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Publicado em número 261 - (pp. 20-24)

Comunidade missionária

Por Pe. Pedro Felix Bassini

1. Introdução

O tema da missionariedade tem ocupado muitos espaços de discussão nos debates pastorais. Tenho afirmado que estamos no tempo da missionariedade enquanto objetivação pastoral. A dimensão missionária ocupa bons espaços e é ressaltada em muitos planos de pastoral na ação evangelizadora. Percebo uma evolução na compreensão do tema, saindo de atividades missionárias para abranger atitudes e projetos envolvendo estruturas eclesiais, e não apenas movimentos delimitados em tempos definidos. A preocupação se volta para a evangelização, e não só para resgatar os afastados ou promover “conversões”. A Conferência de Aparecida trouxe novo impulso à missão, favorecendo novas atitudes perante o tema e alargando sua abrangência de compreensão. O momento revela-se muito favorável e a expectativa é de um futuro promissor na consciência de pertença à Igreja.

 

2. O Censo do ano 2000

A movimentação social em torno do ano 2000 provocou uma sensibilização em toda a sociedade. A mentalidade do “fim do mundo” granjeou grandes espaços na mídia e contagiou a muitos, diversas “profecias” surgiram e o medo do fim tomou conta de muita gente. Diante desse fenômeno, a dimensão espiritual (religiosa) se aflorou, muitos líderes religiosos apareceram com pregações mirabolantes e sempre conquistando adeptos. A simples mudança de século já promove alterações na dimensão religiosa da pessoa; historicamente, vivemos uma mudança de século e de milênio com toda a magia que envolvia o ano 2000. Não faltou quem marcasse o dia para o fim do mundo. O mercado da espiritualidade se alargou e grande foi a oferta, pois a procura por segurança e salvação era sentida em todas as classes sociais. Os movimentos de massa se multiplicaram, pois não faltou criatividade de pregadores para atrair multidões.

Em meio a essa realidade social, o IBGE realizou o censo que registrou a queda percentual no número de católicos e de outras denominações religiosas e o crescimento sobretudo do neopentecostalismo e dos sem-religião.

 

3. Êxodo rural e mobilidade humana

Este tempo está marcado também pelo inchaço das cidades. O processo de urbanização, iniciado em meados dos anos 40 do século XX juntamente com a forte aceleração da industrialização, provocou enorme êxodo rural. Sem uma qualificação profissional e com baixo poder aquisitivo, muitas famílias se deslocam e se aglomeram nas periferias das cidades, que não estão preparadas para receber tantas pessoas ao mesmo tempo. Suas estruturas não conseguem absorver as massas que chegam. De certa forma, a administração pública não está preocupada com esse processo e pouca atenção tem dado ao fenômeno, não orientando o novo contingente populacional nem lhe oferecendo o mínimo de bem-estar em sua nova condição de vida.

Constata-se ainda, tanto em nível nacional quanto internacional, intensa movimentação de pessoas que transitam em busca de melhores condições de vida ou pela necessidade de ir aonde o trabalho é oferecido. Tal fenômeno constitui grande desafio para a seguridade da vida humana. Saindo do seu berço cultural, do lugar onde foi formada a personalidade, a pessoa sente-se vulnerável e solícita. Se não encontra acolhimento e apoio relacional, vai perdendo as raízes e os valores e se desumanizando. Adquire novos padrões existenciais nem sempre compatíveis com a dignidade do viver.

Isso independe da classe social a que pertence, pois o dinheiro não é capaz de obter segurança para a alma nem manter relações saudáveis, conquistadas com a gratuidade. De algum modo, esse fenômeno também contribuirá para uma mudança nas práticas religiosas.

 

4. Reações

Como entender esse fenômeno? O que fazer?

As preocupações foram constantes e se fizeram muitos investimentos na busca de respostas pastorais. Análises sociais e eclesiais, econômicas e políticas, estudos e pesquisas não faltaram. No Atlas da filiação religiosa e indicadores sociais no Brasil[1],César Romero Jacob e Dora Rodrigues Hess, juntamente com o casal Philippe Waniez e Violette Brustlein, elaboraram um mapeamento quantitativo e qualificativo da pertença religiosa do povo brasileiro. Posteriormente os autores lançaram outro volume, Religião e sociedade em capitais brasileiras, complementando e especificando os dados nas capitais sob estudo.

A leitura desses dados, mostrados em mapas, revela os setores de fragilidade existencial humana e de carência da atuação pastoral — principalmente, as periferias das cidades e as fronteiras agrícolas.

