistério), o poder sobre o Sacramento (Ordem) e o poder sobre a organização institucional (governo).

Com o poder da Ordem, a Igreja “inclui” os ordenados para exercer tal poder e “exclui” todos os outros. Somente aqueles que receberam tal poder pela via da ordenação sacramental, poderão agir no domínio sobrenatural dos sacramentos e assim operar a salvação. Há um só sacramento que é conferido em nome de um poder sacramental fundamental recebido no batismo, a saber, o sacramento do matrimônio. Mas mesmo neste caso, exige-se a presença qualificada de um representante (normalmente) da ordem clerical (diaconal ou presbiteral). Com o poder do magistério garante-se a transmissão autêntica da Palavra de Deus, produzindo e matizando interpretações e decidindo sobre o verdadeiro e falso das mesmas. O poder de governo da Igreja manifesta-se através de todo seu enorme aparelho institucional nos domínios administrativos internos, disciplinares, judiciários, políticos, diplomáticos.

O poder tem, como vimos, o duplo braço da imposição e da legitimação. A representação que a Igreja se faz de seu poder é, portanto, alimentada pelas suas práticas concretas, pelo exercício diário desse poder e também pela teologia oficial que ela elabora para si. O edifício teórico legitimador vem construído pelos teólogos burocratas nos seus trabalhos de redação de documentos, de pareceres justificativos de inúmeros dossiers canônicos e por teólogos, desligados fisicamente da burocracia institucional, mas colocados a seu serviço para levantar voos teóricos mais altos e de alcance mais longo.

 

2. A representação por parte da Igreja de seu parceiro: poder político

A Igreja-poder defronta-se com o outro interlocutor. Em relação aos que não têm poder, ela estabelece a simples relação de docente-discente, de ator-receptor. Mão única de quem possui a quem não possui, de quem pode a quem não pode, de quem distribui a quem recebe, de quem age a quem acolhe no tríplice campo da Palavra, do sacramento e dos serviços administrativos.

Mas o verdadeiro parceiro da Igreja-poder são os outros poderes, nas pessoas que os detêm: as elites. Como essa Igreja-poder se representa a si mesma dentro de um imaginário aristocrático, construído ao longo de seu diuturno contato com os impérios, realezas e monarquias, a parceria comunicativa só se compreende elitistamente. Evidentemente tal representação se traduz na escolha dos conteúdos, das formas comunicativas, da maneira de abordagem, dos canais e de seus códigos. Caracteriza o discurso entre os poderes, entre as elites, duplo olhar: de igualdade entre si e de superioridade em relação às massas. Entre si fazem-se exigências mútuas tão mais ousadas quanto um mais se sente forte, quer com a força da coerção, quer da legitimação. E às vezes é difícil medir qual é a mais importante. Dois ditos anedóticos de situações diferentes revelam tal consciência de poder. À exigência de um sumo pontífice, perguntou ironicamente um chefe de Estado por quantas divisões militares ele possuía. Noutro contexto, observava um analista político que o governo preferia o Te Deum de um cardeal ao galão de um general. Ou mais ironicamente ainda, outro conferencista comentava, usando a comparação do xadrez, a política de um estadista: Bispos para frente, cavalos para trás. Em todo caso, ambos se pensam como poder igual e mutuamente se impõem condições e exigências na medida mesma da consciência e da realidade do próprio poder.

Ambos, porém, têm uma visão de superioridade em relação às massas, quer quando deliberam entre si o futuro delas, quer quando se dirigem a elas. As massas são término de consensos entre cúpulas, destinatário de suas benesses e benevolências, mas nunca parceiras em poder no diálogo. Pelos dois lados do poder, as massas são pensadas sem ele. De fato, não conseguem fazer valer sua vontade. Faltam-lhes consciência, organização, canais de expressão e pressão. E no universo criado pelas classes dirigentes hegemônicas, de que também as massas participam, o lugar delas é de destinatárias dos bens materiais (poder político) e dos bens religiosos (instituições religiosas).

