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Publicado em número 134 - (pp. 27-34)

Meditações bíblicas sobre a Eucaristia

Por Pe. Luís Alonso Schökel, sj

As meditações I e II foram publicadas em VIDA PASTORAL, no nº 132 (janeiro-fevereiro de 1987, pp. 27-35); as meditações III e IV no nº 133 (março-abril de 1987, pp. 26-35).

 

V. OFERTÓRIO — EUCARISTIA — BERAKÁ-1

Hoje devo explicar a parte que chamamos ofertório, que significa ou designa a oferta dos dons. Vou explicar esta seção ampliando-a em duas direções. Primeira, remontando a práticas e expressões bíblicas; segunda, comentando o texto atual do ofertório, embora me obrigue a incursões em outras partes da missa.

O texto atual é: “Bendito sejais, Senhor Deus do universo, pelo pão (pelo vinho) que recebemos da vossa bondade, fruto da terra (da videira) e do trabalho do homem, que agora vos apresentamos, e para nós se vai tornar pão da vida (cálice da salvação)”. Algumas vezes se realiza com condução processional do pão e do vinho ao altar, outras vezes se reduz ao gesto do sacerdote elevar os dons. Em algumas ocasiões outros dons acompanham o pão e o vinho.

O texto é uma bela síntese da celebração que em grego chamamos eucharistía, em português ação de graças, em hebraico beraká. Começarei expondo sem pressa o termo hebraico.

 

1. Beraká. Uma exposição histórica estudaria formas litúrgicas judaicas e analisaria seu influxo e desenvolvimento em fórmulas cristãs. O estudo foi realizado por especialistas. Em espanhol contamos com a erudita exposição de J. M. Sánchez Caro, Eucaristía e historia de salvación (Madrid, 1983). Minha tarefa é muito mais modesta e se limita ao Antigo Testamento; isto talvez me permita uma contribuição útil pelo menos para a meditação.

É bem sabido que a liturgia judaica usava fórmulas de ação de graças que chamamos beraká ou birkat-, diferenciadas segundo o momento do banquete. Beraká é, portanto, uma fórmula, e seu equivalente cristão é a anáfora. Mas beraká no AT é algo mais, designa também o dom.

A raiz hebraica brk, especialmente na conjugação piel (barek), costuma ser traduzida por bendizer. Mas é necessário diferenciar a tradução. Fundamentalmente, o verbo implica duas pessoas e um bem de uma delas. A bênção de A refere-se a um bem com relação a B. Se B não o possui, a bênção é desejar-lhe que o obtenha; se já o conseguiu, é felicitá-lo por isso. Um amigo nos diz que vai submeter-se a exames, e nós lhe desejamos boa sorte, êxito: o abençoamos. Mais tarde o encontramos e nos comunica que teve êxito, e então o felicitamos. Ambos os conteúdos podem ser percebidos no verbo brk, segundo as ocasiões.

Diz um provérbio hebraico: “Quem saúda o vizinho de madrugada e em altas vozes, é como se o amaldiçoasse”. “Saudar” é brk, e é desejar-lhe um bom dia. Dar bom dia procede da velha fórmula que, completa, soava assim: “Bom dia nos/vos dê Deus”: é desejar um bem ao outro para toda a jornada, bendizê-lo. Nós, brasileiros, desejamo-nos “tudo de bom”. Essas fórmulas podem degradar-se em simples saudação cortês, em convenção social. A uma saudação de despedida parecem referir-se Gn 47,10 e Ex 12,32. O sentido de felicitar pelo bem conseguido está claro em 2Sm 8,10: “Mandou seu filho Adoram ao rei Davi, para o saudar e o felicitar (brk) por ter feito a guerra a Adadezer e o ter vencido”.

Quando a outra pessoa nos fez um favor, nossa bênção é antes uma ação de graças: bendizemos = damos graças. Com isso entramos em nosso terreno; por isso será útil citar alguns exemplos: “Se for um pobre… ao pôr do sol deverás devolver sem falta o penhor, para que ele durma com o seu manto e te abençoe” (Dt 24,13a). “Se vi um miserável sem roupas, um pobre sem cobertor, e não me agradeceram os seus flancos (brk), aquecidos com a lã das minhas ovelhas” (Jó 31,19-20). “Joab caiu com o rosto em terra, prostrou-se e bendisse o rei” (2Sm 14,22a).