O cardeal Geraldo Majella Agnelo, no prefácio ao livro Religião e sociedade em capitais brasileiras, afirma: “O mapeamento da filiação religiosa obriga-nos a reorientar a ação evangelizadora para além dos centros urbanos e paroquiais, na direção das periferias. É preciso mapear as opções e decidir prontamente na direção dos mais carentes”.

Nas Assembleias Gerais do Episcopado Brasileiro posteriores à divulgação dos dados do Censo 2000, o assunto tomou corpo e envolveu muitos bispos na busca de caminhos que respondessem a esses desafios. Por um lado, havia o desafio para a evangelização e, por outro, refletia-se sobre o modelo de missão mais adequado a este tempo.

O tempo de preparação para a Conferência de Aparecida foi muito propício para a tomada de consciência nesse processo e favoreceu a abertura ao diálogo sobre o assunto.

O Documento de Aparecida configura desafiante proposta no campo da missão que podemos resumir em quatro exigências:

•   que a missionariedade impregne a Igreja inteira;[2]

•   que cada comunidade seja um centro irradiador de vida;

•   desinstalar-se do comodismo, do estancamento e da tibieza;

•   passar da pastoral de conservação para uma pastoral missionária.

 

Trata-se de nova mentalidade para a missão, a qual, quando aplicada na ação evangelizadora, promoverá o “empoderamento” das pessoas atingidas, tornando-as partícipes da vida eclesial e não meramente assistentes descompromissados.

 

5. A comunidade como resposta

Segundo o padre Bartolomeo Sorge[3]:

A Igreja vive hoje um estado de purificação, isto é, está num estado de pobreza, minoria e diáspora similar ao que viveram os apóstolos no início do cristianismo. Para a Igreja, entretanto, ser minoria não é um mal: é a sua condição original; e aquele que se diz cristão deve sê-lo de verdade, de maneira autêntica e crível, com efeito, a Igreja “pequeno rebanho” (Lc 12,32) não nasceu para ser massa, mas sim fermento.

 

Ora, ser fermento na massa é a proposta das comunidades eclesiais de base, e esse “fermento” faz a missão se efetivar.

Segundo John Fuellenbach, antes de toda individualidade e de todo chamado individual, a Igreja é vista como um povo fundado pelo chamado divino, povo ao qual o indivíduo é incorporado. O aspecto comunitário da salvação tem prioridade sobre a dimensão individual-pessoal. A relação do indivíduo com Deus não é privada, independente de toda e qualquer socialização; antes, o chamado divino tem como objetivo constituir a humanidade como um povo em razão de seu destino escatológico comum, o Reino.[4]

O pano de fundo dessa concepção comunitária é uma eclesiologia nos moldes daquela que transpareceu durante o Vaticano II, a saber, a eclesiologia da comunidade que assume sua imagem da realidade de ser um ícone da comunidade trinitária.

A massa condiciona; a comunidade conscientiza. A massa se movimenta de acordo com a onda do momento; a comunidade é fiel em qualquer circunstância e por isso vence os desafios, refaz prioridades, adapta-se ao circunstancial para ser espaço evangelizador.

O Documento de Aparecida fala da reestruturação da paróquia em rede de comunidades: “A renovação das paróquias no início do terceiro milênio exige a reformulação de suas estruturas, para que seja uma rede de comunidades”[5]. Seria exaustivo citar todas as vezes que o Documento de Aparecida menciona a necessidade dessa renovação das estruturas para se adequarem à realidade presente. Embora o documento aluda a quatro modelos de comunidades — novas comunidades, comunidade de vida e aliança, pequenas comunidades e comunidade eclesial de base —, não podemos perder de vista o horizonte da comunidade como lugar onde se encontra o povo de Deus em sua multiplicidade e que constitui a célula básica da Igreja particular.

Ao retomar a Igreja dos primórdios, constatamos sua essência comunitária e todo o poder que a vida comunitária tem para transformar o comportamento pessoal, promovendo verdadeiras conversões, libertando as pessoas para uma vida solidária e participativa no campo social e testemunhando um jeito novo de se portar no mundo relacional.

A comunidade é, sem dúvida nenhuma, a estrutura básica da vida da Igreja. E esta, por conseguinte, estrutura-se nos seguintes elementos: fé, celebração, comunhão e missão.

A deve ser entendida aqui não como refúgio para os amedrontados e resignação diante da miséria deste mundo. Trata-se, antes, de um princípio de contestação e de compromisso de libertação individual e de todas as pessoas, a começar com as objetivamente oprimidas da sociedade capitalista. A referência maior dessa fé é a palavra de Deus, a prática de Jesus e a confiança vulcânica do Espírito, ou seja, inserir o evangelho na vida e a vida no evangelho. Desse confronto mútuo entre o evangelho e a vida nasce a dimensão de libertação de toda injustiça e a fome e sede de participação na sociedade e na Igreja. A fé se transforma num fermento gerador de uma caminhada em que há luta, enfrentamento com as forças do anti-Reino, mártires, mas também sementes do novo céu e da nova terra, de “outro mundo possível!” (escatologia).

