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Publicado em número 174 - (pp. 2-5)

Família: fonte de esperança e de vida

Por Pe. Darci Luiz Marin

(Entrevista com D. Antônio Celso de Queiroz)

D. Antônio Celso de Queiroz nasceu em Pirassununga (SP), em 1933. Foi ordenado sacerdote em Comillas, Espanha, em 17/4/1960. Recebeu a ordenação episcopal em 14/12/1975. Desde então é bispo auxiliar da arquidiocese de São Paulo (região Ipiranga). Membro do CEP da CNBB de 1979 a 1987. Encarregado da Linha 1: Vocações e Ministérios (CNBB nacional). Eleito Secretário-Geral da CNBB para o período 1987 a 1991 e reeleito para o período 1991 a 1994. Gentilmente D. Celso, como é chamado, nos concedeu esta entrevista em preparação à Campanha da Fraternidade de 1994 que, a seguir, reproduzimos.

 

VIDA PASTORAL (VP): Quais os principais objetivos da Campanha da Fraternidade de 1994 (CF/94)?

D. Celso: Como toda Campanha da Fraternidade, o primeiro objetivo da CF/94 é ajudar as comunidades cristãs a viverem a conversão quaresmal. Enquanto Campanha da Fraternidade sobre a Família, ela visa levar todos a tomar consciência dos graves desafios que se apresentam à família hoje, a redescobrir os valores perenes da vida familiar à luz da Revelação, e a lutar por condições sociais e políticas que possibilitem à família realizar sua missão.

 

VP: Como podemos fazer frente às situações de desagregação da família, provocadas pela ausência do essencial (saúde, educação, moradia digna…) para a manutenção da estrutura familiar?

D. Celso: Aí temos de trabalhar em duas frentes. A primeira busca a formação das pessoas, dos jovens, dos casais. Essa formação visa ajudá-los a crescer na consciência dos verdadeiros valores da vida, do amor, da convivência familiar. A segunda frente é a luta por criar condições econômicas e sociais de que a família necessita. Sem lar, sem emprego, sem saúde, sem escola não é possível esperar famílias estáveis e equilibradas. Aqui a pastoral familiar exige posicionamentos sociais e políticos que ultrapassam os limites do ambiente familiar e visam a sociedade brasileira como um todo.

 

VP: Qual a influência dos Meios de Comunicação Social (MCS) sobre a família em nosso país?

D. Celso: Ela é muito grande. A família brasileira está sendo moldada de fora para dentro pelos MCS. A Televisão, sobretudo, tem imposto padrões frontalmente contrários aos valores tradicionais da família vividos pelo povo. Não se trata aqui, é claro, daqueles valores da família patriarcal rural. Esses necessariamente têm de ceder lugar aos valores modernamente presentes, sobretudo, no meio urbano. Mas a passagem de uns para outros está sendo imposta, sobretudo à juventude, sem nenhum discernimento quanto àquilo que está na base do amor verdadeiro, do dom de si ao outro cônjuge e aos filhos. O irrealismo leva os jovens a desejar ardentemente um tipo de vida irrealizável economicamente, moralmente vazio e frustrador. O clima de violência e de disputa sexual sem nenhum conteúdo ético é destilado no dia a dia das novelas e outros programas. Por esses caminhos a família não tem vez. É tudo estranho a um ambiente familiar sadio como lugar do diálogo, do crescimento e da realização pessoal. Os pais, os padres e educadores que têm acesso ao coração dos jovens e dos casais constatam, cada dia, a devastação causada.

Acredito que o desenvolvimento e a difusão de novas técnicas de, comunicação vão superar essa situação. Hoje a televisão se impõe às pessoas. Amanhã, com a TV a cabo e os vídeos, as pessoas poderão se impor à Televisão escolhendo os programas para si e para seus filhos. O vídeo é cada vez mais usado; vídeos educativos, incluindo catequéticos, e vídeos de distração sadia. Alguém poderia dizer que isso é só para os ricos e classe média. Não acredito que assim seja. Anos atrás o rádio, o gravador e a Televisão eram um luxo. Hoje eles estão na casa do pobre e nos barracos das favelas.

 

VP: O que fazer para aproximar mais a prática dos batizados, especialmente no que se refere à vivência da sexualidade e do matrimônio, com a doutrina da Igreja?

