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Publicado em número 171 - (pp. 2-5)

Agente de pastoral: agente da não violência

Por Por Pe. Darci Luiz Marin

(Entrevista com D. Paulo Evaristo Arns)

D. Paulo Evaristo Arns nasceu em 14 de setembro de 1921, na localidade de Forquilhinha, município de Criciúma, Estado de Santa Catarina. Fez seus estudos de Filosofia em Curitiba e Teologia em Petrópolis, no Instituto dos Franciscanos. Foi ordenado sacerdote em 30 de novembro de 1945. Em 1947 foi a Paris, onde cursou Letras na Sorbonne, doutorando-se em 1952. De volta ao Brasil, dedicou-se ao magistério e, simultaneamente, por mais de dez anos, exerceu seu ministério sacerdotal entre os pobres dos morros de Petrópolis. Em 1966 foi sagrado bispo. Por quatro anos exerceu o trabalho de Vigário Episcopal da Região Norte da Arquidiocese de São Paulo, cargo que ocupava quando da nomeação para Arcebispo Metropolitano de São Paulo, em outubro de 1970. No Consistório de 5 de março de 1973, Paulo VI nomeou-o Cardeal. É o atual Cardeal Arcebispo de São Paulo.

 

VIDA PASTORAL (VP): Como o senhor vê a violência no Brasil hoje?

D. Paulo: Hoje, vejo a violência sendo derrubada por passos tímidos de democracia nas ruas de nosso país. O povo ficou sabendo da monstruosidade na corrupção do governo em Brasília e da injustiça na chacina dos presos em São Paulo. Essa tomada de consciência pela imprensa mobilizou multidões nas ruas do Brasil, para manifestar indignação contra a corrupção e clamar por ética na política. Essa mobilização nacional derrubou o Presidente da República e o Secretário de Segurança. O povo descobriu que o Estado é contra o povo. Que o cidadão é corresponsável pela violência. A omissão do brasileiro produz violência. A participação popular impede ou reduz a violência. Essa é a novidade, hoje, no campo da violência no país. Surge o poder popular contra o poder político. O povo viu sua vontade ser respeitada no Congresso Nacional e na Assembleia Legislativa. Por isso, surgiram movimentos nacionais pela ética na política, democratização da comunicação e defesa da educação. Os bispos em assembleia, aproveitamos para dirigir à consciência nacional precioso documento sobre ética pessoal e social (31ª assembleia, realizada de 28 de abril a 7 de maio, em Itaici, SP). Aproveite este momento para unir as forças de sua comunidade e derrubar a maior violência do Brasil, que é a miséria e a pobreza.

 

VP: Como o agente de pastoral deve se situar em meio a essa violência?

D. Paulo: O agente de pastoral deve se situar em meio a essa violência como se situa a Igreja no Brasil e na América Latina. Precisa estudar e praticar o documento sobre “ética: pessoa e sociedade” da última assembleia dos bispos brasileiros em Itaici e as conclusões sobre “inculturação e promoção humana” da última conferência dos bispos latino-americanos em Santo Domingo. Isso significa que o agente de pastoral precisa fazer sua opção pelo povo. Priorizar o trabalho sobre o capital. Participar da reorganização ética do nosso país. Conscientizar a população sobre a causa da violência social. A violência é causada pela organização social que exclui a maioria do povo da economia, educação, saúde, habitação, trabalho, política, transporte. Depois, é preciso ajudar o povo a se organizar de forma permanente. Provocar a união do que é consenso na maioria. Formar o povo para a não violência ativa, solidariedade e cooperação. Para muitos se tornou natural tropeçar em 40 mil pessoas que moram nas calçadas, marquises e viadutos de São Paulo. A maioria acha natural o Estado definir o que é violência e reprimir o criminoso, sem atender aos interesses do povo e às exigências do bem comum. Por isso, o agente de pastoral é sempre agente da não violência.

 

VP: Os meios de comunicação refletem ou propagam a violência?