Uma Igreja não vive só de fé, mas principalmente das celebrações da fé. Celebrar não é realizar um rito, mas ritualizar a vida diante de Deus e dos irmãos. É nessas celebrações que o povo elabora a mística de resistência e de compromisso.

A dimensão da comunhão é muito importante. Ao lado do bispo, deve contar e valer também o cantador; ao lado do padre, o animador leigo de um grupo; ao lado do religioso, o lavrador; ao lado do pobre, querido por Deus por ser pobre e não tanto por ser bom, o rico convertido à causa da justiça. Na Igreja-toda-povo-de-Deus vigora um “fraternismo” evangélico que se expressa pela complementaridade das funções e pela superação da rígida divisão eclesiástica do trabalho; ninguém detém o monopólio de ensinar, mas todos aprendem uns dos outros, sendo todos discípulos do único mestre Jesus.

O último elemento fundamental da vida da Igreja é constituído pela missão e pelo serviço às pessoas no mundo. Indiscutivelmente, a missão básica da Igreja reside na evangelização. Cabe-lhe levar avante a mensagem de Jesus sobre o reino de Deus e procurar dilatá-lo na história dos povos. Normalmente a missão se encontra em duas vertentes principais: na profecia e na pastoral. Pela profecia, a comunidade anuncia a proposta de Deus feita por Jesus e sempre de novo realçada pelo Espírito no tempo; mas também denuncia as forças do anti-Reino e da antivida, dispondo-se à perseguição e ao martírio por causa do objetivo introjetado na alma pela experiência do seguimento de Jesus. Pela pastoral, a comunidade acompanha as pessoas e os grupos humanos em sua situação concreta, anima a esperança, promove a vida e a total abertura aos outros e a Deus, criando comunidade de fé, esperança e caridade comprometida com a libertação integral.[6]

Não se pode, no entanto, tentar pensar qual desses elementos vem em primeiro lugar e depois pensar no que vem em seguida. Todos quatro se interligam e cada um precisa dos demais.

Também verificamos nas CEBs a participação e a corresponsabilidade nos quatro elementos que sustentam todo o edifício eclesial no eixo do anúncio, da celebração, da coordenação e da missão. Para efeitos didáticos, costumamos chamá-los de “os quatro cês das CEBs”.

Os círculos bíblicos, ou grupos de reflexão bíblica, dinamizam o eixo do anúncio. Os membros das CEBs se apropriam da palavra de Deus, pois leem e comentam as Escrituras no espírito eclesial e da comunidade; pregam nas celebrações, proferem palavras de consolação e de animação nos encontros, testemunham sua fé cotidianamente nos locais de trabalho. Confrontam a fé com a vida.

As celebrações nas CEBs — geralmente da Palavra por falta do ministro ordenado — mostram-se altamente criativas. Os membros assumem funções nas liturgias, montam celebrações comunitárias de distinto gênero (penitencial, de ação de graças, de recordação dos mártires populares, vias-sacras e, na Quinta-Feira Santa, a dramatização do lava-pés e da ceia do Senhor) e reinterpretam de forma inovadora tradições devocionais como o rosário, as ladainhas, os benditos, as rogações e as vias-sacras. Também na celebração da eucaristia sabem ritualizar a liturgia da palavra, a procissão das ofertas e a ação de graças.

Os conselhos pastorais comunitários estão no eixo da coordenação. São homens e mulheres que, geralmente de forma colegiada, assumem a animação e a condução de toda a comunidade. Nesse campo se desenvolveu uma pedagogia comunitária na linha da participação de todos os membros da CEB. Todos os assuntos são apresentados à comunidade e discutidos por todos até chegar a um consenso. Ouvem-se todas as pessoas e fazem-se as revisões para ver se as decisões tomadas e assumidas comunitariamente foram cumpridas. Não raro representantes das CEBs participam das assembleias presbiterais e diocesanas, nas quais se definem as metas e os passos da pastoral.

