Artigos

Publicado em número 180 - (pp. 2-4)

Os excluídos do sistema são os incluídos no Reino

Por Pe. Darci Luiz Marin

(Entrevista com D. Pedro Casaldáliga)

Pedro Casaldáliga nasceu em 1928 em Balsamey (Barcelona), Espanha. Filho de lavradores. Religioso da Congregação dos Missionários Claretianos. Ordenado sacerdote em Barcelona em 1952. Sagrado bispo em São Félix do Araguaia, MT, em 1971 (onde reside até hoje). Na Espanha trabalhou pastoralmente como diretor de Seminário e de organizações juvenis. Foi professor. Dirigiu a revista “Iris”. Escreveu para jornais, revistas, rádio e teatro. Chegou ao Brasil em janeiro de 1968. É poeta e escritor de vasta obra bibliográfica, sintonizada com a teologia e a espiritualidade libertadoras. Dirigiu o “dia de espiritualidade” (15/4/94) no encontro anual dos bispos reunidos em Itaici, por ocasião da 32ª Assembleia Geral da CNBB — Tema: “O bispo evangelizador numa Igreja missionária”. É bispo muito querido pelas comunidades eclesiais de base, das quais é assessor. Bispo preocupado em partilhar as ânsias e os sonhos com os excluídos.

 

VIDA PASTORAL (VP): Qual a importância de se dedicar uma Campanha da Fraternidade (CF) à temática dos excluídos?

D. Pedro: Por definição, a CF visa promover na Igreja — e em toda a sociedade nacional — a fraternidade, ou seja, o relacionamento justo e solidário entre as pessoas e os diferentes segmentos da mesma sociedade; sobretudo com respeito aos que por diferentes motivos se sentem injustamente relacionados, marginalizados, proibidos.

As várias CFs já assumiram explicitamente a causa dos sem-terra, sem-teto, menores abandonados, povo negro etc.

Este ano todas as categorias dos “encostados” socialmente — estruturalmente, para sermos mais precisos — ganham a CF sob a denominação comum de EXCLUÍDOS. Os “excluídos do sistema”, mais exatamente; porque deles se trata nesta Campanha.

Eles, hoje, no Brasil, em toda nossa América, no Terceiro Mundo, são a maioria dos nossos irmãos e irmãs. Saber isso, a partir do coração e da fé, é mais do que suficiente para que a Igreja assuma com apaixonada responsabilidade esta Campanha de emergência social.

Uma Campanha autoevangelizadora, além do mais, porque os excluídos do sistema são os incluídos no Reino. Eles podem muito bem evangelizar nossa Igreja.

 

VP: O sistema presente, então, na sociedade latino-americana, atua mediante uma lógica da exclusão. O que fazer para resistir a esse projeto?

D. Pedro: Em primeiro lugar, saber que essa lógica existe, age e pode. Conhecer a perversidade, a abrangência e a onipotência dessa lógica, simultaneamente econômica, social e cultural.

Depois da “queda do muro” (só havia um muro neste mundo?) fácil e ingenuamente pode-se pensar que já não há mais sistemas dominando ou que o sistema único que há é suficientemente humano e de porvir para aceitá-lo, pelo menos com passiva resignação.

A Igreja, que soube condenar energicamente o socialismo “real”— por ser ateu e totalitário, não está sabendo condenar com a mesma energia o capitalismo “real” — que é idólatra e totalitário também.

Urge denunciar profeticamente; resistir à tentação de se acomodar; desfraldar, ainda e sempre, a utopia socializadora.

Em tempo, é bom lembrar que o socialismo “real” anda hoje travestido de “neoliberalismo”.

 

Em segundo lugar, fortalecer o Movimento Popular, em todas as suas manifestações — mais clássicas, como partidos ou sindicatos; ou mais novas, como ONGs, associações setoriais, experiências de base — com vistas no projeto alternativo da sociedade que queremos. Em todos os níveis, mas sobretudo nas lutas pelo trabalho digno, terra, moradia, saúde, edu­cação e comunicação. Na defesa intransigente dos direitos humanos.

Potenciando e interligando essa experimentação alternativa, por regiões, no país, continentalmente.

As CEBs, as Pastorais específicas, os Centros e Encontros de formação, as publicações comprometidas têm, nessa tarefa, missão indispensável.

 

Em terceiro lugar, devemos rever nossas instituições e programas, para não fazer o jogo da lógica excluidora, ou por conivência ou por omissão.

Nossa pastoral não é ainda elitista, minoritária? Estamos com os excluídos ou apenas os visitamos? Enfrentamos somente as necessidades peremptórias ou também as causas? Por que somos ainda tão assépticos em nosso modo de vida, em nossas relações, no todo de nossa infraestrutura pastoral? Não será que convivemos bem demais com o sistema que exclui porque nós não nos sentimos excluídos?

Que saudade da perseguição, não é!?

Quando o sistema nos aceita é porque nos engole…

 

VP: Qual a importância da espiritualidade na dinâmica de manter acesa a esperança dos excluídos?

D. Pedro: “Contra toda esperança” esperamos neste mundo. Não temos mais poder que a cruz do Ressuscitado. E é seu Espírito quem clama dentro de nós com inabalável ternura filial ao Pai. O Reino dos Três é nosso projeto e por ser d’Eles o acreditamos viável, indefectível, vencedor.

Mas tudo isso é assunto de fé, de oração, de abnegada ascese, de fidelidade diária.

Eu gosto de recordar o grito de resistência daqueles monárquicos carlistas espanhóis: “Somos soldados derrotados de uma causa invencível”.

Devemos seguir andando, como Abraão, na escura firmeza da esperança, mas “como se víssemos o Invisível”.