D. Celso: É um longo processo de educação que exige lucidez e paciência. O clima geral não favorece, mas o coração humano, feito para amar, tem exigências mais fortes. É preciso acreditar na bondade das pessoas e investir no processo com todos os meios. Aí a família e a comunidade cristã têm um papel primordial. É preciso muito diálogo e compreensão. Mas, ao mesmo tempo, é preciso sinceridade e firmeza, e, em tudo, contar com a graça de Deus. Nossa catequese e nossa pastoral da juventude já deram passos importantes numa educação da fé que não foge dos problemas concretos da vida, mas reflete sobre eles à luz da Palavra de Deus. Nunca foi fácil educar para os valores verdadeiros. Essa questão pode parecer mais complicada em nossos dias por causa do alarde das posturas opostas, mas ela sempre foi árdua mesmo nas épocas em que os valores morais pareciam mais conaturais na passagem de pais para filhos.

 

VP: Quais os principais critérios que deveriam estar presentes na vida de um casal cristão para o planeja­mento familiar?

D. Celso: O planejamento familiar não deve ser confundido com atitude antinatalista. Ele é reconhecido pela Igreja como necessário. O critério fundamental é a atitude de amor. Todo amor é fecundo. Os pais devem planejar ter os filhos que seu amor é capaz de chamar à vida e a educar como adultos sadios e conscientes. Essas condições variam de casal para casal porque incluem dados objetivos de saúde dos pais, de trabalho, moradia etc. Mas fica de pé a exigência de um amor fecundo e generoso. Sob esta luz o problema dos métodos é importante, mas não é o principal. A Igreja põe a grande força de seu ensinamento na postura fundamental do amor generoso. Fiel a seu compromisso com o amor generoso, a Igreja ensina que os métodos naturais, quando aplicados com amor, se revestem de conteúdos éticos que os métodos artificiais não têm. Isso porque os métodos naturais envolvem as pessoas, exigem delas posturas e decisão pessoal. Eles supõem a vontade das pessoas, o respeito ao outro, a renúncia aos ímpetos indiscriminados da sexualidade. Eles não possibilitam simplesmente o planejamento familiar, mas educam a sexualidade para dentro e fora do lar. Colaboram para o autodomínio e expressão do ato sexual como entrega amorosa. Ao contrário disso, os métodos artificiais são meramente mecânicos, externos à decisão interior da vontade. Facilmente eles colaboram para a banalização da vida sexual com as consequências negativas que isso traz. A Igreja, porém, mantendo firme sua posição de princípios, sabe que não está diante de uma situação simples na vida concreta dos casais. Aqui de novo, voltamos à questão da educação e da grande dificuldade que certos casais sem condições normais de vida enfrentam. A Igreja sabe ensinar com firmeza, mas sabe também ter misericórdia e compreensão diante de situações humanas difíceis. É certo, porém, que, se não fossem os imensos interesses econômicos que existem por detrás do comércio dos contraceptivos, a própria ciência já teria pesquisado e certamente encontrado outros métodos naturais de aplicação mais simples e mais acessível a todos.

 

VP: Enquanto agentes de pastoral, como poderíamos agir frente à problemática da esterilização e do aborto?

D. Celso: A esterilização e o aborto como métodos anticoncepcionais são totalmente inaceitáveis. A esterilização só é aceitável quando motivada por grave e incontornável problema de saúde. O aborto diretamente praticado é inaceitável sob qualquer hipótese. Trata-se de tirar a vida de um inocente, e isso é totalmente contrário ao plano de Deus. Nesse ponto o cristão tem de ser radical. Mas não basta combater o aborto. É preciso lutar para suprimir tudo aquilo que o faz parecer uma solução diante de uma nova vida não desejada. É preciso combater o permissivismo e a banalização do sexo. É preciso incutir às famílias espírito de compreensão cristã para com seus filhos envolvidos, eventualmente, com uma concepção do casamento. É preciso garantir estabilidade no emprego à mulher gestante. É preciso assumir junto a falha dos que conceberam sem condições. Para os casais é necessário todo o apoio e aconselhamento diante de uma gravidez não desejada ou de risco. Nessas situações, as motivações de fé e de confiança na Providência têm de ser inculcadas com bondade e firmeza. A experiência mostra que os filhos que num primeiro momento foram tidos como que não devendo nascer, acabam sendo a alegria dos pais e a renovação de todo o ambiente de família.

 

VP: O que o senhor diria a respeito das famílias em que um dos membros do casal tem de ser mãe e pai ao mesmo tempo?

