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Publicado em número 162 - (pp. 2-6)

Bíblia é luz e força

Por Pe. Darci Luiz Marin

(Entrevista com Frei Carlos Mesters)

Carlos Mesters nasceu na Holanda em 1931. Aos 17 anos, já no seminário dos carmelitas, escolheu o Brasil para sua futura atividade missionária. No dia 6 de janeiro de 1949 partiu para o Brasil, chegando ao porto do Rio de Janeiro em 20 de janeiro. Fez a profissão religiosa em 1952. Cursou filosofia em São Paulo e teologia em Roma, especializando-se em Bíblia no Instituto Bíblico de Roma e na Escola Bíblica de Jerusalém. Foi ordenado presbítero em 1957. Sua obra inclui livros e artigos sobre a interpretação da Bíblia à luz da vida, numa linguagem acessível ao povo simples. Dentre sua vasta obra bibliográfica, destacamos “Paraíso terrestre, saudade ou esperança?” (1971), “Por trás das palavras” (1974), “Seis dias nos porões da humanidade” (1977), “A missão do povo que sofre” (1981), “Flor sem defesa” (1983) “Bíblia, livro feito em mutirão” (1982), “Esperança de um povo que luta, o Apocalipse de São João…” (1983), “Os dez mandamentos, ferramenta da comunidade” (1986), “Paulo apóstolo, um trabalhador que anuncia o evangelho” (1991), “O profeta Jeremias, boca de Deus, boca do povo” (1992). Edições Paulinas publicou, em 1986, o livro da teóloga Tereza Maria P. Cavalcante “A lógica do amor, o pensamento teológico de Carlos Mesters”, que traz boas pistas para compreender a proposta do biblista que nos concedeu a presente entrevista gravada ao vivo — com a colaboração da Ir. Dazir — e que, a seguir, transcrevemos.

 

VIDA PASTORAL (VP): O Vaticano II estimulou muito o estudo da Palavra. Como você vê o caminho percorrido pela Igreja nesses últimos trinta anos e quais os desafios para o futuro?

Frei Carlos Mesters: Vejo esses trinta anos, dos anos 60 até hoje, como uma semente plantada. Semente boa, que foi crescendo, mas que já estava no chão antes do Vaticano II. Já havia um trabalho de divulgação bíblica aqui no Brasil desde os anos 40 e 50, sobretudo com as Semanas Bíblicas. A preocupação era, basicamente, conhecer melhor a Bíblia.

O Vaticano II estimulou, e essa leitura da Palavra foi provocando o surgimento de comunidades em toda parte. O povo foi se agregando em grupos. A Palavra foi agrupando as pessoas. E, sobretudo, depois de Medellín (1968), houve aqui no Brasil o começo forte de formação das CEBs, em que o povo, lendo a Bíblia, começou a olhar também a realidade.

Temos, então, três etapas: conhecer a Bíblia, viver em comunidade e essa comunidade existe a serviço da realidade. São três elementos básicos que vão aparecendo nessa caminhada feita nos últimos trinta anos.

O primeiro desafio para o futuro é manter esses três pontos unidos: colocar em dia o conhecimento, manter a comunidade viva — porque lá existe a fé que nos faz enxergar o Espírito — e manter sempre essa atenção da comunidade para a realidade do povo. A Igreja não é uma realidade em si mesma. Ela existe a serviço da vida e da humanidade.

O segundo desafio é que a Palavra de Deus tem duas dimensões básicas. É luz e força. Luz enquanto nos traz consciência, conhecimento crítico da realidade. Força enquanto nos ajuda a caminhar. Na realidade pastoral isso está um pouco separado. Os movimentos carismáticos insistem mais na força e os libertadores na luz, na consciência mais crítica. É um desafio tentar unir essas duas dimensões, para superar o perigo do fundamentalismo que nos ameaça de todos os lados.

Outro desafio é colocar a exegese, o estudo da Bíblia, a serviço dos pobres — e não apenas buscar aí o aumento do conhecimento —, numa linha de libertação sobretudo ecumênica.