D. Paulo: Aquele ator de novela que matou aquela atriz, no final do ano passado, mostra a responsabilidade dos meios de comunicação sobre a violência. Eles retratam, justificam e motivam a violência na sociedade. Quando vejo o noticiário, percebo que retrata a violência que interessa ao poder econômico e de acordo com as intenções dos poderosos que enganam o povo. Os meios de comunicação estão nas mãos de poucos, que detêm o poder econômico e político, para justificar as formas estruturais da violência social. Chama minha atenção como o programa infantil, desenho animado e programa de auditório educam para a violência. Porque a competição, disputa e concorrência, caracterizam esses programas. Divertem muito no final do dia e fazem esquecer a violência diária. Mas, alienam a gente da história que temos na mão. Reforçam em nós o individualismo, a ambição e até a “lei do mais forte”. Educam para a competição, destruindo a solidariedade e naturalizando a violência. Se desejo aquele tênis importado, é natural praticar qualquer tipo de violência. Pois é normal aprender nos meios de comunicação como se faz sequestro, furto, roubo, estelionato, agressão, homicídio, tráfico de drogas, formação de quadrilha e outras violências. No início deste ano, durante sete dias, 11 pesquisadores do Rio de Janeiro analisaram a violência em 111 horas de 83 programas da TV Globo e viram 100 cenas diárias de violência e 1.377 crimes naquela semana, sendo 50% dessa violência em programas infantis. Precisamos educar o povo para a comunicação, para receber de modo ativo e crítico essa violência.

 

VP: O que o senhor diria, a partir de sua própria experiência, a quem sofre por defender os direitos humanos?

D. Paulo: Sofri muito e continuo sofrendo por defender os direitos humanos. Está armada uma “guerra civil” contra os que defendem os direitos fundamentais da pessoa. Somos tidos por “inimigos da sociedade” pelos defensores da segurança nacional e da segurança civil. Digo que sejam inteligentes, vigilantes, perseverantes e firmes na defesa não violenta do nosso povo esmagado em sua dignidade. Digo ainda, que sejam contra métodos violentos para resolver a injustiça social. Violência só gera mais violência para o povo e nenhuma solução verdadeira. Digo mais, sejam a favor da “desesperança em esperança”, meu lema episcopal. Porque a esperança cria solidariedade, defende a vida e faz nascer o amor que perdoa até aos inimigos. Imitem Jesus, que perdoou a seus carrascos e morreu pelos injustos. E difícil ser cristão na defesa dos direitos humanos. Ainda hoje sou acusado de defender bandidos e de não defender as vítimas dos criminosos. Há 20 anos, era chamado de “bispo comunista” porque defendia o pobre, perseguido pela Segurança Nacional por ser considerado “inimigo do Estado”. Até nossas cartilhas para a educação política, exercício da cidadania e prática da democracia, eram taxadas de “panfletos partidários da religião”. Taxistas e senhoras da sociedade fizeram manifestações de rua contra mim, no ano passado, porque denunciei o desrespeito à vida e à dignidade dos presos na chacina do Carandiru. Sistematicamente sou atacado pelo rádio em programas policiais de ex-militares, que hoje são políticos e radialistas, porque defendo os meninos da Praça da Sé e denuncio torturas na antiga FEBEM. Mas isso é evangelho e vontade do Pai.

 

VP: Existe diferença entre a violência desencadeada no período da ditadura e a violência de hoje?

D. Paulo: Existe diferença no objetivo da violência, no modo de agir e na opinião pública. A violência de hoje não é pior nem melhor que a violência da ditadura, é diferente. Não me esqueço do encontro particular que tive com o presidente Médici, dia 5 de maio de 1971. Fui pedir o fim das torturas e não consegui nada. Pelo contrário, ganhamos assassinatos violentos: do estudante Alexandre Vannuchi Leme, do jornalista Wlado Herzog, do operário Manoel Fiel Filho e do inesquecível líder cristão e operário Santo Dias da Silva. Era proibido denunciar tortura e os militares diziam que não havia tortura, mas muito comunista, inimigo do Estado, nas prisões. Até bispos acreditavam nos militares e não aceitavam as provas de tortura que eu apresentava. A violência na ditadura era pessoal, por motivos ideológicos e impublicáveis. A violência hoje é social, por motivos econômicos é publicada. Hoje a imprensa não é censurada e deixou de ocultar a violência dos poderosos. A imprensa hoje teve a coragem de fazer o povo tomar consciência de que 1% da população detém o poder econômico e político, sendo a principal causa da violência, da ditadura, do golpe de Estado. Por isso é preocupante ver 32 milhões de famintos no país e 40 mil moradores de rua em São Paulo. O país está sem moeda, a economia sem recuperação, a cidade sem segurança, o político sem moral, o cidadão sem esperança, votando até na monarquia. Precisamos de esperança!