D. Celso: É uma situação cada vez mais frequente. As estatísticas mostram que, nos Estados Unidos, 50% dos filhos vivem com apenas um dos pais, geralmente com a mãe. É uma situação apavorante se olharmos o futuro de nossa sociedade. Mas há sempre a “chance” e a graça poderosa de Deus. O pai, e mais frequentemente a mãe, nessa situação precisa se desdobrar no amor. O coração das pessoas, sobretudo quando amparados na fé, é capaz de um amor que a vida normal desconhece. Mas fica também o desafio para os casais amigos e para a comunidade. Esta é também questionada na qualidade de sua vivência fraterna.

 

VP: No sistema estrutural em que vivemos, a maior parte das pessoas aprendem a valorizar a realização profissional (independência econômica), e só depois a solidariedade com o outro (incluindo nesta a decisão de protelar ao máximo os filhos). O que dizer dessa atitude dos nossos dias?

D. Celso: O individualismo é uma das marcas de nosso tempo e da cultura da modernidade. Partindo de uma verdade sadia — o valor de cada pessoa como algo irrepetível — ele, com frequência, se desdobra em atitudes destrutivas da felicidade da própria pessoa. Então, valores como vencer na vida a qualquer custo, chegar a uma cômoda situação econômica, buscar a realização profissional como primeiro objetivo, acabam destruindo a convivência familiar, o diálogo, a verdadeira realização pessoal, a solidariedade com os demais, a participação no empenho por um mundo mais justo. Aqui se aplica a Palavra de Jesus: “Quem quer salvar sua vida vai perdê-la”. Quem se agarra a si mesmo deixa a felicidade passar…

 

VP: Quais as principais linhas para uma pastoral familiar no Brasil Hoje? A pastoral familiar não está voltada somente para as famílias de classe média e rica?

D. Celso: A verdadeira pastoral familiar é muito ampla. Quem luta para que o povo tenha moradia, saúde, emprego e salário decente já está fazendo pastoral familiar. Quem luta pela educação de qualidade para crianças e jovens, igualmente (todos os que lutam pela vida, por uma sexualidade sadia, contra o aborto e a mentalidade intimista), são agentes da pastoral familiar.

Mas não basta. A pastoral familiar é feita em nossas comunidades à medida que propicia o aprofundamento da Palavra de Deus e a celebração da fé às famílias dos que participam. A metodologia dos grupos de família que se reúnem para a novena do Natal, o mês vocacional, o mês da Bíblia e das missões e a Campanha da Fraternidade com as celebrações nas casas é uma excelente pastoral familiar. Mas há ainda o trabalho da preparação de noivos para o casamento; há os cursos e encontros, há a celebração das semanas da família, os centros de orientação familiar. E há também o empenho dos movimentos familiares e de casais. Eles têm a grande força de ser assumidos e dirigidos pelos próprios casais, ajudando-os a vivenciar mais explicitamente as riquezas do sacramento do matrimônio. Se é verdade que até agora eles têm uma fisionomia mais de classe alta ou média, é verdade também que eles se abrem aos problemas sociais da população.

De outra parte nossa pastoral popular, a que se realiza nas comunidades frequentadas pelo povo pobre, está cada vez mais voltada para a família. Bastaria lembrar, por exemplo, os grupos de rua e a pastoral da criança. Afinal a pastoral familiar está um pouco presente em toda a parte, porque em toda a parte ela cuida da vida cuja fonte é a família.

 

VP: Qual a mensagem que os sacerdotes e agentes de pastoral poderiam reproduzir, num gesto de muita esperança, nesta CF/94?

D. Celso: A família é sempre fonte de esperança porque é a fonte da vida. Se a “vida Severina” vale a pena porque é vida, a “família Severina”, mesmo em meio ao mangue da miséria social e moral, continua valendo a pena porque é fonte da vida. Se no meio de nosso povo abatido pela injustiça, pela violência e pelos valores de morte, cada dia um homem e uma mulher decidem começar de novo a aventura do amor e da família, é porque essa aventura é mais forte que qualquer empecilho. Se o próprio Filho de Deus quis nascer de uma família para começar aí a redenção do mundo, é porque a família é o primeiro veículo da graça que salva. A CF/94 não tem medo de mostrar as dificuldades; não foge das chagas e feridas. Mas ela também não para aí. A CF/94 quer ser para todas as famílias a oportunidade de redescobrirem sua beleza e grandeza. Quer ajudar nossa sociedade brasileira a reencontrar a força original que brota da família e se expande por todo o corpo social. A CF/94 quer ajudar a família a viver sua páscoa, participando da esperança e da vida nova da ressurreição.

 

Pe. Darci Luiz Marin