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Publicado em número 155 - (pp. 15-17)

A igreja na amazônia

Por Pe. Darci Luiz Marin

(Entrevista com D. Moacyr Grechi)

D. Moacyr Grechi nasceu em Araranguá, Estado de Santa Catarina, em janeiro de 1936. Ordenado sacerdote (Ordem dos Servos de Maria) em 29 de junho de 1961 e sagrado bispo em 21 de outubro de 1973. É bispo de Rio Branco, no Acre. De passagem por São Paulo — onde acompanhou, no hospital, os últimos momentos de vida de um dos padres de sua diocese— concedeu-nos a seguinte entrevista.

 

VIDA PASTORAL (VP): Conte-nos a situação de sua Região Episcopal. Quais as prioridades pastorais que a movem hoje?

D. Moacyr: A realidade do nosso Regional é própria. Os Regionais Norte 1 e Norte 2 têm características semelhantes.

A primeira característica é que nós estamos na Amazônia. Região que tem rosto próprio: do ponto de vista geográfico — ecológico, do ambiente — e também do ponto de vista humano. A maior concentração de povos indígenas ainda se encontra na Amazônia. Aí residem populações chamadas povos da floresta, sobrevivendo na base da floresta.

Outras características, já estas secundárias por dependerem da organização da Igreja, são as grandes distâncias. Um clero prevalentemente religioso e estrangeiro e uma história eclesial recente. Creio que é a região do país onde a história eclesial tenha menos tradição. Não tem praticamente tradição na formação do clero diocesano, principalmente a nossa Amazônia. Não tem tradição de vida comunitária, a não ser em algumas sedes das cidades da região. Percebe-se uma Igreja que nasce agora, com tudo aquilo que significa de esperança e beleza, mas também de fragilidade.

Outra característica é a migração violenta de sulistas, ultimamente, e de nordestinos, em tempos menos recentes. Essa migração mais recente que vem do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo e Mato Grosso transformou totalmente a Amazônia — pelo menos na área de Rondônia. Antes era uma região prevalentemente de pessoas nordestinas, filhas de nordestinos, ou pessoas com características indígenas. Hoje a maioria da população nessa região é de origem italiana, alemã e polonesa, com sua vivência eclesial também marcada pela experiência do Sul.

Outro aspecto, mais ligado ao sociológico, econômico e político: de 1970 para cá houve invasão, por parte dos grandes proprietários, da nossa região. Milhões de hectares ficaram concentrados nas mãos de poucos e os camponeses foram constrangidos em buscar terras distantes, difíceis, ou participar das colonizações governamentais, sem condições mínimas de sobrevivência.

Nossa região também, por esse motivo de terra, é marcada pela violência. Mais de 50% dos assassinatos dos colonos aconteceram no Pará, Maranhão, norte de Goiás, Amazonas e Acre. Nossa região é marcada por profunda violência e total impunidade.

A Igreja, desde 1972, tem prioridades que praticamente não mudaram. A grande prioridade nossa, desde, 1972, é formar agentes de pastoral. Entendemos agentes de pastoral todos, do nível popular ao bispo. Desde os agentes que dão parte do seu tempo para animar pequenos grupos, até diáconos, padres e religiosas dedicadas à pastoral. A grande prioridade está sendo esta: formar e multiplicar agentes de pastoral em todos os níveis. Isso por termos percebido que não tínhamos agentes de pastoral provindos de nossa região e de nossas comunidades.

A segunda grande prioridade é a de formar Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Hoje nossas Igrejas, fundamentalmente, são formadas por pequenas comunidades espalhados pelas áreas de colonização, ao longo dos rios e pelas periferias das cidades que se formaram. Por exemplo: Belém, Manaus, Porto Velho, Santarém, Rio Branco.

A terceira prioridade é a pastoral indígena. O Conselho Indigenista Missionário (CIMI) nasceu em nossa região. A pastoral indígena deu passos grandes e foi assumida — se não totalmente, em boa parte — também pelas Igrejas do Sul e do Nordeste. Especialmente pela presidência da Conferência. A pastoral indígena modificou a opinião pública da Igreja no Brasil e a opinião pública nacional. Hoje muita gente vê o índio de maneira diferente devido ao trabalho desenvolvido pelo CIMI e pelas diversas dioceses.