Quanto mais revolucionária queira ser uma postura, neste mundo do diabo neoliberal supostamente vencedor, mais mística deverá ser. Nunca foi mais forte a tentação da desistência ou do conformismo — passadas as revoluções e supostamente desacreditadas as utopias — como nessa situação de exclusão generalizada e de predomínio do sistema único.

Não seremos capazes de aguentar acesa a esperança se não vivermos a espiritualidade com coerência profunda e prática.

 

VP: Quais as principais preocupações que deveriam estar presentes na atuação dos agentes de pastoral a partir da CF/95?

D. Pedro: Dependerá, em parte, do lugar e da missão concreta de cada agente. Todos, porém, devemos rever, como disse, e redimensionar nossas estruturas e ações pastorais, tendo os EXCLUÍDOS por referência e cobrança.

As CEBs têm a oportunidade de se preparar para o 9º Intereclesial, desafiadas pela temática “CEBs Massas”.

A CF/96 enfrentará o tema “A Fraternidade e a Política”. Vai ser também uma ocasião propícia para ir até as causas da exclusão.

Como gente de Igreja — leigos(as), religiosos(as), pastores — haveremos de rever em que medida nosso estilo de vida, de moradia, de hábitos ou nossos fitos de culto e de pastoral em geral excluem mais ainda os excluídos do sistema. (Penso na pastoral do batismo, do matrimônio e da família; na pastoral urbana como um todo; na pastoral da juventude…; nos nossos meios de comunicação e em nossas pregações.)

A OPÇÃO PELOS POBRES deverá ser cada vez mais A OPÇÃO PELOS EXCLUÍDOS. Quem disse que já passou o tempo da opção pelos pobres está no limbo ou no egoísmo.

 

VP: Estamos em pleno Ano Missionário. Qual a grande missão para a Igreja hoje?

D. Pedro: Trata-se, evidentemente, da missão de toda a Igreja — formada de todos os cristãos e cristãs:

• ser testemunha, com a vida e as estruturas pastorais, da Boa-Nova da plena Libertação;

• ser lucidamente e generosamente ecumênica e também macroecumênica;

• renovar, de boca e de fato, a opção pelos pobres, contra toda claudicação ou subterfúgio e sabendo que os pobres são estruturalmente excluídos;

• enfrentar profeticamente os instrumentos do sistema, que vão do FMI até a política de cabresto, ou até o impossível apoliticismo;

• estimular o exercício do ministério plural, nas respectivas dioceses e comunidades;

• promover a pastoral vocacional, principalmente no meio da juventude;

• abrir-se ao apelo da Missão além-fronteiras e também abrir-se ao apelo da Missão dentro das fronteiras, nas fronteiras e periferias do país. (Apagou-se a chama missionária de muito clero jovem, de muitos religiosos e religiosas e de muitos leigos e leigas… A guerrilha do Reino continua em plena vigência, moçada!);

• participar localmente e em Belo Horizonte, sendo possível, do COMLA V, em corresponsabilidade missionária continental.

 

VP: Estamos há 30 anos da conclusão do Vaticano II. Quais as instâncias provenientes desse Concílio que não podem ser esquecidas hoje, para que a vivência pastoral esteja afinada com o Evangelho do Reino?

D. Pedro:

o diálogo, feito de misericórdia e de profecia, com o mundo excluído e excluidor. (“As alegrias e esperanças” seriam hoje o quê?);

• o ecumenismo, retomado generosamente e a inculturação audaz;

• a descentralização, a colegialidade, a subsidiariedade;

• a corresponsabilidade de toda a Igreja — dos leigos até o papa — numa Igreja toda ela ministerial e toda ela Povo de Deus;

• as janelas e as portas abertas…

 

VP: Quais os principais desafios para a ação pastoral da Igreja hoje?

D. Pedro:

• os pobres sempre, hoje “excluídos” mais sistematicamente;

• a juventude;

• os meios de comunicação;

• as migrações;

• a proliferação de movimentos religiosos, às vezes sectários ou alienantes ou fundamentalistas;

• ser presença solidária e contato pessoal; com sensibilidade, com testemunho de pobreza, com clara vivência de oração, com uma esperança pascal a toda a prova.

 

 

VP: O que fazer pastoralmente em favor dos batizados que se autoexcluem da prática vivencial da fé? A catequese e a liturgia poderiam contribuir?

D. Pedro: Evidentemente que sim! Sempre que não se parta — por proselitismo — para um tipo de “descontos” ou “festividades”.

Podem contribuir:

• a inculturação, na catequese e na liturgia;

• o envolvimento da juventude;

• a mobilização dos setores, categoria, quarteirões;

• o aproveitamento de datas, acontecimentos, emergências;

• a vivência caprichada dos tempos fortes (Advento/Natal, Quaresma/Páscoa, Celebração dos Sacramentos, CF, Mês da Bíblia etc.);

• os meios de comunicação, utilizados com sinceridade e com arte;

• as visitas e contatos pessoais, com gratuidade, entrando na vida real e nas aspirações ou conflitos das pessoas e famílias.

 

VP: Breve mensagem aos agentes de pastoral: Como fazer para nunca escandalizar os pobres de Jesus Cristo e nunca defraudar-lhes as esperanças?

D. Pedro: Ser evangelicamente pobres com eles e lutar, com eles, contra a pobreza antievangélica.

O grande escritor Elias Canetti, de origem sefardim, Prêmio Nobel 1981, falecido em agosto de 1994, deixou-nos esta palavra evangelizadora: “O esperançador de todo sistema é o que dele fica excluído”.

 

Pe. Darci Luiz Marin