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Publicado em número 154 - (pp. 15-21)

Fé encarnada na realidade

Por Pe. Darci Luiz Marin

(Entrevista com Pe. Juvenal Arduini)

Juvenal Arduini é sacerdote, professor universitário e escritor. Professor de Filosofia Geral e Antropologia Filosófica na Faculdade de Filosofia Santo Tomás de Aquino. Foi professor de Psicologia Médica na Faculdade de Medicina do Triângulo Mineiro, de Sociologia na FIUBE e Faculdade de Ciências Econômicas do Triângulo Mineiro. É membro da Societá Internazionale Tommaso D’Aquino (Roma); International Society for Metaphisics (Washington); World Phenomenology Institute (EUA); Associación Católica Interamericana de Filosofia e da Sociedade Brasileira de Filósofos Católicos; Associação dos Escritores de Minas Gerais. Além de artigos em revistas e jornais, publicou os livros: “O Marxismo”, “Homem-Libertação”, “Estradeiro”, “Horizonte de Esperança — Teologia da Libertação”, “Destinação Antropológica”. Tendo sido convidado para participar deste número de “Vida Pastoral”, aceitou prontamente, adiantando-nos: “Fiz o trabalho com empenho e amor, com a esperança de que possa ser útil aos leitores de ‘Vida Pastoral’”.

 

VIDA PASTORAL (VP): Nos seus livros desenha-se sempre um quadro de esperança para a humanidade. Sob que ótica o senhor está vendo este início dos anos 1990?

Juvenal Arduini: Vejo a realidade pessimista com o olhar otimista da esperança. A era 1990 ainda estará marcada por muitas dificuldades e terá sérios problemas a solucionar. Continuaremos a ter conflitos e muita miséria, porque a atual realidade nefasta não muda automaticamente com a chegada da nova década.

É preciso ver a realidade como é, sem piorá-la nem suavizá-la. Há confrontos bélicos, intervenção estrangeira nos países, violências interétnicas, e pobreza devastadora na América Latina, na África e Ásia. O Brasil está afogado em deprimente miséria, que se tem agravado. Temos 47 milhões de brasileiros penando em hedionda pobreza. Eles constituem, sozinhos, vasta nação que é maior do que a população nacional em 140 países no mundo. É maior do que as populações somadas do Uruguai, Paraguai, Chile, Honduras, El Salvador, Nicarágua, Bolívia e Panamá. Temos aí estarrecedor problema nacional que continuará a desafiar-nos.

Felizmente, alastra-se o movimento que procura mudar o destino das pessoas e dos povos. Muitas áreas da humanidade estão se rebelando contra situações desumanas, e tentam fraturar esquemas políticos, econômicos, sociais e culturais que as comprimem. Exemplo contundente foi a reviravolta do Leste europeu que alterou a constelação socialista. Estamos tendo a reunificação das duas Alemanhas, e, recentemente, tivemos a reunificação do Iêmen do Norte com o Iêmen do Sul que estavam separados há mais de mil anos. No Brasil, a grande votação obtida por candidato operário a presidente da República, está a dizer que muita coisa já mudou neste país. Fato notável é que as mudanças estão sendo operadas com participação de grandes massas populares. Verifica-se que a esperança ainda pulsa forte nas artérias da humanidade debilitada.

Há que evitar a esperança mecanicista que aguarda soluções automáticas; a esperança transferencial que confia a outros a responsabilidade da práxis histórica; a esperança embalsamada que é insensível aos clamores do povo; a esperança fraudulenta que promete maravilhas aos “descamisados”, e, depois, impinge-lhes o menor salário mínimo desde 1940.

Esperança, “Elpis” no grego, é energia fundamental da humanidade. Os filósofos que a colocavam como sustentáculo da vida eram chamados “elpístikos”. Esperança é forma forte de viver. É lúcida obstinação histórica que empreende, insiste, luta, ajunta forças e não volta atrás. A esperança cresce na ambiência do sofrimento, da angústia, da marginalização, do exílio e das regiões desoladas. “Retrato do Dr. Gachet”, de Van Gogh, foi visto por Paul Gauguin como a obra que melhor captou o desconsolo de nosso tempo. É nesse desconsolo, é no exílio de Ezequiel, que se planta a esperança. A melhor esperança não se apoia em estacas mas finca estacas.

Alguns descoroçoam porque o capitalismo capturou dividendos com as mudanças do Leste europeu. Mas este foi o passo da rebelião da liberdade, que não aboliu a via socialista. Agora está em curso outro passo que é a rebelião da justiça, que pedirá contas ao capitalismo por tanta injustiça, por tanta escravidão, por tanta fome e miséria.