Outra prioridade que sempre tivemos são as frentes pioneiras: como atender pastoralmente as populações que se deslocam às centenas, milhares, talvez milhões para a Amazônia, forçadas pela falta da reforma agrária no Sul e Nordeste? Hoje acentuamos — por necessidade interna da Igreja, que precisa de seus pastores, mas também pelo fato de mais de 90% do clero da Amazônia ser estrangeiro — a formação de agentes de pastoral, especialmente de clero diocesano, porque temos convicção que até que uma Igreja não tenha seu clero diocesano não é uma Igreja madura e autônoma. Estamos nos empenhando na formação de futuros padres, que sejam fruto de nossas comunidades. Formados em vista delas e em nossa região.

Dizia, logo no início da entrevista, que uma de nossas características, que nos limita muito, é a distância. Participamos dos encontros intereclesiais de CEBs (sete até agora) só nas últimas duas vezes, como conjunto. Creio que antes, a única diocese que participava era a de Rio Branco (ex Acre-Purus). Uma das grandes razões da nossa não participação são os quilômetros, as horas, os dias, as semanas de viagem pelos rios que impedem a participação mais intensa. Nos últimos dez anos, mesmo com esse condicionamento, nosso Regional tem se mantido unido. A gente se sente feliz em participar dele, e temos respondido aos desafios internos, criando CEBs, favorecendo o crescimento de agentes de pastoral que se multiplicaram aos milhares — em 1970, lembro-me, numa reunião das forças vivas, como se dizia, não tínhamos nenhuma liderança leiga do lugar, hoje temos mais de 2.500. Quase a mesma coisa se poderia dizer de todas as nossas Igrejas do Norte.

 

VP: A próxima Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano acontecerá em 1992. Tratará da temática “uma nova evangelização para uma nova cultura”. O que o senhor diria aos agentes de pastoral de todo o Brasil a respeito desse encontro?

D. Moacyr: Primeiro tiraria toda e qualquer ambiguidade da palavra cultura. Que não dê a impressão que seria evangelização para as classes cultas, como se a Igreja quisesse se dedicar prioritariamente às classes cultas. Já ouvi essa interpretação inclusive na Europa. E não é isso. Na visão da Gaudium et Spes cultura é tudo aquilo que forma a vida de uma pessoa, de um povo, como se realizou sua formação e caminhada. Para nós é muito oportuno esse encontro. Até que ponto a mensagem evangélica foi inculturada e vivida com características próprias de nossa região? Fomos sempre Igreja muito dependente, que não tinha rosto próprio na América Latina: a problemática dos povos indígenas que, se no Brasil é minoria de 220.000 em 140 milhões, quando se trata da Bolívia é metade da população, na Guatemala chega a 40%, no México a mesma coisa. “Nova evangelização para uma nova cultura” deve levar em conta até que ponto o Evangelho — a mensagem libertadora de Jesus Cristo — teve oportunidade de se inculturar nestes povos e ser para eles, a partir de dentro, o motivo de vida e transformação de todos os valores que já possuem, e de purificação de todos os contravalores que possam ter.

Há também a problemática negra, com qualidades e visões próprias. Até que ponto houve chances para a inculturação do Evangelho nestas populações?

Depois, temos o problema da cultura moderna, da modernidade. Aqui vamos ter muita coisa que estudar, verificar, procurar pistas. Como atingir o homem de hoje, que é diferente do homem do passado? Como a Igreja pode atingir o coração da massa que vive a cultura da modernidade? Como abordar, evitando a legenda cinza ou rosa (nem ver tudo cinza, nem tudo róseo)? Não foi encontro de culturas, como querem alguns. Houve desencontro, destruição de outras culturas quando os brancos aqui chegaram. Mas também não podemos julgar o passado só a partir da nossa perspectiva e das condições de hoje. Na abordagem da problemática devemos tentar ver as coisas a partir da América Latina, dos povos que sofrem tudo o que conhecemos no campo da colonização, da destruição de povos indígenas, da destruição de culturas, da exploração econômico-política. Tudo isso devemos, olhar com serenidade, a partir da América Latina, e não deixar de ver também a perspectiva da outra parte do mundo e naquilo que há de positivo com a chegada do Evangelho.