 

3. A fonte inspiradora e legitimadora última da Igreja: Jesus Cristo

Quem é o Cristo, de que a Igreja-poder é a representante, a continuadora, a seguidora fiel? O Novo Testamento apresenta-nos, sem dúvida, várias leituras interpretativas de Jesus. Como a própria vida do Jesus palestinense, mortal, submetido às fraquezas da corporeidade histórica, nos foi escrita por comunidades cristãs já dentro da experiência pascal, isto é, do Cristo glorioso, ressuscitado, Rei absoluto de toda criatura, as imagens de Cristo se cruzam. Ora ele nos é apresentado sob a forma humilde de servo, obediente, pobre e mortal, ora sob a imagem de Soberano e senhor de tudo, a quem o Pai entregara todo Poder. Assim a Igreja-poder poderá ligar-se, não sem contágios com a simbologia imperial, ao Cristo soberano de tal modo que não se consegue mais distinguir se é o Cristo-poder que reforça a Igreja-poder ou se é a Igreja-poder que interpreta o Cristo-poder.[14] Estabelecida tal simbiose hermenêutica, a Igreja-poder e o Cristo-poder criaram um único universo simbólico, a partir de dentro do qual as práticas e a teologia serão moldadas.

 

IV. A IGREJA-DOS-POBRES DIANTE DO PODER

Seguindo nosso método de abordagem, vamos tentar pensar um modelo de Igreja a partir dos pobres. Não se trata de contrapor duas igrejas reais históricas, nem de fazer uma análise histórica de uma igreja presente ou em gestação em nosso Continente, mas sim de oferecer um modelo teórico, provocado sim por inúmeras experiências em curso, contra o qual as práticas e teologias poderão defrontar-se e perguntar-se criticamente por sua maior ou menor legitimidade evangélica.

 

1. A representação que a Igreja dos pobres faz de si

Não se trata de elaborar propriamente uma eclesiologia da Igreja dos pobres.[15] Mas de pensá-la simplesmente sob o prisma de sua relação com o poder: tema de nossa reflexão.

O tríplice poder — Ordem, Magistério e Governo — da Igreja pertence à necessidade histórica de sua existência, numa consideração sociocultural. Além disso, na consciência da Igreja remontam tais poderes à vontade fundante de Cristo. A Igreja dos pobres não se pode representar como uma outra Igreja, mas em continuidade com a única Igreja de Cristo. Por isso, cabe-lhe somente pensar outras maneiras diferentes de viver esse tríplice poder, de modo que o espaço de poder possa ser ocupado pelos interesses dos pobres e por sua presença física à medida que a Igreja se torne realmente a Igreja dos pobres sujeitos.

O poder da Ordem na Igreja-poder é pensado para ser exercido por um estamento especializado com formação apropriada, caracterizada por um tipo de estudo teológico acadêmico e pela disciplina do celibato com a consequente formação para ele. Uma Igreja dos pobres poderia pensar o exercício da ordem desligado dessa estrutura seletiva, à qual os pobres têm dificuldade de acesso ou têm de desenraizar-se ao inserirem-se nela. O exercício de tal poder sagrado por líderes comunitários das próprias bases, permanecendo nelas com o nível de exigências culturais de seu meio, sem necessariamente estarem vinculados à disciplina do celibato, poderá responder mais a uma Igreja dos pobres. E o carisma do celibato poderá ser vivido na beleza popular dos irmãos leigos, dos consagrados à oração, como de fato sempre houve casos no meio das camadas populares e pobres. De certo modo, o poder da ordem, mantido no seu elemento essencial da via sacramental, adquire uma forma mais pobre de poder, ao ser vivido e exercido por pobres, sem o aparato institucional da Igreja-poder.