 

VP: Como fazer para mostrar o engano da legalização da pena de morte no Brasil?

D. Paulo: Mostre que o povo será enganado se a pena de morte for legalizada no Brasil, porque ela já existe secretamente em nosso país. Será apenas tornar legal uma pena imoral que já é praticada pela “cultura de morte” de nossa sociedade. A fome é imoral e 32 milhões de brasileiros estão morrendo de fome. Essa denúncia foi feita em março deste ano pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), que divulgou o “mapa da fome” no Brasil. Há 11% de brasileiros sem nenhuma renda, moradia, educação e emprego, em estado de emergência social, sem nada absolutamente. Depois, a polícia mata, apenas nas ruas de São Paulo, 7 pessoas por dia. O trânsito mata 50 mil brasileiros por ano nas estradas do país. Os “grupos de extermínio” matam aleatoriamente nas periferias de nossas cidades. Por isso mostre que a pena de morte já existe em nossa cultura e o povo está sendo enganado, mais uma vez, com esse projeto de lei no Congresso Nacional. Imagine que 500 mil famílias por ano ficam sem casa em nosso país. Lembre que 60% da terra brasileira estão nas mãos de 1% de proprietários. O cristão existe para a “cultura da vida”, para que todos tenham vida em todos os sentidos. Só Deus é dono da vida e nós somos seus gerentes. Por fim, mostre que é inútil a pena de morte para diminuir o número de crimes violentos. São muito conhecidas as estatísticas dos Estados Unidos, onde há pena de morte e o maior índice de criminalidade do mundo. A pena de morte é imoral, porque a vida é o maior bem moral da sociedade. Se não houver respeito pela vida, não haverá respeito por nenhum outro valor e ninguém terá segurança no convívio social.

 

VP: Como fortalecer hoje o ecumenismo na promoção humana dos pobres?

D. Paulo: O ecumenismo sempre teve sua realização forte na defesa dos direitos humanos, na promoção paz e na preservação da natureza. Faço parte de um grupo internacional das grandes religiões do mundo na promoção humana dos empobrecidos. Antes da Eco-92, no Rio de Janeiro, reunimo-nos em São Paulo para dar nossa colaboração de ecologia humana e preservação da criação. A nossa Catedral da Sé é marcada por significativos encontros ecumênicos de judeus, muçulmanos, budistas, evangélicos e católicos. Ninguém vai se esquecer da cerimônia ecumênica por ocasião da morte do jornalista judeu, Wlademir Herzog, em 1975. No ano passado, quando recebi o Dalai Lama na Catedral, com diversos líderes religiosos da cidade celebrando a soberania do Tibet, aquele monge budista disse para todos que “jamais tinha rezado em ambiente tão acolhedor, piedoso, fraterno e solidário, em todo o mundo”. Por isso, apoiamos com entusiasmo o nascimento em São Paulo do “Fórum das Religiões” afro, budista, indígenas, de judeus, muçulmanos, evangélicos e católicos. Vejo o ecumenismo, hoje, superando os muros das religiões cristãs, para unir povos, religiões e culturas na luta diária por dignidade, vida e justiça. A promoção da paz, ecologia e libertação dos empobrecidos abre todas as barreiras e fronteiras para a cooperação ecumênica de todos. Valorize com amor a pastoral da terra e dos índios que já praticam esse ecumenismo.

 

VP: Mudou a ação da Igreja no campo político e social no Brasil hoje?