Um último caso de relações entre homens. O agradecimento = bênção pode acompanhar as palavras com um dom ou presente que exprime o sentimento de gratidão. Não é um pagamento que iguale ou anule o benefício recebido; é a expressão tangível do reconhecimento. Deve ser significativo, não mesquinho, de acordo com as possibilidades daquele que recebeu o dom. Jacó tinha roubado de seu irmão maior, Esaú, a bênção paterna testamentária, e este jura vingar-se. Jacó emigra, e depois de muitos anos decide voltar à casa paterna. Mas precisa atravessar o território controlado por seu irmão. Para ficar de bem com ele adota atitudes humildes e generosas, e envia adiante quatrocentas cabeças de gado, “pois dizia: ‘eu o aplacarei com o presente que me antecede, em seguida me apresentarei a ele, e talvez me conceda graça’” (Gn 32,21). Finalmente, os dois irmãos se encontram, e Esaú lhe pergunta: “Que queres fazer de todo esse grupo que encontrei? ‘É para encontrar graça aos olhos de meu senhor’ respondeu ele. Esaú retomou: ‘Eu tenho o suficiente, meu irmão, guarda o que é teu’. Mas Jacó disse: ‘Não, eu te peço! Se encontrei graça a teus olhos, recebe o presente de minha mão. Pois afrontei tua presença como se afronta a presença de Deus, e tu me recebeste bem. Aceita, pois, o presente (beraká) que te ofereço, porque Deus me favoreceu, e eu tenho tudo de que necessito’” (Gn 33,8-11a). A bênção (beraká) do pai, roubada (Gn 27) se compensa com o presente (beraká).

A nora de Caleb se aproxima dele e lhe diz: “Dá-me um presente (beraká)” (Js 15,19). Naamã, curado, volta para dar graças a Eliseu: “Aceita o presente de teu servo” (2Rs 5,15). Um homem generoso se chama nepesh beraká (Pr 11,25). Jó “recebia a bênção (beraká = agradecimento) do vagabundo” (Jó 29,13).

 

2. Uma vez estabelecido este ponto importante, posso introduzir na cena um terceiro personagem: Deus. Já aparecia de maneira implícita, pois quando o pobre deitava e “abençoava” seu benfeitor, estava desejando-lhe a bênção de Deus; e os desejos de bens apontam para Deus como doador. O esquema tem forma triangular: o favorecido, para agradecer, invoca sobre ele a bênção divina. Bendito sejas tu diante de Deus, pelo bem que me fizeste. Recordemos a expressão cristã “Deus lhe pague”. Como dizendo: desejo-te um grande bem; tão grande que eu não posso dá-lo; a única coisa que posso fazer é pedir a Deus para que ele te dê o prêmio por tua bondade.

Ao entrar Deus no esquema do agradecimento, complica-o e também o enriquece. Surge uma dupla relação: eu, agradecido, desejo um bem a meu benfeitor e peço que Deus lhe conceda bens para pagar em meu lugar. As duas coisas não se excluem, antes se completam. Não posso fazer um dom maior a essa pessoa a não ser desejar que Deus seja o pagador; se consigo que Deus o pague, não há ação de graças que se possa igualar a isto. Por isso o hebreu podia dizer: “Deus te abençoe por…” Abrão volta de sua vitória, na qual libertou os cativos, e o rei-sacerdote de Salém o abençoa: “Bendito seja Abrão pelo Deus Altíssimo que criou o céu e a terra, e bendito seja o Deus Altíssimo que entregou teus inimigos entre tuas mãos” (Gn 14,19-20).

Com isto passamos à última seção, outra vez binária, que relaciona o homem com Deus. Quando o sujeito do verbo é Deus, a palavra é ação, é eficaz. Deus bendiz o homem com a fecundidade (Gn 1,28). Bendiz os trabalhos do homem (Jó 1,10), os brotos dos campos (Sl 65,11), o pão e a água (Ex 23,25), a morada (Pr 3,33), os patriarcas (Gn 12,2; 22,17; 25,11), o povo (Dt 1,11; 14,24). A bênção de Deus é fazer o bem.

Aos benefícios de Deus o homem responde bendizendo a Deus. Nesse momento o verbo tem outro conteúdo. O homem não pode fazer bens nem desejar bens ao Bem Supremo; quando muito pode felicitá-lo pelos bens que possui. Também pode reconhecer os benefícios recebidos e agradecer; e esse ato é como uma entrega livre de si mesmo. Em hebraico pode-se chamar “bendizer” (barek). O livro dos Salmos emprega mais de vinte vezes o verbo brk neste sentido.

