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Publicado em número 117

A Igreja, sinal de reconciliação e penitência

Por Cardeal D. Aloísio Lorscheider

A presente reflexão constituiu uma das intervenções oferecidas no Sínodo dos Bispos sobre “A Reconciliação e a Penitência na Missão da Igreja”.

1. Como pode a Igreja ser sinal de reconciliação e penitência em nosso mundo conflitivo?

Fundamento: “A Igreja peregrinante é chamada por Cristo à… renovação contínua da qual ela, enquanto instituição humana e terrena, sempre necessita” (UR 6). “A Igreja abrangendo em seu seio pecadores, santa e ao mesmo tempo necessitada de purificação, prossegue continuamente pelo caminho da penitência e da renovação” (LG 8).

2. Qual o maior impedimento para a reconciliação e a penitência?

Sem nenhuma dúvida é a dominação com seu espírito de opressão. A Encíclica “Dives in Misericórdia” (DM) fala desse fenômeno ao afirmar: “O homem tem justamente medo de vir a ser vítima de uma opressão que o prive da liberdade interior, da possibilidade de manifestar publicamente a verdade de que está convencido, da fé que professa, da faculdade de obedecer à voz da consciência que lhe indica o reto caminho a seguir. Os meios técnicos à disposi­ção da civilização dos nossos dias encerram, de fato, não apenas a possibilidade de uma autodestruição mediante um conflito militar, mas também a possibilidade de uma sujeição “pacífica” dos indivíduos, dos âmbitos de vida, de inteiras sociedades e de nações que, seja por que motivo for, se apresentem incômodos para aqueles que dispõem dos relativos meios e estão prontos para servir-se deles sem escrúpulos. Pense-se ainda na tortura que continua a existir no mundo, adotada sistematicamente por autoridades, como instrumento de dominação ou de opressão política, e praticada impunemente por subalternos.

Assim, ao lado da consciência da ameaça biológica, vai crescendo a consciência da ameaça que destrói ainda mais aquilo que é essencial ao homem, ou seja, aquilo, que está intimamente relacionado com a sua dignidade de pessoa, com o seu direito à verdade e à liberdade” (DM 11).

Como se vê, trata-se de uma ameaça à vida biológica e o que é mais triste e pior, de uma ameaça à própria consciência, que afeta tanto a dignidade da pessoa como seu direito à verdade e à liberdade. A liberdade é um grande dom de Deus ao homem. A coexistência da liberdade do homem com a liberdade de Deus revela excelentemente a própria grandeza de Deus.

3. A Igreja, portanto, não pode se apresentar diante do mundo como dominadora, mas sim como servidora

Tudo o que a Igreja faz, é preciso que o faça sempre como serviço às pessoas, e nunca dando a impressão de um desejo de dominar. O caminho da Igreja é a pobreza, a perseguição, não a glória terrena, mas a humildade e a abnegação. Toda a obra de evangelização da Igreja procede dos próprios pobres e se destina antes de tudo a eles: “enviou-me para evangelizar os pobres” (Lc 4,18). O lugar social da Igreja deve ser procurado ali, pois o Cristo Jesus mesmo assim o fez. A Igreja deveria se colocar de um modo mais decisivo ao lado dos pobres e com os pobres, que no mundo de hoje são constantemente vítimas do pecado da injustiça social, o que por sua vez é fruto de um sistema de vida no qual os valores do Evangelho, especialmente a primazia do Homem, são levados em pouca conta. Se olhamos a vida de Cristo, notamos que ele está cercado de pobres por onde quer que vá, e ele os têm como seus preferidos (cf. Lc 7,18-23; LG 8). Hoje para muitos tal afirmação pode ser dura, mas não podemos fechar os olhos diante da realidade nem podemos evitar nossa responsabilidade evangélica: “Bem-aventurado aquele para quem eu não for razão de escândalo” (Lc 7,23).

Quanto maior a atitude da Igreja servir o mundo, os homens, tanto menor a atitude e a tentação de sua parte em dominar: “O Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida pela redenção de muitos” (Mc 10,45). Lavando os pés de seus discípulos, Cristo lavou os pés de todos os homens. O lava-pés não pode ser para a Igreja uma mera cerimônia de Quinta-Feira Santa, mas deve constituir-se numa atitude permanente.

4. Existe na Igreja o vício da dominação?

O Concílio Vaticano II, mais de uma vez, investiu contra a discriminação cultural e social à mulher, contra a discriminação às pessoas por causa da cor, da condição social, da língua, nação, religião, raça… Podemos por acaso afirmar, de consciência tranquila, que tais discriminações não existem mais entre nós no seio da Igreja? Pensemos somente na mulher, na cultura dos povos, no Primeiro e Terceiro Mundo. E o que dizer das suspeitas intraeclesiais?

