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Publicado em número 153 - (pp. 29-33)

Esperança sustentando a fé sem medo!

Por Pe. Darci Luiz Marin

(Entrevista com Zé Vicente)

José Vicente Filho (Zé Vicente), nascido em 1954, em Orós, Ceará, filho de pai paraibano e mãe cearense, terceiro entre nove irmãos, é autor de centenas de letras de músicas cantadas por milhares de comunidades cristãs do Brasil e da América Latina. Sua primeira poesia diz:

“Venho do sertão

quente, pegando fogo

venho lá da roça do meu Ceará.

Tenho esperança

sou caboclo novo

sou gente do povo

que vive a lutar.”

Essa foi a intuição que Zé Vicente teve de sua origem. Lembra a dureza da seca de 1970, “onde eu, meu irmão e meu pai trabalhamos numa frente de serviço, fazendo uma estrada que não era para nada, como tantas e tantas outras feitas na época da seca no Nordeste, mais para juntar trabalhadores. Aquela experiência marcou profundamente e me sacudiu para ser poeta”. Passamos, a seguir, a nossos leitores o testemunho que colhemos desse poeta, tendo presente o tema que nos ocupa neste número.

 

VIDA PASTORAL (VP): Como poeta do Nordeste brasileiro, qual sua ótica da realidade brasileira onde milhões de pessoas estão sendo obrigadas a abandonar os campos para migrarem em direção às periferias das cidades?

Zé Vicente: Milhões de nordestinos, quando a seca vem, não têm onde trabalhar, não só porque a chuva falta, mas porque a terra foi cercada, primeiro, na mão de poucos latifundiários. A cerca passa a controlar tudo e a gente fica do lado de fora. Em termos de seca os fazendeiros conseguem as coisas para seus latifúndios, enquanto os pobres têm que trabalhar nas obras para favorecê-los, qual o futuro para estes?

Eu sou de um lugar onde havia mais ou menos trinta famílias, um sítio, e desse sítio hoje só existe meu pai e minha mãe. As famílias mais antigas foram embora. É essa a situação: latifúndio, falta de assistência no campo, miséria que cada vez mais se alastra, sem uma política para o setor.

A partir dessa ótica, olho para o resto do país. Aquilo é o sinal do que acontece no Brasil hoje. Toda a população de pequenos agricultores e de trabalhadores sem-terra vem sendo forçada aceleradamente a deixar seu lugar e ir para as cidades. Nas cidades há mais possibilidades de água, escola, luz… Todas essas vantagens que no campo são negadas e que nas cidades pensa-se serem mais favoráveis.

A partir disso percebe-se que a política atuante no país vai forçando a população a correr para as cidades; porque é lá que se concentra alguma vantagem. Mas há também muita ilusão, porque quando a gente chega na beira da cidade, nosso caso, a gente vê um grande campo de miséria.

Toda essa situação é bastante produzida e tende a piorar.

 

VP: Você vê perspectiva de mudança nesse quadro para os próximos anos?

Zé Vicente: Eu vejo. Não porque seja uma coisa dada de graça pelo poder montado no país. Sabemos que o poder político em todo o Brasil segue o modelo capitalista, que produz para exportar. E o povo pode morrer de fome. O Brasil é, por exemplo, um dos maiores produtores mundiais de grãos. Aí perguntamos: onde estão esses grãos? Aí vemos que todo esse poder se ajusta para que não haja mudança. O que aconteceu nas últimas eleições presidenciais no país? Toda uma reação dos políticos dominantes e da classe dominante, para manterem na mão o domínio. A mesma política que favorece aos mais ricos e deixa os pobres sem nada. Desses o que podemos esperar? Nunca o Brasil se viu tão brutalmente dividido entre classes como no momento em que estamos.

Tudo o que há de mudança favorável aos trabalhadores, aos pobres, aos sem-terra, aos lavradores, aos favelados… creio que não vem de lá. Vem porque os pobres se organizam e já estão começando para poder reivindicar, firmar o pé e conquistar a terra, fazendo greves para conseguir melhorias, no salário, nas escolas etc. Os direitos, as mudanças e as transformações são produzidos a partir da classe oprimida e explorada. Um bom sinal é que cada dia há mais conscientização disso. Muitos de nós, nordestinos, por exemplo, descobrimos que a miséria do Nordeste não é fruto da seca que a natureza determina quando não tem chuva, não é castigo de Deus como aprendemos até pelas religiões, mas é produto do modelo social. Essa descoberta é uma escola que a seca nos ensinou. É uma lição nova. E quando a gente descobre que tem que conquistar a terra e o pão a mudança surge.