Há um salmo que mostra muito bem e brevemente o movimento interno da bênção de Deus ao homem, do homem a Deus, de Deus ao homem. É o salmo 134, que reservo para a última reflexão, já que a nossa eucaristia se encerra com uma bênção.

Resta-nos um só elemento: o dom que acompanha as palavras. Podemos oferecer um dom a Deus? Rigorosamente falando, nada podemos dar a Deus, só podemos com o dom expressar nosso agradecimento. A oferenda de primícias (Dt 26), que já mencionei, é um bom exemplo; mas não emprega o termo bendizer. As oferendas cúlticas chamam-se em hebraico minhá (que significa, em sentido profano, tributo); não se chamam beraká. Não serviriam para explicar a denominação “ofertório”. Ora, minha intenção é explicar o ofertório como eucaristia = beraká, demorando-me no comentário de sua fórmula.

Com o que ficou dito creio dispor de um contexto mental que nos permita mover-nos sem desorientar-nos.

 

3. Vou fixar-me nos dons como beraká, segundo o sentido exposto do AT. A eucaristia ou ação de graças não é somente verbal, mas se materializa na oferta de alguns dons. O texto começa assim: “Bendito sejais, Senhor Deus do universo, pelo pão (pelo vinho)”. Por que se pronuncia aqui o título “Deus do universo”? Se trazemos um pouco de pão e vinho, por que uma invocação tão ampla e solene?

Porque no humilde se revela o sublime. Porque escolhemos um dom que, em sua pequenez, é cifra de múltiplos, imensos dons. Demos forma redonda e cor branca a este pão, como que para significar na redondeza a totalidade, a plenitude, a perfeição, e na cor branca a síntese de todas as cores. Embora tenha outra forma e outra cor, o importante é que é “fruto da terra”. Portanto, no pão está presente a terra, terra mãe e fecunda, que com sua fertilidade alimenta seus filhos. Bendito, Senhor, pelo dom da terra! Durante milhões de anos a fostes preparando, para que fosse morada de vossos filhos. Não existe pão sem uma terra que recebe em seu seio a semente. Também recebe a chuva, e por isso o pão é fruto da água terrestre e celeste. A chuva fecunda paternalmente a terra materna. Bendito, Senhor, pela chuva que faz crescer os brotos! O pão também é fruto do céu, isto é, da atmosfera para onde a água subiu antes de descer repartida. E como pôde subir vencendo seu peso, concentrar-se e mover-se pelos ares, até decompor-se em milhões de gotas e com isto regar centímetro por centímetro do solo? Uma força a puxou, mais poderosa do que a força da gravidade: o sol com seu calor. Bendito, Senhor, pela força do sol! O sol que pertence a um sistema, que centraliza e equilibra os planetas, e se incorpora a constelações e galáxias. Astros que giram e se mantêm em equilíbrio móvel, prodigioso; sem tropeçar, sem se cansar; cada um em seu lugar exercitando a força exata e precisa, de modo que a terra possa receber em seu momento a chuva, e possa produzir seu fruto: o pão, o fruto da terra, da água, do vento, dos astros. Fruto da luz, que ativa a função clorofílica, e também da escuridão alternada, que garante sua vitalidade. Fruto do ritmo pontual, pulso do tempo terrestre, sístole e diástole no coração do nosso sistema. Bendito, Senhor, pela luz que se concentrou na entranha deste pão e se reflete em sua superfície branca! Fruto da terra, com suas forças físicas e químicas, sua seiva que vem das raízes, sua pressão que sustenta os caules, sua atividade oculta. A planta alberga em si forças opostas e coordenadas: a força que impele as raízes para baixo, vencendo a resistência mineral, a força que impele para cima, vencendo a força da gravidade. Como pode o tenro e minúsculo caule abrir passagem pela barreira compacta do solo, rompendo ou afastando torrões, com inexorável impulso ascensional, até alcançar a estatura exata? O pão, fruto da planta, da terra, das forças plurais. Fruto da terra significa também tempo e ritmo, porque o grão não brota de repente, num momento. Se deve contar com o pulso breve de noite e dia, depende também do ritmo longo das estações; o frio silêncio do inverno, o despertar da primavera, o calor crescente do verão. Tudo isto é necessário para que se consiga este pedaço de pão. Para isso a terra deve girar levemente inclinada em sua órbita, aproximando-se e afastando-se calculadamente do sol. Bendito, Senhor, por este pão, fruto da terra e das estações! E ainda não terminamos, porque este pão, esta colheita é fruto de uma semente, tomada da colheita do ano anterior, “para que dê semente ao semeador e pão ao que come” (Is 55,10); e esse foi fruto de outra precedente; e assim, sem interrupção, temos que voltar séculos e milênios. Este pão que hoje te oferecemos encerra um processo de milênios e abre o seguinte, com um pouco de história humana, com muito de ciclos naturais.