 

VP: Há entrelaçamento entre fé e realidade na história do ser humano? Na condição de agentes de pastoral: o que poderíamos dizer sobre isso às pessoas marginalizadas no Brasil atual?

Juvenal Arduini: Há sempre ligação, ainda que tênue, entre fé e realidade. Antropólogos registram que a religião é o componente cultural que mais se infiltra no tecido social, e marca profundamente os modos coletivos que padronizam procedimentos individuais e comunitários.

Há que verificar qual a natureza da relação entre fé e realidade. Não se poderá propor aos marginalizados a fé confinada que pretende manter neutralidade perante o mundo desumano; nem a fé privatista que exerce influência intimista circunscrita ao ego; nem a fé neoconservadora que aparenta modernidade, mas perpetua religião arcaica; e nem a fé sacralizante que diviniza formas históricas dominantes. Pedro Valdivia exaltava a “pessoa sacratíssima” do rei Carlos V.

Os marginalizados precisam de fé-transformante-libertadora que se encarna na realidade, e promove o confronto dialético entre a Palavra de Deus e a palavra da vida dos pobres. Importa que os marginalizados sintam que o Verbo de Deus se corporifica em suas vidas, para emancipá-los e não para domesticá-los.

A proposta da fé em favor dos marginalizados deve ser também antropológica. Trata-se de desmarginalizar os marginalizados. E expulsar o conteúdo ideológico massacrante que lhes foi introjetado na mente, na vida, na linguagem, nos valores e nos procedimentos. O marginalizado terá de expurgar o niilismo que a miséria lhe incorporou, de modo que substitua as atitudes autodestrutivas por atitudes autoconstrutivas. É necessário ressuscitar a reprimida subjetividade dos marginalizados para que se vejam com seus próprios olhos, e se decidam a reapropriar-se da identidade pessoal que a sociedade classista lhes havia expropriado. Disseminou-se a concepção de que o “inculto” seria pré-racional, sem o uso pleno da razão. Contudo, Lévi-Strauss mostrou cientificamente que todos os seres humanos são, em si, plenamente racionais, mesmo que vivam em fases culturais subtécnicas. E isto deve valer também teologicamente para que não se continue a ver o pobre como o atrasado, o “ignorante em religião”. Em boa hora fala-se em teologia popular elaborada pelo povo simples. Para Diego Irarrazaval, o povo pobre é “portador da sabedoria evangélica”. Dessa maneira, o marginalizado começa a emergir como sujeito humano e também como sujeito teológico, para reconstruir seu destino livre.

A ruptura hermenêutica é indispensável para que o marginalizado quebre a interpretação que atribui a Deus o sofrimento, a doença, a fome, a pobreza e a desigualdade. E rejeite a versão, muito divulgada, de que tais males são castigo de Deus. É urgente desdivinizar situações absurdas e injustas, para que não se oprima o homem em nome de Deus. O poeta popular José Augusto dos Santos, de Alagoas, fez ruptura hermenêutica ao descobrir que, dos vinte filhos que tivera, a miséria matou-lhe dezesseis, deixando-lhe apenas quatro. Então pôde versejar com sabedoria bíblica: “A fome não vem de Deus, nem a doença também. A fome vem da ganância que os poderosos têm. Daí nasce a doença, e depois a morte vem”. A fé emancipada aponta os reais autores da injustiça, que são pessoas e estruturas perversas e não Deus.

O caminho de Deus passa pelos caminhos dos marginalizados. Por isso, os marginalizados poderão contar com o Deus bíblico que se coloca ao lado dos fracos. O Deus vivo ensina que, mais importante do que consolar os que estão na miséria, é lutar contra a miséria. A fé apropriada aos marginalizados é a fé agônica. “Agonia”, no grego, significa esforço, combate, luta. O futuro dos pobres está em suas mãos encardidas pelo trabalho e penúria. A fé praxística chama o marginalizado a ser agente de libertação histórica e a romper o cinturão da miséria que o mantém segregado.

 

VP: Em seu livro “Horizonte de Esperança” (Paulinas, 1986) há uma vigorosa e fundamentada tomada de posição junto ao “não homem”, que é o interlocutor da teologia e do agente de pastoral na América Latina hoje. Partindo disso, poderia delinear-nos algumas pistas eclesiológicas para a ação pastoral em meio à realidade brasileira dos anos 1990?