O ecumenismo cresce na medida em que estudamos a Bíblia para servir à vida, como Jesus falou: “vim para que todos tenham vida e vida em abundância” (Jo 10,10).

Um outro desafio é a leitura feminina ou feminista da Bíblia. Nas comunidades, a maior parte das pessoas que participam são mulheres e entre os exegetas a maior parte são homens. Aí há um desequilíbrio, porque o olhar da mulher percebe coisas que o homem não percebe. É importante que essa leitura seja estimulada o mais possível.

 

VP: A propósito do fundamentalismo, o que dizer a respeito do grande número de grupos que fazem uma leitura fundamentalista da Bíblia?

Frei Carlos Mesters: Às vezes o pessoal fica preocupado com a leitura que se diz reducionista, progressista, libertadora, marxista da Bíblia. Acho que o perigo muito maior é a leitura fundamentalista, porque ela faz o que Jesus (e a própria Bíblia) nunca fez: desligar a Palavra da vida. Ela desliga e faz o que Jesus combateu. Os fundamentalistas dizem: “o homem é para o sábado”. Jesus diz: “Não. O sábado é que é para o homem”.

Não é fácil enfrentar esse problema da leitura fundamentalista, porque há muito mais gente que faz essa leitura do que a libertadora. No Brasil, grande parte do povo pobre que está nos movimentos pentecostais faz leitura fundamentalista. Muitas vezes o movimento carismático, não digo que seja totalmente fundamentalista, tende para esse tipo de leitura.

Todos temos tendências à leitura fundamentalista. Não é só a Igreja católica que tem fundamentalistas; protestantes, judeus, muçulmanos e budistas também têm. O fundamentalismo é um movimento que afeta toda a humanidade. É sinal de insegurança. É desejo de se agarrar nestes tempos difíceis em que nos encontramos.

O que pode ajudar a enfrentar o fundamentalismo é a ligação da Bíblia com a vida. Isso de duas maneiras. Uma ligada à vida de hoje e outra estudando o texto que mostra ter nascido de uma situação muito concreta de vida do povo daquele tempo.

O agente tem obrigação de estudar a Bíblia para poder mostrar que ela nasce de uma situação concreta. Ela não cai do céu. A chuva cai do céu, mas a planta nasce de uma terra concreta.

Outra coisa para ajudar a superar o fundamentalismo é fomentar a vida comunitária, que traz segurança. O fundamentalismo nasce, em parte, da falta de segurança. É na comunidade que encontro Deus presente na vida. Se eu encontro irmãos e irmãs, isso pode me ajudar a superar o fundamentalismo.

Seria o que hoje se fala que a comunidade começa a ser luz para o povo pelo Brasil afora. Essa é a tendência de serviço à vida.

 

VP: Conte-nos quais as intuições iniciais que o levaram a propor o método do estudo da Bíblia a partir da realidade do povo.

Frei Carlos Mesters: Não foi intuição não! Fui capinando o capim que tinha na frente e andando! Depois de feito o caminho, olhando para trás, vejo que é importante o contato com o povo. A Bíblia não pode ser lida e explicada sem levar em conta essa realidade. É como Jesus falou: “Eu vim para anunciar a Boa-Nova aos pobres” (Lc 4,18). Essa dimensão não pode faltar. Para entender o sentido da Bíblia é necessário levar em conta isso.

Outra coisa: se você lê a Bíblia atentamente, como ela se formou através da história, vai descobrir que o que ajudou o pessoal a perceber os apelos de Deus foi a atenção à realidade: tempo do êxodo, dos juízes, reis e profetas, exílio, pós-exílio e tempo de Jesus.

É preciso ter presente essas duas dimensões: o estudo da Palavra e a atenção para a realidade.

 

VP: A crítica à leitura popular da Bíblia diz que o método seguido por essa leitura não é científico. O que dizer a respeito de tal crítica?

Frei Carlos Mesters: No fundo a crítica é dupla. São duas críticas que se fazem à leitura popular. Uma diz que não é científica e outra, quase com o mesmo teor, diz que ela não é fiel à tradição da Igreja.