Este pedaço de pão significa muito, e por isso o oferecemos como dom miúdo e diminuto. Nós o explicamos com causas físicas e químicas, elementos e astros; por trás de tudo isto e em tudo isto descobrimos a ti, Senhor do universo, como pai de família solícito que trabalha seus campos para dar o pão aos seus. “Visitas a terra e a regas, cumulando-a de riquezas. O ribeiro de Deus é cheio d’água, tu preparas seu trigal. Preparas a terra assim: regando-lhe os sulcos, aplanando seus terrões, amolecendo-a com chuviscos, abençoando-lhe os brotos. Coroas o ano com a tua bondade, e tuas trilhas gotejam fartura” (Sl 65,10-12). “Nós o recebemos de vossa bondade, e agora vo-lo apresentamos”. Que sirva como expressão concentrada de nossa admiração e gratidão.

 

4. Nós vo-lo oferecemos, Senhor, porque é nosso, é “fruto do trabalho do homem”. Isto é, dos homens. Para confeccionar este pedaço de pão colaboraram muitos homens, segundo a divisão das tarefas que a nossa cultura impõe. Em outros tempos, talvez em outros lugares, um homem ou uma família conseguia conduzir o trigo desde a semente até sair do forno. Hoje não é assim. Se pudéssemos enovelar os fios de atividade convergentes neste centro, talvez chegássemos a mais de mil: agricultores que o semearam e colheram; mecânicos que manejaram e consertaram as máquinas; transportadores; padeiros; distribuidores. Em cada etapa um grupo de colaboradores.

Este trabalho do homem não é amaldiçoado. Vós, Senhor, o abençoastes, e por isso “sai o homem para a sua faina, e para o seu trabalho até à tarde” (Sl 104,23). Hoje em dia o trabalho físico é mais leve, o suor da fronte se transformou e até desapareceu. Não desapareceu a fadiga, a perseverança. Aumentou o trabalho intelectual de muitos homens. Um dia um homem inventou a domesticação do cultivo: um Noé de trigo, ou milho, ou arroz. Outro inventou a extração e elaboração do ferro, e outros muitos o aperfeiçoaram. Alguém inventou o arado. Mais tarde descobriram-se outras fontes de energia: gasolina para as máquinas, eletricidade para os fornos. E inventaram-se máquinas com diversas funções. Quantos inventos sucessivos e convergentes se encontram no círculo estreito deste pedaço de pão. É fruto do trabalho do homem e como tal vo-lo oferecemos.

É trabalho humano, e por isso não se reduz à fadiga física, ao esforço mental; pelo contrário, abarca o homem em sua existência diária. O trabalho significa o sustento próprio e da família, e a ocupação que dá sentido à sua vida. Como é doloroso ficar sem trabalho: pelo tédio de não ter o que fazer, pela frustração de sentir-se inútil, pela dor de não ganhar o suficiente. Trabalha-se por um ideal, por um sonho; pela família ou pela sociedade. O trabalho ativa o homem como ser social, seu trabalho específico gira em uma constelação de muitos trabalhos diferenciados e complementares. Não é mera escravidão, é também libertação e nobreza; ou as duas coisas ao mesmo tempo, peso e leveza, elasticidade que se estica e se contrai. O pão é fruto do trabalho múltiplo do homem: de muitos homens e de muitos aspectos do trabalhar. Pois assim vo-lo oferecemos como coisa nossa.

É verdade que vós no-lo destes, “nós o recebemos de vossa bondade”. Vós nos destes a terra; mas a terra não daria pão sem o trabalho do homem, que é nosso. Destes-nos as forças para trabalhar, a inteligência para inventar, a prudência para organizar, o carinho para justificar o esforço. É simples, mas é nosso e com isto podemos expressar-vos o nosso agradecimento. É verdade que não podemos enriquecer-vos e que vós de nada necessitais. Mas podemos dar-vos o nosso reconhecimento e gratidão. Um reconhecimento que não humilha, antes exalta, porque nos permitis chegar até vós com os nossos dons. Recebei nosso pão: é nossa eucaristia, nossa beraká. “De vossa bondade o recebemos, e agora vo-lo apresentamos”.