Juvenal Arduini: A situação do “não homem” tende a agravar-se porque ele é a principal vítima do desemprego, da recessão e do arrocho salarial desencadeados pelo novo governo. A Igreja terá de desempanar a visão elitista para enxergar o mundo subproletarizado com os olhos do não homem.

Há que buscar a eclesiologia antropológica centrada no homem histórico. Não basta que a Igreja se concentre em torno de bela teoria sobre o homem. Importa tocar-lhe a concretude maltratada. E, por este caminho, a Igreja topa logo com o não homem, que não é apenas o homem que sofre, mas que é anulado. É o homem que está sendo negado em sua essência por malignas condições sociais, políticas, econômicas e culturais. O não homem deveria ser a preocupação prioritária da Igreja toda, e não somente de alguns segmentos inconformados. Somente assim, a Igreja poderá contribuir eficazmente para devolver ao não homem a consistência onto-histórica que lhe foi demolida.

A Igreja tem evitado a pastoral conflitiva em nome da conciliação. No entanto, a presença eclesial há de inserir-se corajosamente na conflitividade onde está mergulhado o não homem. O fenômeno “não homem” é produto da dialética antropofágica em que a minoria poderosa devora a maioria empobrecida. Diante dessa contradição real e não apenas lógica, ou a Igreja se entranha na realidade conflitiva ou irá situar-se fora dos conflitos, e, por isso, fora da realidade. Ou a Igreja se decide a entrar neste conflito e ficar com o não homem como o fez o Verbo encarnado, ou sobrenadará em indecoroso neutralismo que abandona o não homem à voracidade dos espoliadores.

Está crescendo a tendência ao pluralismo e elesiológico na teologia e na pastoral. Mas para ser criador, o pluralismo eclesial terá de evitar o concordismo que abona a equivalência das posições opostas, e o sectarismo que hostiliza o que é diferente. Há que impedir também a fragmentação que gera guetos pastorais dentro da Igreja. É imprescindível manter organicamente articulada a perspectiva eclesiológica, para que todo o povo de Deus, ainda que legitimamente diversificado, convirja para o primacial que é o não homem.

A tendência da Igreja, na década de 1990, será pender para a inculturação. Contudo, a dimensão cultural não deve dispensar ou substituir a dimensão socioeconômica que foi intensamente trabalhada nos últimos anos na América Latina. As análises socioeconômica e cultural devem complementar-se. Johan Baptist Metz diz que é preciso passar de uma Igreja culturalmente monocêntrica para uma Igreja policêntrica “de raízes culturais múltiplas”. Para isto, requer-se aprofundada compreensão da cultura brasileira que é policêntrica. O desconhecimento das complexas veias culturais leva a desdenhar a sabedoria, as crenças, os valores, os símbolos e o misticismo de nosso povo. E a consequência é o descompasso que se estabelece entre o ritmo da Igreja oficial e o ritmo da religiosidade popular. A inculturação permite também avaliar a influência negativa da “teologia do massacre e da escravidão” e da cultura da opressão no processo sociopatológico do não homem.

Anseia-se por Igreja que seja mais evangélica do que canônica. Entretanto, alguns procuram reativar o autoritarismo eclesiástico que decide questões vitais com vetos ou determinações constrangedoras. Temos tido exemplos de autoritarismo eclesiástico que condena aquilo que o Evangelho aprova. No entanto, a caminhada eclesial deve derivar da matriz bíblica e assumir o Evangelho como critério angular. O que é urgente não é restaurar o poder da autoridade, mas restaurar a espiritualidade do seguimento de Jesus. A autoridade tem seu lugar, mas não é a instância maior. Antes e acima da palavra da autoridade, está a autoridade da Palavra de Deus. Não é a autoridade que julga o Evangelho, mas é o Evangelho que julga a autoridade e toda a Igreja. E enquanto a autoridade distancia a Igreja dos marginalizados, a via evangélica diatônica a conduz até a morada do não homem.

 

VP: Ultimamente há um repensar sobre a atuação da Igreja na sociedade. Vozes ligadas a alguns partidos políticos de vanguarda dizem que a Igreja desempenhou importante atuação em favor dos direitos humanos no período da repressão, mas que hoje, ao colaborar em busca de saídas para a profunda crise vivida no país, ela é ingênua e despreparada. O que o senhor acha disso?