O poder sobre a Palavra pode ser também pensado de modo mais pobre e popular, a partir mesmo das intuições do Concílio Vaticano II. Quando na Constituição Dogmática Dei Verbum (n. 8), o Concílio trata do crescimento e progresso da Tradição Apostólica, reconhece as vias da contemplação, da íntima compreensão e experiência das coisas espirituais que, de fato, são acessíveis ao povo. A revalorização do “sensus fidelium” a maior relevância dada ao “sensus fidei” do simples fiel podem apontar um caminho para uma Igreja dos pobres que assuma mais o poder sobre a Palavra, sem negar a legitimidade do magistério oficial, como também sem atribuir-lhe uma exclusividade monopolística da Palavra de Deus.[16]

E no campo do poder organizativo, a presença dos pobres se torna mais factível, seja através de uma orientação de tal poder em benefício deles, seja principalmente através de maior presença deles na própria organização da Igreja com suas formas típicas de atuação, com os ministérios e carismas populares, tão abundantemente dados pelo Espírito.

 

2. A representação que a Igreja dos pobres faz de seu parceiro

Os pobres nunca são poder constituído. São poder emergente. Mesmo quando vanguardas de movimentos populares, tomaram o poder e se instituíram em poder, continuou problemática a participação dos realmente pobres nesse poder. Por isso, coloca-se sério problema para a Igreja dos pobres na escolha de seu parceiro. Vai depender de como ela se pensa e pensa sua prática.

Se a Igreja dos pobres olhar mais para o braço do poder de sua eficácia, de fazer valer sua vontade, de impor suas decisões, escolherá como parceiro de seu diálogo as elites, como a Igreja-poder, mesmo que suas intenções e objetivos sejam conduzir as elites a realizarem projetos em benefício dos pobres. Nesse sentido, a Igreja dos pobres pensará na importância de que os pobres se tornem poder, através da conscientização e organização, e assim possam ou exigir mais, ou mesmo em suas formas obterem o poder. Segundo alguns analistas políticos, o poder nas sociedades futuras estará nas mãos de países/grupos que melhor dominarem a informática e a engenharia genética. Salta aos olhos, portanto que ele continuará, de certo modo, dependendo de pequenas elites. E, portanto o parceiro da Igreja dos pobres serão essas elites, ainda que em vista e por causa dos interesses desses mesmos pobres.

Há outra via de pensar o parceiro da Igreja dos pobres. Nesse caso, atribui-se maior importância ao lado “ideológico” do poder. Sua face de autoridade, de apelo à verdade e à justiça. A Igreja dos pobres nesse caso renunciaria ao diálogo com o poder, no sentido de pressioná-lo com seu poder próprio, e acreditaria, sem mais, na força da pregação, do testemunho, dos gestos simbólicos, dos sinais de esperança na vitória da verdade e justiça. Então os principais parceiros da Igreja dos pobres seriam os próprios pobres, não esperando deles força política, mas crendo na força da fraqueza dos pobres. Em termos políticos, tal compreensão do parceiro parece romântica, idealista, espiritualista. Pois coloca o poder na renúncia da face constritiva e pressionadora do poder, para só acreditar na sua força de verdade e justiça. E essa força através de longa fermentação iria criando amplas consciências e práticas coletivas de transformação da realidade.

Ambas as representações do parceiro da Igreja dos pobres parecem responder a aspirações reais dessa Igreja e apresentam lados fascinantes.

 

3. A representação que a Igreja dos pobres faz de Jesus

O espaço curto disponível e o fato de tal representação ser já bem conhecida, dispensam-nos de amplas considerações.[17] Somente alguns toques. Os estudos exegéticos sobre o Jesus palestinense, tentando distinguir, enquanto possível, as releituras “pascais” de atitudes pré-pascais, têm mostrado um Jesus despreocupado em dialogar com o poder, no sentido de exigir do poder práticas concretas. Antes, ele se consagra a viver com os pobres, como pobre. E a sua “exousia”, seu poder, é antes de tudo “autoridade”, a força da verdade, da santidade, do testemunho, despindo-se das formas impositivas do poder. É nesse Jesus da “kénosis” que a Igreja dos pobres encontra sua inspiração.