 

VI. EUCARISTIA — BERAKÁ-2

1. “Bendito sejais, Senhor Deus do universo, pelo vinho… fruto da videira e do trabalho do homem”. Aqui se poderia repetir o que foi exposto sobre o pão, porque também o vinho é um universo condensado, que me revela o Senhor do universo. O Antigo Testamento nos oferece uma lenda sobre a origem do vinho, inventado por Noé depois do dilúvio. O relato nos ensina duas coisas que aqui vêm ao caso: primeira, que o vinho é de duplo fio, porque dá alegria e tira o sentido, o vinho despoja e deixa inerme; segunda, que o vinho (ou a videira) inaugura etapas decisivas, a era depois do dilúvio, a entrada na Terra Prometida, que ostenta seus frutos num gigantesco cacho, a era de Cristo inaugurada em sua paixão, apontando para a consumação celeste. Não é ambíguo o vinho da eucaristia, a menos que pensemos na “sóbria ebriedade” de que fala o hino litúrgico. Inaugura uma nova era, da nova Terra Prometida em que nos encontramos. Em que sentido nos despoja e nos deixa inermes?

No relato de Noé saltam-se as etapas da confecção do vinho; só se menciona o trabalho de cultivar as vinhas. Nós podemos pensar nesse tempo de silêncio ou de murmúrio que é a fermentação. O mosto jaz na escuridão enquanto milhões de bactérias agem em suas entranhas, transformando o açúcar em álcool. Fruto da terra por mediação da videira, fruto da vide por mediação de microorganismos ou substâncias químicas. Também a atividade silenciosa está presente no vinho, também ela é dom de Deus e resulta em dom nosso.

Talvez o trabalho do homem, sua criatividade e tenacidade, sejam mais evidentes no vinho que no pão. Sendo muitas as terras e tão diferenciada a atividade do homem, há muitos vinhos, diferentes no aroma e no gosto. Em sua variedade os oferecemos, como uma polifonia de gostos, uma palheta multicor de aromas. E não o proibimos como os nazireus (Nm 6) ou os recabitas (Jr 35).

 

2. Por que pão e vinho? Não podíamos ter escolhido outros elementos? Por exemplo, outras primícias (Dt 26). Que significam para nós o pão e o vinho? O pão foi para muitos, durante milênios, alimento básico. Existem culturas que fazem o pão de milho e outras que comem o arroz sem transformá-lo em pão. Em português ainda usamos a expressão “ganhar o pão”, que equivale a ganhar a vida, como equivale a alimento.

Pão é ou significa o alimento elementar do homem. É o alimento que mantém a nossa vida dia após dia, que desfazendo-se nos refaz e nos permite fazer, que se transforma em parte nossa ou em energia vital. Se o pão é fruto do trabalho do homem, o trabalho humano é fruto do pão. O pão é ou significa o básico e elementar de nossa alimentação, embora na realidade não seja tudo, nem muito menos. O homem inventou muitos outros alimentos, e chegou a fazer do cozinhar uma arte: arte culinária. Contudo, o pão é o elementar. Não é o re­finado, nem o exótico, nem o caro, mas o simples e acessível. Quando está racionado, a necessidade aperta; quando falta, sobrevém a fome: “Dar-vos-á o pão da angústia e a água racionada” (Is 30,20). “Então o rei Sedecias ordenou que custodiassem Jeremias no pátio da guarda e, cada dia, lhe dessem uma broa de pão, vinda da rua dos padeiros, até que não houvesse mais pão na cidade. E Jeremias permaneceu no pátio da guarda” (Jr 37,21). “Jeremias morrerá de fome, pois não há mais pão na cidade” (Jr 38,9). “A fome dominou a cidade e não havia pão para o povo da cidade” (Jr 52,6).

O pão é humilde e simples, não se dá importância, o pão se entrega sem presunção nem resistência. Nessa humildade generosa concentramos a expressão do nosso agradecimento a Deus. Diria que é a prosa de cada dia.