O compromisso sociotransformador é o eixo da missão. Fundam círculos bíblicos, instauram novas comunidades eclesiais, criam grupos de oração/ reflexão/ação, organizam encontros de aprofundamento da fé confrontada com os desafios da sociedade, particularmente dos pobres, instituem sindicatos autênticos, impregnados da visão cristã das relações sociais, empenham-se nos grupos de ação, justiça e paz na defesa e promoção dos direitos humanos. Em suma, assumem a missão de serviço aos outros, particularmente a missão social da Igreja, junto com outros agentes de pastoral e os bispos.[7]

A experiência de várias Igrejas particulares tem demonstrado e comprovado essa eficácia pedagógica da comunidade como lugar e instrumento de evangelização. A comunidade se autoevangeliza pela própria convivência em torno da Palavra e da celebração dos sacramentos, principalmente da eucaristia. É como um fogo que queima e impulsiona as pessoas à missão primeiramente na própria comunidade, criando a comunhão pela inclusão das realidades existentes em seu território e pelo direito de participação de cada um. A comunidade deve ser tão abrangente, que possa oferecer espaço a todo diferente. Ninguém pode sentir-se “dono” de um ministério, que é serviço ao todo. Por isso a rotatividade das pessoas nos diversos ministérios é pedagógica e educativa para a vida e a missão na comunidade eclesial. As pessoas vão evoluindo em sua compreensão e assumindo ministérios mais exigentes de acordo com as necessidades da comunidade, sentem-se valorizadas e úteis na convivência. A simples distribuição das responsabilidades faz a pessoa sentir-se integrada e membro ativo da Igreja concretizada na comunidade.

Se a mobilidade humana desmantelou a ordem existencial na família e nas pessoas individualmente, produzindo a insegurança e causando vulnerabilidade, a comunidade estruturada nos locais para onde essas pessoas se dirigem deve ser espaço de segurança. Se as comunidades estiverem presentes nas periferias e forem ativas na missão, nenhum transeunte se sentirá forasteiro.

As exigências propostas pelas Diretrizes da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil (2003-2006) mostram o caminho concreto da ação.

Se uma família chegou de mudança ao território da comunidade, logo o vizinho mais próximo deve achegar-se para acolhê-la e pôr-se a serviço, incluindo-a nesse novo mundo; do serviço passa-se ao diálogo, para um conhecimento das histórias. A conversa que parte do humano, da necessidade premente, vai abrindo caminhos para a apresentação de propostas inclusivas.

Evidentemente a comunidade é o referencial de onde o missionário parte para adentrar essa relação, e, mesmo que a pessoa que chega não seja católica, sentir-se-á acolhida e será ajudada a encontrar a denominação religiosa a que pertence (mentalidade ecumênica) ou lhe será feito o anúncio e os encaminhamentos para ser apresentada e acolhida na comunidade católica. O missionário torna-se um “padrinho” daquela pessoa, que logo estará enraizada e segura na nova convivência social.

Esse é o testemunho da comunidade, o qual a nova família comunicará aos seus parentes deixados nas plagas de onde saiu.

 

6. Conclusão

Podemos dizer que a missão da Igreja é formar comunidades para, por meio delas, evangelizar.

A missão da Igreja pode ser resumida assim: multiplicar as comunidades eclesiais por toda a parte e, ao fazer isso, apresentá-las como um lugar onde o reino de Deus se torna visível. Ao optar pela compaixão pelos mais pobres e excluídos e pela justiça como seus princípios de ação, a comunidade se propõe como uma sociedade contrastante, que testemunha o reino na qualidade de plano definitivo de Deus para a reestruturação da sociedade humana. A comunidade eclesial mostra o que o reino de Deus pode fazer quando é aceito e quando seus valores principais se tornam a base para a sociedade humana.

A edificação de comunidades é parte básica e essencial da missão da Igreja. Ao edificar-se a Igreja “local”, o Reino é trazido diretamente para o meio das pessoas e encontra expressão em sua própria cultura e em suas próprias circunstâncias. A missão se torna perene e não se efetiva apenas em eventos com data marcada de início e festa de encerramento. A comunidade é missionária em sua constituição natural.



[1] César Romero Jacob et al. Atlas da filiação religiosa e indicadores sociais no Brasil. São Paulo: Loyola, 2003.

[2] Agenor Brighenti. A desafiante proposta de Aparecida. São Paulo: Paulinas, 2007.

[3] Bartolomeo Sorge. Per una civiltà dell’amore. 3ª ed. Brescia: Queriniana, 1999.

[4] John Fuellenbach. Igreja: comunidade para o reino. São Paulo: Paulinas, 2006, p. 73.

[5] Documento de Aparecida, 172.

[6] Leonardo Boff. Novas fronteiras da Igreja: o futuro de um povo a caminho. Campinas: Verus, 2004, pp. 102-104.

[7] Colaboração de Sérgio R. Coutinho, professor de Antropologia da Religião e pesquisador no projeto Documentação “Memória e Caminhada”das CEBs na Universidade Católica de Brasília.

Pe. Pedro Felix Bassini