 

VP: Qual a mensagem que você procura passar nas letras de suas músicas, cantadas por milhares de comunidades em todo o Brasil e também em alguns países da América Latina?

Vicente: Eu me considero um místico. Sou de uma família profundamente religiosa. Meus pais casaram em 1951 e no dia que eu nasci, no mês de São José (março), meus pais contam que ainda naquele dia, às 6 horas da tarde, rezaram a novena. Foi esse ambiente que determinou minha cultura religiosa. Essa raiz deu-me uma sensibilidade grande para sentir que, quando estavam nascendo as CEBs, era preciso começar a organizá-las também em nosso lugar. De 1970 para cá reconheço-me como uma pessoa que participou de todo esse processo das CEBs no Brasil, e de sua pastoral popular.

Essa experiência fez-me cada vez mais um místico que tem que cantar três coisas fortes:

a) A consciência da . A fé do meu povo. A fé no Deus da vida, que tem nome, é libertador, que tem lugar: o dos oprimidos, dos pobres e explorados. Não me entendo acreditando num Deus que não tem lugar, em cima do muro, das instituições estabelecidas sobre a miséria do povo, sobre o medo, sobre a falsa consciência, sobre a falsa moral que não reconhece o valor da vida, mas defendo apenas o valor de sua existência. Esse é um primeiro aspecto daquilo que eu canto.

b) A luta do meu povo pela vida. Eu aprendi a lutar desde os 4 anos, na roça. De lá para cá foi sempre assim. Nas épocas de seca, quando já não estava mais trabalhando na roça, estava nas ruas, trabalhando nos bairros e também presente nas manifestações dos trabalhadores por terra e por trabalho. Lembro-me em Crateús, onde vivo desde 1981, todos na praça atrás de comida e as autoridades chamando a polícia para cercar a praça. Aí pensamos: o que fazer para ajudar nossa resistência? Começamos a inventar versos em cordel, cantos.

 c) Acreditando em Deus, cantando a luta. Tenho que cantar também um projeto de futuro. O futuro que eu entendo é o da libertação. Por isso tudo o que posso cantar como fé no meu Deus e como luta do meu povo, posso fazê-lo numa esperança, a utopia.

A utopia aparece em duas faces: a negação do sistema de morte e a canção da alegria pela vida que queremos conquistar, que vamos gerando dia a dia, passo a passo dolorido do povo na história.

 

VP: Há pouco você mencionou, ainda que de passagem, as CEBs. O que você acha das CEBs local­izadas nas cidades hoje?

Zé Vicente: A experiência que eu vivi das CEBs foi mais rural. Na realidade das cidades, entendo que a experiência de CEBs é mais recente. Penso que as CEBs nas cidades têm conotações e faces próprias. Muitas vezes nas cidades temos categorias de trabalhadores diferentes. Não é como no campo, onde todos trabalham na terra. As CEBs urbanas devem ter muita sensibilidade, sobretudo os animadores de comunidades, para perceberem quais os espaços que se abrem.

O que, muitas vezes, é determinante para a vida de uma CEB são os interesses afins da luta pela água, pela moradia, pela casa… São experiências diversificadas. Penso que aí a mística, a celebração que alimenta, que dá vida, que dá mobilidade, tem que ser diversificada.

Temos desafios muito próprios nas cidades. Por exemplo, os meios de comunicação, sobretudo a televisão. Muitas vezes vai-se à celebração, à reunião, depois do jornal e da novela. São desafios colocados e as CEBs urbanas têm que enfrentar e trabalhar esses dados novos.

 

VP: As condições de sobrevivência nas cidades (sobretudo nas grandes) não são boas para a imensa maioria, da população. Você vê ligação entre esse fato e a violência presente nas cidades?

Zé Vicente: Sem dúvida. Cada ano que venho a São Paulo (a entrevista foi feita nesta cidade) — e no começo foi espontâneo, por amizade do pessoal da pastoral carcerária, agora faço-o de forma mais planejada — visito a casa de detenção. Pode-se sentir lá, onde vivem quase 8.000 prisioneiros, a presença de toda uma situação que reflete a violência brutal crescente em nosso país.

Os despossuídos da terra no campo são empurrados para as cidades. Chegando nelas não tendo moradia, não conseguindo trabalho, gerando filhos que vão ficar por aí sem ter pais que os acompanhem e lhes deem carinho, escola, comida… só pode provocar violência. Aliás, isso já é violência estabelecida, institucionalizada. Em nosso país ela aparece com a cara do crime, do assalto, do estupro, da droga… é alimentada pela violência sutil que não podemos pegar, denunciar, ver tão claro. E, no entanto, ela está aí!