O testemunho do verdadeiro e sincero amor fraterno entre nós permanecerá sempre o principal sinal do autêntico discípulo de Cristo: “Nisto conhecerão que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros” (Jo 13,35). Na verdade, as suspeitas de heresias, de cisma, de má interpretação do Magistério, que atualmente são trazidas por irmãos contra outros irmãos em Cristo, como se apenas uma parte dos irmãos soubesse tudo claramente, como se apenas uma parte dos irmãos possuísse e conservasse toda a verdade, isso, com toda a certeza, pouco ajuda à caridade a ser construída na verdade. Pouco ajuda à unidade da fé e da Igreja. A palavra do Senhor “não julgueis e não sereis julgados; não condeneis e não sereis condenados” (Lc 6,37) parece que fica às vezes esquecida. Nos próprios meios de comunicação social, afirmamos, às vezes, coisas de irmãos nossos até mesmo de bispos, sem sermos capazes de o comprovar. E mesmo que pudéssemos comprovar, ali não seria todavia o lugar de as veicular.

Memoráveis são as palavras de Bento XV, que em sua Encíclica “Ad beatissimi Apostolorum Principis Cathedram” de 1º de novembro de 1914, toca em problema semelhante que existia na Igreja de seu tempo: “Ninguém em particular, tanto em livros ou diários, como em conferências públicas, se comporte como mestre na Igreja. Sabem todos a quem é dado por Deus o magistério da Igreja: a este portanto seja deixado todo o direito de julgar o que se diz, quando o quiser; a obrigação dos demais é ser religiosamente obsequioso para com quem fala e ouvir o que se diz. Naquelas coisas, porém, em que, salvas a fé e a disciplina — quando não intervier o juízo da Santa Sé —, possa haver discussão de ambas as partes, naturalmente a ninguém é vedado dizer o que pensa e defender seu ponto de vista. Mas que não haja nessas discussões o descontrole verbal, que pode trazer graves ofensas à caridade; cada um mantenha livremente, mas com modéstia, sua própria opinião; e não pense que lhe seja permitido, diante dos de opinião contrária, só por serem contrários, acusá-los de fé suspeita ou de indisciplina. Queremos que os nossos se abstenham também daquelas denominações que recentemente se adotam para distinguir católicos de católicos; não apenas evitem-nas como novidades profanas de rotulações, que não correspondem nem à verdade nem à equidade; mas também porque daí se segue uma grande perturbação e confusão entre os católicos. A força e a natureza da fé católica está, dessa forma, no fato de que nada lhe possa ser acrescentado, nada tirado… Cada um tenha como suficiente professar assim: ‘Meu nome é Cristão, e meu sobrenome é Católico’; somente se esforce para ser de fato aquilo que se denomina” (Acta Apostolicae Sedis 6, 1914, pp. 576-577).

A Igreja deve hoje, na medida máxima que lhe for possível, assumir a atitude do Deus misericordioso. Atitude realmente maternal para com todos os homens, com seus defeitos e limitações, pedindo a todos que também aceitem, com seus defeitos e limitações, de tal forma que todos juntos possam, buscando o Deus perfeito, ser liberados das imperfeições. Proceda, pois, a Igreja mais pelo diálogo e pelo consenso do que pela autoridade.

Só a atitude de uma total kenóse (despojamento, aniquilação) — atitude da Igreja Pobre, Despojada, Solidária com todos os homens, à imitação de Jesus Cristo —, poderá fazer com que a Igreja seja aquele sinal de reconciliação, penitência e esperança que o mundo hoje tanto espera.

Muito atuais são as palavras de são Policarpo, bispo e mártir, aos Filipenses? “Os presbíteros sejam inclinados à comiseração, misericordiosos para com todos, solícitos em reconduzir os que erram, visitando todos os doentes, não descuidando das viúvas, das crianças e dos pobres; mas sempre solícitos pelo bem, diante de Deus e dos homens; abstenham-se de toda ira, da acepção de pessoas, do julgamento injusto, afastem-se bem longe de toda avareza, não acreditem depressa no mal que se apresenta contra alguém, não sejam severos demais no julgamento, cientes de que todos somos devedores de pecado” (ed. Funk I, 273ss).

5. Um mundo de conflitos

Nem todo conflito é mau. Somente é mau aquele conflito que leva para a morte, tanto física quanto do coração. A guerra começa quando morre o coração.

Há o conflito que conduz à vida: que não é luta pela luta, luta contra os outros, luta para que o adversário seja suprimido; mas que é luta pela equidade social, pelo bem da justiça social, pelos justos direitos humanos. Este conflito não deve ser repelido, até pelo contrário, deve ser favorecido (cf. LE 20,8).

6. Conclusão

Em sua caminhada para o Reino definitivo, a Igreja conserve sempre presente sua índole histórica, ou seja, sua provisoriedade.

A provisoriedade da Igreja exige que ela seja aqui e agora, sempre e de novo, uma presença salvífica para este tempo, para esta região, para esta cultura, para este homem inserido neste contexto socioeconômico-político-cultural-religioso. Esta provisoriedade pede da Igreja a máxima capacidade de adaptação, atitude permanente de adaptação, onde o elemento “tempo e espaço”, com suas limitações, se torne decisivo para que cada homem possa chegar ao encontro definitivo com o Deus Transcendente. Os aspectos seculares e os aspectos da fé, na vida pessoal e social do homem, não podem nunca se separar da Igreja, mas antes como mediadora do mistério do Verbo Encarnado para a plenitude da redenção, conduza o homem libertando-o de toda dominação, especialmente do pecado.

Cardeal D. Aloísio Lorscheider