Acho que os aspectos científico e o de fidelidade ao magistério são tão importantes para a interpretação que o povo faz, como a raiz é importante para a árvore. Agora, se você passa por uma árvore não vê a raiz. Você poderia perguntar: não tem raiz? Claro que tem! Se não tivesse não existiria árvore.

A exegese que o povo faz é profundamente científica e fiel ao magistério. Só que não precisa alardear isso. O importante não é falar, arrotar ciência. O importante é que o que se diz tenha fundamento científico e que a raiz esteja no chão. Não há necessidade de, a todo momento, estar citando passagens do magistério. O importante é a fidelidade.

Essa crítica não vale. Por exemplo, o liquidificador é feito com ciência. Se fosse complicado, ninguém poderia usar. O fato de ser muito simples é sinal de que é muito científico.

 

VP: Quais os passos que você indicaria aos agentes de pastoral menos familiarizados com a leitura da Bíblia, que desejam conhecê-la melhor para aplicá-la na vida?

Frei Carlos Mesters: A Bíblia é como uma casa que tem 73 portas. É bom entrar por aquela que você mais conhece, porque aí você se sente em casa! Existem portas que você nunca usa. Então não é bom entrar por uma porta que você não conhece. Entre por uma porta onde você se sente à vontade, sem deixar a vida que você vive. Para muita gente, são os evangelhos e os Atos dos Apóstolos. Quem vive em comunidade e participa ativamente, se for ler os Atos, encontra coisas que vive hoje. Há empatia, afinidade.

Para outro uma porta boa pode ser procurar na Bíblia textos que falam dos problemas que ele está vivendo. Às vezes pode ser um cursinho. Uma pessoa que não conhece muito a Bíblia, ao participar de um cursinho que lhe dá um conhecimento global da Bíblia, vê os horizontes se abrirem. É como estar num quarto fechado. Ao abrir a janela, a luz entra e se acaba conhecendo o quarto e achando-o bonito.

Outras vezes a Bíblia assemelha-se a um bolo grande. Não há necessidade de comer todo o bolo para sentir o gosto. Bastam alguns pedacinhos aqui e acolá. Vai-se comendo aos poucos. Comer tudo de uma vez dá indigestão!

Quando se tem uma comida boa, quer-se saber o tempero que foi usado. A Bíblia serve para temperar a vida. Se vemos que isso dá resultado na vida das pessoas; temos mais gosto em lê-la.

Aqui também vale ter paciência. Se você chega a uma cidade onde nunca esteve, não adianta querer conhecê-la por inteiro no primeiro dia. É vivendo nela que, aos poucos, você vai conhecendo sua casa, o bairro, as ruas e depois de alguns anos você conhecerá a cidade toda. Assim é a Bíblia. Bom é ler todos os dias um pouco, mesmo que você não entenda. Você poderá passar por ruas que não conhece, mas tem que passar para poder conhecer.

 

VP: Os Centros de Estudos Bíblicos (também ecumênicos) são realidade em todo o Brasil hoje. A proposta inicial do CEBI a seu ver frutificou bem? Quais os desafios que ainda restam a ser enfrentados?

Frei Carlos Mesters: O Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos (CEBI), para a Pastoral Popular, frutificou bem. Começou em 1978, e hoje, depois de aproxima­damente quinze anos, está em quase todo o Brasil. Cresce para cima e para baixo. Para cima, no sentido que em todos os lugares está se organizando melhor. Mas isso em vista das raízes. Cresce para baixo nos grupinhos de base que se espalham em toda parte.

O crescimento para cima é em função de manter a caminhada do povo: nos círculos bíblicos, nas comunidades, nas lutas populares…

Um desafio, além dos mencionados, seria o de um estudo mais sistemático, mais aprofundado, a partir dos problemas que temos aqui. Criar centros de estudo mais aprofundado em que esteja presente a problemática latino-americana. Como na própria Bíblia se faz sempre: ler a Palavra a partir dos problemas que se vive.

Outro desafio é o da espiritualidade. Dos pontos de vista econômico, político, social, eclesiástico (religioso) sentimos estar numa época cujo futuro não é cor-de-rosa. Necessitamos de motivações profundas para poder atravessar o deserto, que costuma durar quarenta anos.