 

VP: Existem dificuldades pastorais para fazer frente a toda essa problemática que você está levantando. A seu ver quais os pontos mais fracos na pastoral urbana hoje? Como enfrentá-los?

Zé Vicente: De modo geral estamos num impasse. Em primeiro lugar, para enfrentar a realidade, temos que ter clareza dela. E muitas vezes a formação dos agentes de pastoral é ainda muito voltada para o campo, ou voltada para uma sociedade não tão explosiva como a que estamos vivendo.

Qual o jogo que produz esse amontoado de gente, a civilização urbana no país?

Não há modelo que dê atenção ao campo, que discipline o progresso, que pense a civilização de uma forma diferente na vastidão de um país que tem espaço para todos. Entender isso é a primeira exigência para uma pastoral urbana.

Mas é preciso fazê-lo com dois olhos: um olho que faz a leitura da sociologia e da nossa história do lado dos oprimidos. Não da história dos grandes especialistas que tantas vezes olham a realidade de cima para baixo. O outro olho é o da fé. A Bíblia nos traz a realidade vivida pelo povo hebreu, a experiência que esse povo fez de Deus, a experiência de um povo que tem algumas coisas da cidade para contar, mesmo que seja de outra época, vem daí uma luz que avança na reflexão teológica.

Outro ponto: não ter medo. Tenho a impressão que, estando dentro das instituições, se tem medo de arriscar. Quem tem medo de arriscar, como pode entrar numa realidade de guerra? Nós vivemos numa realidade de conflitos e confrontos. Os agentes de pastoral nas cidades têm que se arriscar com coragem e com fé, sabendo que muitos poderão até ficar pelo caminho, como já vem acontecendo no campo hoje.

Temos que nos arriscar e perder o medo em nome da fé, em nome do Deus da vida.

 

VP: Nós não estamos isolados no mundo. O Brasil é um dos países da América Latina, chamado por um de nossos bispos de “a pátria grande”. Quais para você as semelhanças entre esses países?

Zé Vicente: Juntamente conosco, neste imenso e gigante Brasil — “triste e lindo Brasil” como diz Toquinho numa de suas músicas — os latino-americanos têm raiz indígena. Temos a marca dos negros no passado. Do sangue negro que ajudou a construir as nações latino-americanas. Temos também uma mesma experiência de opressão histórica. Estamos para celebrar os 500 anos em que todos levamos nos corpos as marcas da colonização opressora. Outra face comum entre nós são os movimentos de libertação, essa sede de libertação. As comunidades, a fé e a teologia da libertação como fermento novo que alimenta a caminhada. É isso que se percebe nos países que formam a América Latina.

 

VP: O que você gostaria de dizer aos jovens que, pelo Brasil afora, buscam implantar a justiça, onde todos possam viver com dignidade e alegria.

Zé Vicente:

“Punhos no ar, sonho novo

nós somos semente do povo

queremos ser livres, amar

trazemos no peito a esperança

a história na mão, confiança

que um dia nós vamos ganhar.”

 

É isso que eu digo no baião do povo jovem e é meu pensamento sobre a juventude. Essa juventude que está dentro da gente. Não é uma juventude romântica. É uma juventude sofrida, que bebeu no fundo do poço o fel que a ditadura militar implantou.

A juventude que vem dessa experiência traz no olho alguma marca de profundo. Muitas vezes fico imaginando o que é minha juventude, sem poder dizer o que é. Imagino a juventude do barulho: da festa e da alegria, da passeata e da liberdade. Nós, jovens, somos a alma da nação no sentido de que podemos manifestar todos os sentimentos profundos dos nossos pais e todas as rebeldias do nosso futuro. E quem viveu a experiência de um poder repressivo, isso ficou entalado na garganta. Por isso eu digo: “punhos no ar, sonho novo”. Desejo que se viva com muita garra!

Escrevi também, há algum tempo:

“Ah violência veneno

derramada transbordante

no copo da juventude

cegando nosso futuro.”

 

Para fazer frente à nova situação, diante da política velha, dos velhos mandantes, temos que ter muita garra e fé. Temos que ter consciência do grito que temos que dar, do canto que temos que cantar, e, ao mesmo tempo, muita sagacidade, olho vivo e aberto! Escola, trabalho, alegria, bandeira de todos os dias! Sem medo! O medo imobiliza.

Muitas vezes a gente aprende desde criança, dos pais, dos professores, do padre: não faça isso que te faz mal! Acho que a juventude tem que aprender a correr riscos para poder perder o medo. É do risco, da ousadia de ser jovem, que podemos construir alguma coisa nova. Temos que ajudar a encontrar saídas. Se não o fizermos, nossos filhos jogarão em nossa cara o que não fizemos.