Devemos ser objetivos. Não nos deixar levar por preconceitos, ideologias ou medo. Ver as coisas como aconteceram e aprender a grande lição: o que houve de erro e pecado não deve ser repetido. Essa Assembleia tem também a finalidade de um exame sereno do passado, um ato penitencial profundo para nos garantir um futuro diferente. Pode acontecer que repitamos os erros do passado, com muita leviandade, por não saber lê-lo em profundidade. Reconhecer o passado. Pedir perdão, reconhecendo os erros e caminhar para o futuro com esperança.

 

VP: A Teologia da Libertação é chamada hoje a dar novos passos. A seu ver, quais os pontos que deveriam ser incorporados no avanço desta conquista original já iniciada na América Latina?

D. Moacyr: Quando falo em teologia começo a ficar com receio. Sou grande admirador dos teólogos. Eles me ajudam na ação pastoral. Não sou de descobrir pistas novas. Todavia, parece-me que um aspecto que nunca foi aprofundado é o aspecto cultural da Teologia da Libertação. O aspecto do índio, do negro, da mulher oprimida. Há uma tentativa. Parece-me que se valorizou, e devia ser valorizado, o aspecto da dependência socioeconômico-política. Talvez a Teologia da Libertação seja agora chamada a essa abertura e, nesse campo, quem sabe, a teologia da África e a do Oriente, onde a problemática da inculturação é muito mais profunda e prioritária, possa trazer luz. Sinto, conversando com os teólogos, também perceberem essa lacuna que pode agora ser completada.

 

VP: Para uma vivência mais evangélica na realidade brasileira: que elementos deveriam ser a base na preparação teológico-pastoral dos futuros sacerdotes e agentes de pastoral neste final de século?

D. Moacyr: Para a formação dos agentes de pastoral, a Igreja já tem uma tradição longa que deve ser revista, já tendo sido pelo Vaticano II, Medellín, Puebla, pelos documentos da Santa Sé e daqui do Brasil, por experiências várias e válidas que foram feitas. Já temos diretrizes fundamentais. Devemos valorizar o que é característica nossa. Por exemplo: a opção preferencial pelos pobres deve ser assumida pessoalmente, radicalizada e atingir não só aspectos econômicos, sociais e políticos, mas também nossa vida espiritual. Parece-me que ler a Bíblia, celebrar a liturgia, ler livros de espiritualidade na perspectiva dos pobres, de maneira séria e profunda, é uma das características. Lembrar sempre que a opção pelos pobres é um dom de Deus, como bem lembra Gutiérrez. É uma graça que deve ser pedida. Não é uma coisa voluntarista: eu opto pelos pobres — ainda que haja esse aspecto da decisão — o mundo dos pobres é como o mundo divino: não penetramos por decisão nossa. Nós nos aproximamos desse mundo dos pobres, no empenho em estar perto deles, de comungar com eles, mas também por dom de Deus a ser solicitado. Outro aspecto é o que nasce da convivência com as CEBs: a simplicidade no nosso relacionamento. Na comunidade deveríamos nos sentir iguais. Bispos, padres, diáconos, agentes de pastoral, deveríamos nos sentir — na expressão belíssima de Leonardo Boff — uma Igreja muito mais comunhão do que hierarquia, muito mais serviço do que poder, que se expressa muito melhor num abraço do que em gestos de reverência à autoridade. Essa convivência com as comunidades nos levaria à simplicidade e a valorizar o trabalho colegiado, isto é, as decisões tomadas em comum. Cada um com o seu dom que não é obra nossa, é dom do Espírito, e se ele o dá é para que seja valorizado.