D. Paulo: A Igreja jamais deve se esquecer de sua opção pelos pobres, “preferidos de Deus”. É sua missão sempre motivar esperança e confiança no povo excluído da sociedade. A Igreja prega o amor integral ao outro e nunca pode se omitir diante das necessidades clamorosas do povo. Os “sinais dos tempos” fazem a Igreja se inculturar sistematicamente no campo político e social de sua realidade. Por isso, está renovando sempre a sua pastoral, sendo a permanente “juventude do mundo” nas mudanças rápidas e globais da sociedade. A Igreja é organismo vivo e não organização pronta. Hoje, o campo político exige a colaboração da Igreja para construir a ética pessoal e social dos brasileiros. O povo está indignado com o uso do dinheiro de todos para o bem de poucos. Precisamos cooperar na mudança do modelo de desenvolvimento que exclui a maioria, para a democracia real em que acontece o exercício da cidadania. Por isso, apoiamos dois grandes movimentos nacionais pela democratização da comunicação e pela ética na política. Na pastoral social, a Igreja deve salvar o homem todo e todos os homens a partir de seus clamores concretos. A realidade de nossa arquidiocese (São Paulo) coloca o social como prioridade pastoral. Acontece que a função supletiva da Igreja no social é transitória, passa quando o Estado assume o clamor popular. Mas é melhor a Igreja exagerar nessa função supletiva, do que se omitir no cumprimento de sua missão.

 

VP: Igreja perde fiéis por se ocupar mais com o social do que com o espiritual?

D. Paulo: O importante para a Igreja não é quantidade, mas qualidade. A Igreja católica já foi a única religião dos brasileiros. Hoje, nosso país é pluralista também nas religiões. Mas, pesquisas recentes mostram que a Igreja continua sendo a instituição de maior credibilidade junto a opinião pública. Essa credibilidade da Igreja existe no Brasil por causa de seu compromisso na promoção dos empobrecidos, na defesa dos direitos humanos e na formação da cidadania. Na sua opção pelo povo e pelo social, a Igreja não tem nenhum interesse além de servir ao evangelho e de fazer o bem a todos. A Igreja perde fiéis por causa da miséria que assola o país. Os desesperados, pela falta de assistência à saúde, procuram o milagreiro, que promete cura em nome de Jesus. Não queremos sacralizar o descaso público para com os direitos sociais. Desejamos alertar os brasileiros para que exijam do Estado serviços eficientes de saúde. Não podemos enganar a fé do povo e tirar dele o dinheiro com que se alimenta. Esse compromisso da Igreja com o social encarna o espiritual, dá sentido à celebração e anima sua missão. A Igreja nunca pode se esquecer de sua missão espiritual e motivação evangélica. Por isso, não é ópio do povo no Brasil.

 

VP: Como poderíamos aplicar Mt 5,38-42 em nossa vida hoje?

D. Paulo: Essa passagem de Mateus ensina a fazer o bem a quem nos ofende. Aplica aquela exigência de Jesus para amar até o inimigo. Mostra que não vale para o cristão a lei da vingança, do “olho por olho, dente por dente”. Esse texto evangélico coloca a teologia da libertação dentro do Sermão da Montanha. Ensina que não basta libertar o oprimido, mas é preciso também que o oprimido perdoe o opressor. Fica claro que não basta evitar a violência, mas importa também praticar a misericórdia. Porque o ato do perdão é realmente a prova da existência de Deus. Pois, sem Deus só é possível a vingança. Se a gente perdoa, é porque Deus está conosco. Gestos de justiça e de bondade na vida de qualquer pessoa mostram nessa pessoa, seja ela quem for, a presença da ação do próprio Deus. A novidade que o cristianismo trouxe é exatamente o perdão. Por isso, o cristão vive para dar a vida, também pelos injustos, inimigos. A vida cristã tem sentido quando se coloca a serviço dos mais necessitados. Nós vivemos para servir e não para ser servidos. Daí que não basta o social, mas é preciso também o espiritual na vida cristã. Importa viver com tal confiança na graça de Deus, que sentimos a força do Espírito Santo em nós e nos tornamos capazes de amar ao irmão, mesmo que nos esteja tirando a vida. Essa passagem de Mateus exige que nossa opção pelos pobres e nosso amor pelos excluídos leve o oprimido a amar seu próprio opressor. Concluindo, espero que a Igreja não gaste 90% de seu tempo, energias e recursos com problemas internos, mas se coloque a serviço do Reino para que haja vida “assim na terra como no céu”.

 

Por Pe. Darci Luiz Marin