Juvenal Arduini: Há diferença entre o tempo da repressão militar, que amedrontou e silenciou quase todos os setores da sociedade, e a época atual em que há liberdade ainda que vigiada. Naquele período, a Igreja foi quase a única voz a gritar e a defender as vítimas da ditadura. Sua atitude foi histórica e estimulou a participação da sociedade civil. Hoje, há várias instâncias que se mobilizam e se manifestam, o que é bom. A ação da Igreja, agora, é menos necessária em certas áreas, e, por isso, menos requisitada.

A Igreja contraiu certo pudor político. Frequentemente, a atividade política é vista como contágio a ser evitado. Com isso, a política tornou-se universo por onde a Igreja caminha com insegurança, e, às vezes, sem criticidade. Nas últimas eleições, gente de Igreja dizia não ter votado em determinado candidato porque era apoiado por comunistas, mas não teve escrúpulo ao votar em candidato com pendor nazifascista. É a clientela da indústria anticomunista que decide seu voto de acordo com a bênção de frei Damião.

A Igreja tem insistido, e com razão, no aspecto moral da política. Mas, para captar a especificidade política, não basta usar o código ético. A Igreja teria de ser também espaço de reflexão crítica sobre a filosofia política e suas propostas concretas. Com isso, não se pretende eclesializar a política nem reduzir a Igreja a pesqueiro eleitoral.

É oportuno salientar que a análise funcionalista, largamente aceita na Igreja, estreita a compreensão dos fenômenos estruturais, e, consequentemente, superficializa as soluções socioeconômicas. É que este tipo de análise adia a necessária transformação radical da sociedade brasileira e realimenta o reformismo. Somente uma análise estrutural possibilitaria a redefinição global do país.

Ultimamente, aumentam os tropeços à caminhada da Igreja. Há o intuito de frustrar-lhe o compromisso evangélico-social. Bastaria lembrar a condenação do projeto “Palavra-Vida”, as práticas religiosas alienantes, a curiosa evangelização patrocinada por magnatas da economia, a política norte-americana contra a Igreja da libertação, o ascendente prestígio de “Opus Dei”, e os setores que desejam retridentinizar a vida eclesial. Por outra parte, alguns sentem desencanto com as incompreensões de hierarcas, e outros experimentam o desgaste na luta contra os poderosos. Mas apesar desses fatores desfavoráveis, perdura consistente trabalho eclesial no Brasil, embora menos ruidoso.

Mais do que repensar passos feitos, a Igreja deveria inquietar-se pelos passos que deixou de fazer, e perguntar-se pelos novos caminhos que ainda deverá percorrer. Não é hora de recuar. Se a Igreja adotar atitude regressiva, congelará o sangue de tantas testemunhas fiéis e perderá o futuro. O atual momento histórico brasileiro exige audácia eclesiológica porque há conivente indiferença perante o país ensanguentado. Os assassinatos no Brasil, sobretudo de pobres, são três vezes mais numerosos do que as mortes causadas pela guerra no Líbano. Não é hora de retração eclesial nem de recessão pastoral. É hora de revigorar e ampliar a original pastoral que a Igreja latino-americana encaminhou junto com os pobres.

 

VP: O Brasil viveu instantes memoráveis na última década, sobretudo proporcionados pelas organizações populares. Essas instâncias de participação popular, todavia, foram sendo seguidamente abafadas, sucedendo-se longos períodos de silêncio. Em seu recente livro Destinação Antropológica (Paulinas, 1989) há um convite para captar o “verbo inarticulado” presente nesses longos silêncios do povo. Como fazer isso neste tempo de “Brasil Novo”?

Juvenal Arduini: O silêncio popular faz parte do substrato histórico de nossa sociedade colonial, escravocrata e oligárquica. Na era do “Brasil Novo”, promove-se o delírio das multidões e calam-se suas necessidades vitais. Açulam-se alaridos eufóricos, como no carnaval e no futebol, para que se oculte o que está faltando ao povo. Nessa situação paradoxal, o brasileiro expande-se festivamente, mas não fala profunda­mente, porque deixa inarticulado o verbo daquilo que lhe é essencial à existência.

O povo deve procurar descobrir o que está detrás da fala oficial e das encenações pirotécnicas. O candidato vitorioso, nas eleições de 1989, aparentava hostilizar a elite econômica e beneficiar os pobres. Mas após o pacote de 16 de março, a elite econômica prosseguiu consolidada, e os pobres ficaram ainda mais “descamisados”. O crescente empobrecimento dos descamisados era o verbo inarticulado que vinha embrulhado no fatídico pacote.