O vinho, pelo contrário, é a poesia, a propina, a festa. Pão e água é o indispensável: “Para viver, as primeiras coisas são a água, o pão, o vestuário e uma casa para abrigar a própria nudez” (Eclo 29,21). Aos fugitivos oferece-lhes o urgente: “Vinde com água ao encontro dos sedentos… vieram ao encontro dos fugitivos trazendo pão” (Is 21,14). Mas quando se acolhe ou se festeja uma pessoa, se lhe oferece pão e vinho, que equivale a convite, banquete. Quando os israelitas dizem “comeram e beberam”, costuma-se entender vinho (Jz 19,4). Ben Sirac enumera entre as coisas essenciais para a vida humana “flor de farinha, sangue de uva”, com leite, mel, óleo e sal; entende-se para uma vida que não seja mera sobrevivência. Se ao fugitivo se oferece pão e água, ao vencedor que volta da batalha “Melquisedec, rei de Salém, trouxe pão e vinho, e o abençoou” (Gn 14,18).

O vinho é essa propina (a palavra “propina” vem de pino = beber) que colocamos na comida. Também é simples e nobre, e pode ser muito significativo. Como propina, representa o inútil da vida, que dá sentido à vida, sem o qual a vida talvez não valha a pena; o inútil pode ser mais importante do que o útil. Assim o vinho representa a poesia juntamente com a prosa; é como a cor frente a um mundo em branco e preto; é a música frente a rumores e ruídos; é a dança frente ao caminhar; é o jogo frente ao trabalho; é a arte e o artesanato frente à técnica; é o amor frente à seriedade. “Que vida se vive quando falta o vinho? Ele foi criado para a alegria dos homens” (Eclo 31,27).

 

3. O vinho é a alegria: “sentir-se-á alegre, como se tivesse bebido” (Zc 10,7); “para que da terra tire o pão e o vinho, que alegra o coração do homem” (Sl 104,15); “gozo do coração e alegria da alma: eis o que é o vinho, bebido a seu tempo e o necessário”; “o vinho e a arte alegram o coração; melhor do que ambos é o amor à sabedoria” (Eclo 31,28; 40,20).

O último texto nos sugeriu isto: o vinho é a amizade e o amor. “Vinho novo, amigo novo; deixa-o envelhecer, e o beberás com prazer” (Eclo 9,10). O vinho é mais gostoso quando é compartilhado. E é irmão do amor, como repete o Cântico dos Cânticos: “Teus amores são melhores do que o vinho…” (1,2). “Mais que ao vinho, celebremos teu amor” (1,4). “Levou-me ele à adega” (2,4). “Teus amores são melhores do que o vinho” (4,10). “Tua boca é um vinho delicioso” (7,10). “Dar-te-ia a beber vinho perfumado” (8,2). E porque significa o amor e tem cor de sangue, representa também o sacrifício, especialmente sacrifício por amor. Por três vezes o AT chama o vinho “sangue de uvas” (Gn 49,11; Dt 32,14; Eclo 39,26). Recordemos a façanha dos três campeões de Davi, que arriscaram a vida, se sacrificaram para cumprir um desejo, talvez um capricho de seu chefe: “Davi estava então no refúgio, e os filisteus tinham um posto de guarda em Belém. Davi revelou este desejo: ‘Quem me dará de beber da água do poço que existe à porta de Belém?’ Os três valentes abriram passagem através do campo filisteu e tiraram água do poço que existe à porta de Belém, e a trouxeram e ofereceram a Davi; ele, contudo, não quis tomá-la e a ofereceu em libação a Iahweh. Disse ele: ‘Que me livre Iahweh de fazer tal coisa! É o sangue dos homens que foram arriscando a sua vida!’. Por isso ele não quis beber” (2Sm 23,14-17). O vinho, significando o amor e o sacrifício, nos sugere a misteriosa relação que no homem tem o amor com o sacrifício. Não é autêntico o amor que recusa sacrificar-se; não é valioso o sacrifício que não nasce do amor.

Como, além disso, o vinho é gozo, descobre-se a alegria ou satisfação de sacrificar-se por amor. É um paradoxo que o homem possa gozar pelo que sofre: paradoxo que o amor resolve. O vinho é o gozo e o sacrifício é o amor. É o gozo do sacrifício por amor.

Finalmente, o vinho resulta de transmutar a doçura em álcool ou espírito. Entra-nos pelas veias como novo espírito, como dinamismo que liberta e incita, se o tomamos com moderação. O vinho significa tudo isto.

Pois pão e vinho é, Senhor, o que vos oferecemos. Vós os escolhestes, simples e humildes, embora carregados de sentido. Vós nos ensinastes a uni-los e trazê-los à vossa mesa. Vós no-los destes em vossa bondade e agora nós vo-los apresentamos. “Bendito sejais, Senhor Deus do universo, pelo pão, fruto da terra e do trabalho do homem, pelo vinho, fruto da videira e do trabalho do homem, que recebemos de vossa bondade, e agora vos apresentamos”.