Neste nosso mundo, onde somos atingidos a cada instante por uma multidão de imagens, de solicitações, de tensões, precisamos descobrir e redescobrir a oração pessoal, o encontro com Jesus Cristo, que nos faça ter a partir da leitura da Bíblia prolongada, demorada — nada de leiturinha feita às pressas — uma visão da vida, dos relacionamentos e dos empenhos numa perspectiva de fé. A descoberta e redescoberta pessoal da oração é sumamente importante. Sem isso, não acredito na possibilidade da formação de padres para hoje.

 

VP: Em que sentido a Igreja no Brasil pode contribuir na busca de soluções para a problemática da ecologia, evitando que esse tema seja apenas um dos tantos modismos, mas atenda de fato às necessidades dos empobrecidos?

D. Moacyr: Creio que a contribuição da nossa Igreja nesse sentido tenha sido válida. Lembro que quando houve o primeiro encontro, em Manaus, de diversas instituições europeias, logo percebíamos a diferença. Nós, bispos, agentes de pastoral, partíamos do homem. Nossa preocupação não era a seringueira ou a castanheira; era o seringueiro, o castanheiro e o índio que estavam sendo ameaçados. Nossa primeira perspectiva é o homem, enquanto pessoa, comunidade, povo. Isso deve continuar. É a contribuição da Igreja nessa visão da ecologia. O ambiente, sim, é importantíssimo porque é a casa do homem, condição para o homem. Especialmente em nosso caso, condição para o homem pobre. Mais pobre que o índio, no Brasil, não há: pelo número, pela fragilidade de suas instituições diante de uma opinião pública desinformada e, muitas vezes, mal intencionada. Ecologia significa, acima de tudo, o homem da Amazônia: índio, ribeirinho, seringueiro, milhões nas periferias… Queremos que esse homem tenha vida. E para ter vida na Amazônia precisamos da floresta e da água. Um de nossos mais competentes jornalistas, Lúcio Flávio Pinto, de Belém (PA), nos diz: a Amazônia, sem água e sem florestas, não é mais Amazônia, mas estepe. Não teria vida para ninguém.

Quem está destruindo a Amazônia não são os pobres. Estes desmaiam por absoluta necessidade. Se lhes derem condições alternativas, viáveis, de cultivo da terra, podemos ficar certos que não serão os camponeses e seringueiros que vão destruir a terra. Aqui está nossa característica: queremos que a Amazônia seja preservada, para que possa ser fonte de vida. Para isso devemos lutar contra tudo o que é devastação irracional, cujo único fito é o lucro e a ganância desmedidos. É o caso dos garimpeiros que, pelo ouro, destroem os índios, e essa presença dos garimpeiros tem a conivência escandalosa das autoridades de ontem e hoje… É a ganância dos proprietários de terra, incentivados pelos incentivos fiscais. Nossa ecologia põe o homem no centro e que se garanta o futuro do ambiente para todos, especialmente para os que são mais frágeis.

 

VP: Para concluir, qual a mensagem que o senhor gostaria de deixar aos leitores que nos acompanham através desta revista em todo o Brasil?

D. Moacyr: É bonito, esta revista atinge o Brasil inteiro! Deixo a mensagem de abertura para os outros. Recente­mente tive a oportunidade de encontrar-me, na Europa, com dezenas e dezenas de grupos a favor da América Latina e de todo o Terceiro Mundo, eclesiais e não eclesiais. Eles insistem muito na formação para a universalidade. Não nos fechemos em nossos pequenos ou grandes problemas. Hoje tudo está interligado.

No Brasil temos que ver nossa pastoral, nossa Igreja, em toda sua dimensão: os problemas da Amazônia estão ligados aos problemas do Rio Grande do Sul… Temos que ter sempre essa abertura que enriquece a pastoral local e é convite à solidariedade àqueles que mais precisam.

Minha mensagem é dessa abertura para o mundo e para o Brasil inteiro. É benéfica para que não nos fechemos nos nossos guetos e achemos soluções mais ricas e com dimensões mais amplas.

 

Pe. Darci Luiz Marin