Essa interpretação foi confirmada pela intransigente defesa, por parte do governo, da livre negociação salarial. Quando os trabalhadores estavam enfraquecidos, porque desempregados ou sob ameaça de dispensa, vinha o governo e propunha que o reajuste salarial se fizesse por “livre” negociação. Isso, é claro, sob o solícito apoio dos empresários. Sabia-se de antemão que os trabalhadores seriam os prejudicados. O arrocho salarial é o verbo inarticulado que o governo não teve a coragem de pronunciar ostensivamente, mas que embutiu veladamente no truque da livre negociação.

O “Brasil Novo” apresenta-se sob o signo de modernidade. “Modernização” é termo mágico que embala a imaginação do público, e esconde o propósito de conservar a iníqua estrutura social como está. Moderniza-se a miséria em vez de eliminá-la. O “Brasil Novo” está ocultando o “Brasil Velho”. Em torno do atual governo aglutinam-se as forças da ultradireita reacionária e do capitalismo selvagem. Projetou-se privatizar a Usiminas por 900 milhões de dólares, quando seu valor real é de 10 bilhões de dólares. Deslavada negociata. Enquanto embasbaca a população com passeios sofisticados, o príncipe do “Brasil Novo” perpetua o velho país da desigualdade social. Fascina a plateia com peripécias ilusionistas para encobrir sua administração vazia que não oferece soluções eficazes aos problemas reais. Em vez de garantir salários suficientes aos trabalhadores, para que alimentem, vistam e eduquem seus filhos, narcotiza-os com a sedução do “Ministério da Criança”. Em vez de valorizar o homem brasileiro, penaliza-o com o abutre de uma economia “intocável”. É a pedagogia do ilusionismo moderno que esconde o verbo inarticulado do câncer do “Brasil Velho”.

Nosso povo sofrido carrega, na alma, histórica orfandade. Orfandade é carência, desproteção e abandono, e é mais ampla do que a privação de pais biológicos. Há orfandade ecológica porque se priva o indígena de sua ambiência conatural. Orfandade etnológica porque os negros foram arrancados do contexto cultural africano. Orfandade psicológica porque há filhos abandonados e pais envergonhados. Orfandade sociológica porque muitos brasileiros são subprodutos das senzalas. Orfandade econômica porque a população está desprovida de bens. Orfandade jurídica porque o direito desampara os fracos. Orfandade política porque o poder se mantém divorciado do povo. Orfandade histórica porque as lutas e conquistas populares são apagadas da memória nacional. Orfandade antropológica porque o homem é desumanizado e reduzido a coisa. E orfandade religiosa porque Deus Pai foi substituído pela figura atroz do colonizador, do escravista e de “patrões” senhoriais. Esse vasto lastro de orfandade é verbo inarticulado que explica por que nosso povo, dependente e pobre, mostra-se tão sensível aos gestos paternalistas e às promessas salvacionistas, também no “Brasil Novo”.

Trofobiose é um fenômeno em que dois animais se associam para viver. Um deles cede seus dejetos para alimento do outro. E este, em compensação agradecida, protege aquele que lhe ofereceu tal manjar. Esse fenômeno biológico ajuda a esclarecer um fato antropossociológico que nos intriga. Encontramos, com frequência, pessoas que são enganadas, exploradas e humilhadas pelos poderosos, e, mesmo assim, admiram e até defendem seus opressores. A troco de alguns resíduos socioeconômicos, apoiam e protegem, social e politicamente, aqueles que lhes destinam apenas detritos. O brutal amesquinhamento do ser humano força as vítimas a se tornarem gratas até pela negatividade com que os grandes as esmagam. Essa “gratidão” não significa falta de vergonha nos pobres, mas documenta a monstruosa decomposição a que está sendo condenado o ser humano. O estranho apoio dos empobrecidos aos seus exploradores é o verbo inarticulado da trofobiose antropofágica.

 

VP: Por que as pessoas aceitam passivamente planos governamentais ainda que nem sempre afinados com a Constituição — limitando-se a repetir o refrão decorado “tem que dar certo”?

Juvenal Arduini: O povo brasileiro não se habituou a participar das decisões políticas. Acostumou-se a receber soluções outorgadas pelos governos. Nesse cenário favorável ao adesismo, o novo governo armou um clima de expectativa diante do inédito. E a imaginação popular predispôs-se a receber as medidas anunciadas como solução mágica para o país.