A rigor, aqui poderia e deveria terminar minha explicação da eucaristia como ação de graças, como beraká. Só que a fórmula litúrgica acrescenta e antecipa dois elementos essenciais, consagração e comunhão. Poderia reservá-los para seu lugar próprio: seria mais lógico. Posso comentá-lo aqui: será mais coerente. Porque o texto litúrgico é de certa forma uma síntese completa. Tratando aqui do que falta da fórmula, darei em minha exposição a chave de unidade dos elementos principais.

 

4. O texto litúrgico continua: “Para nós se vai tornar pão da vida; para nós se vai tornar cálice da salvação”.

Nós colocamos a mesa, estendemos as toalhas, acendemos luzes, acrescentamos algumas flores; uma bandeja para o pão, um cálice para o vinho. Não são necessárias muitas coisas. E para este banquete minúsculo convidamos nada menos do que a Deus. O livro dos Juízes nos oferece dois relatos ingênuos de homens convidando o Senhor ou o “anjo do Senhor” (seu mensageiro ou sua manifestação). Um deles é Gedeão: “Se encontrei graça aos teus olhos, dá-me um sinal de que és tu quem me fala. Não te afastes daqui, rogo-te, até que eu volte e traga a minha oferenda e a deposite diante de ti. Ele respondeu: ‘Esperarei até que voltes’. Gedeão saiu, preparou um cabrito e, com um almude de farinha, fez pães sem fermento. Pôs a carne num cesto e o caldo numa vasilha, e trouxe-os para debaixo do terebinto. Quando se aproximava, o Anjo de Iahweh lhe disse: ‘Toma a carne e os pães sem fermento e coloca-os sobre esta pedra e derrama o caldo sobre eles’. E Gedeão assim fez. Então o Anjo de Iahweh estendeu a ponta do cajado que tinha na mão e tocou a carne e os pães sem fermento. O fo­go se ergueu da pedra e devorou a carne e os pães sem fermento, e o Anjo de Iahweh desapareceu dos seus olhos” (Jz 6,17-21). É como se o Senhor consumisse o banquete oferecido por meio do fogo, seu ministro. O caso de Manué, pai de Sansão, apresenta algumas variantes: “Permite que te detenhamos e te ofereçamos um cabrito. E o anjo de Iahweh disse a Manué: ‘Ainda que me detivesses, não comeria de tua comida; mas, se quiseres preparar um holocausto, oferece-o a Iahweh’. Então Manué tomou o cabrito, com a oblação e, no rochedo, o ofereceu em holocausto a Iahweh, que realizava coisas maravilhosas. Manué e sua mulher observavam. Ora, subindo a chama do altar para o céu, subiu nessa chama o Anjo de Iahweh; Manué e sua mulher, vendo isso, caíram com o rosto em terra” (Jz 13,15-16a.19-20).

No templo, além dos sacrifícios, há outra oferta mais simplificada, a saber, os doze “pães apresentados” cada semana ao Senhor.

Pois bem, nós o convidamos à nossa mesa e ele aceita o nosso convite, de tal modo que inverte os papéis, e é ele que nos convida, transformando o nosso pão e o nosso vinho. Ao pão pão, ao vinho vinho, diz o refrão. No presente caso não é assim, porque pão e vinho são figuras. Deus toma o pão e o converte em corpo glorificado de seu Filho, para que a vida gloriosa se nos comunique em figura de alimento. Jesus, que deu a vida por nós, quer dar sua vida a nós, sua vida nova indestrutível. Uma forma bem simples e inteligível de comunicar vida: o alimento que ingerimos nos vivifica, nos vitaliza. O pão que mastigamos, deglutimos, digerimos, se desfaz para fazer-se nós; em outras palavras, o assimilamos. Uma parte se incorpora aos nossos tecidos, uma parte se queima, produzindo energia. Podemos falar de matéria e energia, quando consumimos o alimento. Ao consumi-lo, ele se consome, e nós continuamos vivendo e agindo. Jesus se desfaz antes, triturado na paixão e consumado na morte. Já glorificado, não precisa desfazer-se para comunicar-se; simplesmente toma a figura de alimento, de pão. E não comunica um pouco de vida provisória, interina, condenada a morrer, mas instaura e fomenta uma vida que vencerá a morte biológica. “Ele para nós vai se tornar pão da vida”. “Aquele que crê tem a vida eterna. Vossos pais comeram o maná do deserto e morreram. Este pão é o que desce do céu para que não pereça quem dele comer. Eu sou o pão vivo descido do céu. Quem comer deste pão viverá eternamente. O pão que eu darei é a minha carne para a vida do mundo” (Jo 6,47-48.50-51).