 

CONCLUSÃO

Estas reflexões, de modo nenhum conclusivas, não passam de “insights” para continuarmos a pensar o problema concreto da Igreja dos pobres e o poder político, sobretudo num momento em que o país vive o clima de Constituinte. Até onde a Igreja dos pobres deve assumir que é poder na sua dupla face — constrição e legitimidade — e, portanto usá-lo sob forma de pressões para realizar o máximo de objetivos em vista dos interesses reais dos pobres? Ou deve simplesmente acreditar numa eficácia, pouco politicamente constatável, da força do bem, da verdade, da justiça, dos testemunhos, sem precisar entrar no mundo das pressões, das conscientizações e organizações? Esta última atitude não significaria entregar aos adversários todos os trunfos e no fundo não seria pura omissão, sob a alegação “idealista” de confiança na força da verdade? E, portanto não deve o poder ser aceito no realismo histórico presente, na sua dupla face — imposição e legitimidade — e também não se deve entrar em diálogo com os reais detentores desse poder — as elites — a fim de transformar a realidade social noutra direção? Não pertence, pois, à estrutura humana que o poder, por mais representativo e popular que seja, tenha uma dinâmica interna de ser elite e que só sob contínua pressão faz desprender benefícios sociais para as camadas realmente mais pobres?



[1] E. Weil, “Politique.I. La philosophie politique”, in: Ency­clopaedia Universalis, Paris, 2, vol. XIII, 1977, p. 226.

[2] M. Duverger. Introduction à Ia Politique. Paris, 1964, ci­tado por: J. W. Lapierre. “Politique. 3. Le Pouvoir politique”, in: Encyclopaedia Universalis, Paris, vol. XIII, 1977, p. 235.

[3] G. Balandier, “Politique. 5. Anthropologie politique”, in: Encyclopaedia Universalis, Paris, vol. XIII, 1977, p. 244.

[4] M. Weber. Le Savant et le Politique. Paris, 1959.

[5] M. Michel, “Pouvoir, vérité et discours religieux”, in: Tra­vaux du CERIT, Pouvoir et Vérité, col. Cogitatio Fidei n. 108. Paris: du Cerf, 1981, p. 10.

[6] N. Maquiavel. O Príncipe, col. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973, pp. 75-77; 83-91; 99-102.

[7] J. W. Lapierre, “Pofitique. 3. Le pouvoir politique”, in: Enc. Universalis, vol. XIII, p. 236.

[8] G. Balandier, art. cit., p. 245.

[9] N. Maquiavel, Discours sur Ia 1ªdécade de Tire Live 1. XII, cit. por: M. Michel, op. cit., p. 15.

[10] M. Michel, op. cit., pp. 10-11.

[11] Ver as obras de J. Delumeau, Le Christianisme va-t-il mourir? Paris, 1977; id., Le Catholicisme entre Luther et Voltaire, nouvelle CLIO 30 bis, Paris, 1971; id., La Peur en Occident, XIV-XVIII siècles, Paris, 1978.

[12] W. Ossipow, “Pouvoir et vérité: Ia transformation du dis­cours polifique dans I’Eglise”, in: Travaux du CERIT, op. cit., pp. 231-247: a estrutura desse trabalho inspirou-nos esse tipo de reflexão desenvolvida no artigo.

[13] J. Hoffmann, “L’infaillibilité pontificale: formulation d’un dogme ou genèse d’une idéologie”, in: Travaux du CERIT, op. cit., pp. 217-218.

[14] W. Pannenberg, “Geschichtstatsachen und christliche Ethik”, in: Diskussion zur “politischen Theologie”, Main­München, 1969, pp. 238-239.

[15] L. Boff. E a Igreja se fez povo. Eclesiogênese: a Igreja que nasce da fé do povo. Petrópolis: Vozes, 1986.

[16] G. O’Collins. Teologia Fondamentale, col. Biblioteca di Teologia Contemporanea, n. 14. Brescia: Queriniana, 2, 1984, pp. 270ss.

[17] J. Sobrino. Cristologia a partir da América Latina (Esboço a partir do seguimento do Jesus histórico), trad. bras. Petrópolis: Vozes, 1983.

J. B. Libânio