E veio o pacote que deixou o povo atônito. As pessoas perderam seus pontos de referência e sentiram-se desarvoradas. Houve estupor psíquico que levou a população a agir mais pela emocionalidade que pela racionalidade. A caderneta de poupança tornou-se símbolo de instabilidade. Pois, quem teria segurança neste país, se até a longeva e tão garantida caderneta de poupança ruiu? A sociedade ficou sem saber o que estava acontecendo, porque foi bombardeada com o tiroteio de medidas provisórias mal alinhavadas, e até inconstitucionais. Sem poder defender-se criticamente, a população sucumbiu ao voluntarismo governamental. Só mais tarde, as pessoas voltaram ao uso da razão e começaram a retomar sua voz.

Após o pânico, veio a letargia político-social. Pessoas e organizações sentiram-se atônicas, sem iniciativa, como o Congresso e o Judiciário inicialmente. Depreciou-se o grande avanço político das camadas populares nas eleições de 1989. E houve, na época, nocivo retraimento das oposições. Dessa forma, ampliava-se a brecha para a invasão do pacote colorido.

Estrategicamente, superestimou-se a inflação como se fora o maior e único mal do país, e, ao mesmo tempo, apresentava-se o pacote de 16 de março, como a solução para exterminá-la definitivamente. E a sociedade que clamava pelo combate à inflação, quis abraçar o referido pacote como se fora um aliado. Além disso, a proposta governamental vinha como única via para derrubar a inflação. Havia “uma só bala”, era “vencer ou vencer”. Ou se adotava a solução apresentada ou não haveria solução. Face a esse dilema, opor-se ao pacote equivaleria a ser estigmatizado como inimigo da sobrevivência nacional. E, então, o único caminho seria alinhar-se às medidas baixadas pelo novo governo.

Nossa tradição cultural não valoriza a lei, nem mesmo a Constituição. No Brasil, o poder personalista tem prevalecido sobre a legalidade. Quem tem poder não precisa respeitar a lei. É a prática que vem dos senhores coloniais, passando pelos coronéis latifundiários, até os poderosos de nosso tempo. O voluntarismo inconstitucional do atual governo está sugerindo sorrateiramente que certos problemas só se resolvem descumprindo-se, a Carta Magna. E essa insinuação encontra eco na mentalidade que coloca o Presidente acima da Constituição e no desespero da fome que fala mais alto que a lei.

No Brasil e na América Latina, o povo sofrido se identifica com a flagelação, com o Crucificado, com Maria das Dores. Uma catequese distorcida implantou a ideia de que a pobreza, a doença e o sofrimento são enviados por Deus. Aceitar o sofrimento, ainda que absurdo, seria fazer a vontade de Deus. Isso conferiu à religiosidade popular tonalidade de “Expiação”, que é pagar por algum mal cometido, para livrar-se de outro mal. Ilustrativos são os sacrifícios penosos que os devotos se impõem nas romarias e procissões. Expiando erros passados, muitos sentem-se aliviados e aptos a receber benefícios no futuro. Esse ingrediente religioso-cultural contribuiu para que a população se submetesse fatalisticamente às privações impostas pelo governo atual.

 

VP: Para concluir, uma mensagem aos agentes de pastoral chamados a fecundar a realidade com a fé…

Juvenal Arduini: A fé ajuda a ver como Deus vê, a avaliar como Deus avalia, e, sobretudo, a assumir como Deus assume. Para isso, nossa fé precisa historicizar-se, fazer-se história. A Igreja é historicidade pística enquanto é povo peregrino que caminha na fé. Quem caminha deve ter olhar prospectivo, e não apenas retrospectivo. Quando a mulher de Ló e quando Orfeu olharam indevidamente para trás, explodiu a tragédia. Buscamos fé que aponte para frente, que seja mais profecia do que anamnese. Fé que vença o cansaço e o medo. Pois quem se cansa, debruça-se. E quem teme, foge. A história é maior do que nossa curta vida, e será feita pela sequência de gerações. Cabe-nos fazer o passo necessário para que a caminhada prossiga, e não seja interrompida.

A vida do povo brasileiro está se deteriorando assustadoramente. As mudanças anunciadas pelo governo beneficiam o capital nacional e internacional, e sequestram os magros salários dos trabalhadores. Diante dessa realidade, não podemos ter fé que seja refúgio ou subterfúgio. Mas fé militante que batalha pela causa do homem, que gera paixão pela vida, que alastra a justiça, que reativa a libertação, que erradica a miséria. Até aqui, tivemos um passado social de morte. Venha, agora, a fé militante que nos impulsione a elaborar um futuro social de vida. De vida para todos, principalmente para o não homem.

 

Pe. Darci Luiz Marin