Do mesmo modo aceita o vinho e o transforma no sangue glorificado de seu Filho, aquele que derramou na paixão e que agora está vivo. O sangue que é o sacrifício por amor; o dessangrar-se por amor e com gozo. No-lo vai dar em forma de bebida. Não é sangue de vingança, do qual diz Zacarias: “Eles devorarão e calcarão aos pés pedras de arremessar, beberão sangue como se fosse vinho” (Zc 9,15). Não é o sangue da justiça vindicativa, que Isaías descreve: “E por que essa cor vermelha do teu traje? Por que as tuas vestes se parecem com as de alguém que tenha pisado a uva no lagar? — ‘Sozinho pisei a dorna; do meu povo ninguém estava comigo. Pisei as uvas na minha ira, na minha cólera as esmaguei. O seu sangue salpicou as minhas vestes; com isso sujei toda a minha roupa’” (Is 63,2-3). Foi o contrário: mansamente, sem cólera, deixou-se pisar, espremer, e todo ele ficou banhado em sangue. Derramou todo o seu sangue por amor. Não é o sangue do juízo escatológico que Joel anuncia: “Lançai a foice, porque a messe está madura; vinde, pisai, porque o lagar está cheio” (Jl 4,13). É sangue derramado para dar vida. Dá-se a beber em figura de vinho: “ele para nós vai se tornar cálice da salvação”.

Para isso o Pai recebe os nossos dons humildes, para convertê-los em dons excelsos. Trigo triturado como Cristo foi triturado; feito pão e entregue ao homem para desfazer-se dando vida, como Cristo se entregou plenamente pelos homens e torna a entregar-se feito pão. Mosto de uvas esmagadas, como Cristo foi esmagado, e convertido em vinho para dessedentar e reanimar, como Cristo se dessangrou e volta a entregar-se feito vinho, para saciar nossa sede abismal de ser e de viver.

 

5. Trigo que de muitos grãos forma uma fogaça para se repartir entre toda a família, como Cristo, que é unidade de toda a humanidade, se reparte entre todos. Uvas esmagadas e fermentadas, feitas vinho, para firmar um pacto de sangue, para sentir a ebriedade do amor. Assim se entrega Cristo na Eucaristia, e assim nós o recebemos: “Ele será pão da vida, cálice da salvação”.

Mas aqui intervém a diferença decisiva. Quando o homem come pão e bebe vinho, assimila esses elementos. Quando o homem recebe o corpo e o sangue glorificados de Cristo, é Cristo que se assimila aos homens, unindo-os a si. Ao repartir-se entre muitos, quer fazer de todos um novo corpo, uma comunidade cristã. Notemos o adjetivo: Cristo se assimila a nós fazendo-se humano, depois nos assimila a si fazendo-nos cristãos. Ao dar-nos de beber seu sangue, nos faz consanguíneos seus, estabelece uma nova circulação do sangue neste corpo seu que é a Igreja. Passa-se a sentir o pulsar desse sangue no organismo da Igreja.

De modo semelhante, cada cristão deve assimilar-se, assemelhar-se a Cristo. Tem que parecer-se com Cristo como pão, isto é, aprender a ser melhor do que o pão, deve aprender a repartir-se e compartilhar. O que tem e recebeu tem que reparti-lo e compartilhá-lo: o espaço na hospitalidade, o tempo no serviço, as qualidades nas funções. Assim será bom cristão, pão compartilhado pela comunidade. Tem que assemelhar-se a Cristo como vinho: formando um caudal de alegria para compartilhá-la com os que choram, contagiando com o bom humor. Ébrio do Espírito de Cristo, deve viver o amor fraterno, porque todos somos irmãos “de sangue”. Deve aprender o sentido e o valor do sacrifício como selo do amor e fonte de vida.

“Bendito sejais, Senhor Deus do universo, pelo pão (pelo vinho) que recebemos da vossa bondade, fruto da terra (da videira) e do trabalho do homem, que agora vos apresentamos, e para nós vai se tornar pão da vida (cálice da salvação)”.

Pe. Luís Alonso Schökel, sj