Ano passado ouvi, na Nicarágua, o testemunho de um jovem de 13 anos, cujo pai lhe disse: você não pode ir para as fronteiras porque corre o risco de ser morto. O jovem lhe respondeu: eu vou porque no seu tempo você não foi! É isso que temos hoje. Se não dissermos presente, o futuro nos cobrará.

 

VP: A partir de sua experiência, qual a linguagem e a prática pastoral que mais atrai os jovens hoje? O que falta para os padres, irmãs e agentes de pastoral terem essa linguagem e essa prática?

Zé Vicente: O que vou dizer pode contrariar pessoas. Para mim a questão é: qual Igreja?

Com tristeza vejo que nossa geração não quer ir mais à Igreja Católica. Por quê? Porque vemos que nossa Igreja é, muitas vezes, a Igreja do discurso e não a Igreja do testemunho. Muitas vezes setores da Igreja, — padres, irmãs, bispos — dizem: temos que nos comprometer, lutar pela libertação, lutar pelo Reino de Deus aqui. Quando chega o momento mais crucial da História de ter que testemunhar isso — na prática político-partidária-eleitoral, na prática da luta pela terra — fica-se reticente, não tomando posição. Mas, afinal, o que fazer? O Reino de Deus é abstrato?

É triste assistir a uma Igreja que se divide. Uma Igreja que manda nossos profetas calarem a boca. Em nome de quê? Autoridades expulsando, censurando os que, no entender da juventude, são os mais autênticos. Por quê? Porque estão na luta do dia a dia, falando a linguagem dos pobres, cantando a esperança dos pequenos, porque pronunciam na linguagem de hoje o evangelho de Jesus Cristo com todas as letras.

Tem muito jovem virando as costas para a Igreja, sem querer virar as costas para Jesus Cristo. Nosso problema não é Jesus Cristo. Ele sempre entusiasmou a juventude. Nosso problema é com esse medo, com essa ambiguidade, com essa divisão presentes na estrutura da Igreja e que assustam a juventude.

Falei aqui várias vezes do medo, porque estamos vivendo hoje a síndrome do medo. Medo de amar, de falar a verdade, de estar presentes na caminhada dos que sofrem, de dizer onde estão os opressores do nosso povo, de estar do lado da caminhada dos oprimidos. Esse medo afasta.

 

VP: Uma das letras de recente poesia sua diz: “eu vi a lua nova cochichando / aos ouvidos dos migrantes da alvorada / e as estrelas com os meninos combinando / o tempo certo para a grande revirada”. Toda a América Latina, inclusive o Brasil, ingressa nos anos 1990 sem muita perspectiva nesse sentido. Você continua mantendo essa esperança?

Zé Vicente: A esperança não nasce lá de cima. Vem de baixo…

Há esperança, sim. Ela é meu ato de fé. Cada dia não posso falar de dor sem falar de esperança, não posso falar de morte sem falar de vida, não posso falar de ódio sem falar de uma imensa energia e possibilidade de ternura que existe no coração do povo. Vivo disso! No dia em que isso não mais existir em mim, posso aquietar-me num canto porque perdi a razão de viver. Eu sou de um povo provado, nordestino, camponês e empobrecido. Um outro poema meu diz:

“Sonho meu

sonho sonhado

na correnteza da vida

por essa gente sofrida

mas cheia de confiança

provada na esperança

de ver meu sertão mudar

novinho, transfigurado

parecido com o céu

projeto de Emanuel

Deus do povo encarnado.”

É assim que eu vivo! É nisso que eu acredito!

 

VP: Para concluir, pediríamos uma mensagem em forma de verso

Zé Vicente:

“Urgente se faz

afagar a vida ferida como está.

Cantar uma cantiga, uma canção

Cantiga simples de reanimar, de refazer

de revirar e de reacender a chama

que no peito do povo tem sede de gás.

Cantar pro vento levar

pra noite guardar

pra animar o sonho

e acordar o sono.

Urgente se faz

afagar a vida ferida como está.

Convocar os poetas

do pão e das cores

da palavra nova

e das canções de rebeldia.

Todos, em assembleia permanente

até deixar que seja aberta a saída

que numa noite qualquer nos fecharam.

Deixar correr toda lágrima

deixar escorrer todo ódio

que nas derrotas impostas

nos forçaram engolir.

Urgente se faz

afagar a vida ferida como está.

Chamar quem se escondeu

lembrar quem se esqueceu

e até dar uma chance a mais a quem negou.

Só aos traidores será negado ver

a síntese acontecer

a vida reviver.

Urgente se faz!”

 

Pe. Darci Luiz Marin