Há necessidade de ler a Bíblia para que ali­mente em nós a sede de espiritualidade para a comunidade e para as pessoas. A busca de Deus para que ela seja acentuada e aprofundada.

Um terceiro desafio, sobretudo para o CEBI, e extensivo a todos, é a dimensão ecumênica da Palavra de Deus. A Palavra une todas as confissões cristãs: católicos, luteranos, metodistas, presbiterianos, batistas, anglicanos, assembleia de Deus. Todos temos em comum a Palavra de Deus. O que aparentemente nos divide, deveria ser fator de união.

Que a leitura dessa Palavra seja feita em função da vida do povo que sofre.

 

VP: A Igreja é gestada e alimentada pela Palavra, mediante os caminhos que o Espírito Santo aponta, na escuta do clamor dos empobrecidos. O que acontece quando os agentes de pastoral deixam de ouvir esse clamor?

Frei Carlos Mesters: Se não escutarmos o clamor, não acontece o êxodo. O êxodo começou porque Deus escutou o clamor. Foi a vocação de Deus. Deus escu­tou, desceu, olhou, conheceu e chamou Moisés. E, assim, o clamor do povo é o outro lado do apelo de Deus. Não acontece a libertação se nós não escutamos o clamor.

 

VP: Há ligação entre a leitura popular da Bíblia com a Patrística?

Frei Carlos Mesters: Patrística quer dizer a leitura que na história da Igreja os Padres, os pais da Igreja, fizeram. Existe muita ligação. Há uma atitude presente na Igreja, na Tradição, diante da Palavra de Deus: atitude interpretativa, iniciada já antes do Novo Testamento e que foi seguindo, seguindo, seguindo… como um rio que, aos poucos, foi se tornando subterrâneo, reaparecendo hoje nas CEBs. A leitura que o povo faz da Bíblia, de maneira muito singela, sem o rótulo, é profundamente fiel a essa atitude que os Santos Padres chamavam simbólica. Os Santos Padres ligavam a Bíblia com a vida. Liam a Bíblia a partir da comunidade e da realidade.

Isso é o que caracteriza a leitura que se faz nas comunidades. Há uma profunda continuidade. É uma maneira mais integrada de ler a Palavra de Deus. Nesse sentido, a leitura que o povo está fazendo da Palavra de Deus é profundamente fiel à Tradição.

 

VP: Como conjugar a leitura popular da Bíblia com a “nova evangelização”?

Frei Carlos Mesters: A “nova evangelização” é nova porque começou há pouco tempo, sobretudo aqui para nós, a partir do Vaticano II e de Medellín. Há “nova evangelização” quando os pobres se tornam boa-notícia: A “nova evangelização” só será boa e evangelho (boa-nova) e será nova se for boa-notícia para os pobres.

Hoje se fala muito em “nova evangelização”. Se os pobres não se reconhecerem nisso, aí a pessoa que diz estar fazendo “nova evangelização” deve fazer revisão, porque Jesus falou: “eu vim trazer o evangelho para os pobres”. Essa é a característica: se não for boa-notícia para os pobres, provavelmente também não será a boa-notícia de Deus.

Outra coisa, com relação à boa-nova, “nova evangelização”: o evangelho (boa-nova) nos diz que temos que imitar Deus. E o que Deus mais fez foi ser criativo, criador. A “nova evangelização” deve produzir criatividade no povo, diante dos grandes desafios que temos pela frente. Quando a evangelização amansa o povo e não o leva a ser criativo, não é mais evangelização.

 

VP: Uma mensagem final aos agentes de pastoral que nos acompanham por meio desta revista.

Frei Carlos Mesters: O que digo é para mim também. Quem sou eu para dar conselhos aos outros?! Mas diria assim: Vamos confiando na Palavra de Deus, lendo-a a partir dos problemas bem concretos do povo e a partir de uma comunidade viva, tentando assim escutar o que a Palavra de Deus nos fala hoje, sendo fiéis.

 

Pe. Darci Luiz Marin