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Publicado em número 256 - (pp. 29-35)

A maldade do homem era grande sobre a Terra: Uma leitura de Gênesis 6,1-9,17

Por Equipe do Centro Bíblico Verbo

O beato Antônio Conselheiro, há mais de cem anos, profetizou: “Dias virão em que os rios secarão e a água se tornará rara. O pecado do povo fará tudo ficar de cabeça para baixo. Tudo será transformado. O sertão vai virar mar, e o mar vai virar sertão”. Essa profecia foi retomada pelo padre Cícero Romão e continua sendo um alerta para os nossos dias.

 

— No dia 26 de dezembro de 2004, o mundo todo acompanhou o tsunami ocorrido na Ásia, o qual inundou o sul e o sudeste do continente ao atingir algumas regiões da Indonésia, do Sri Lanka, da Índia e da Tailândia. Essa tragédia ceifou a vida de mais de 280 mil pessoas e deixou várias cidades destruídas. Um verdadeiro dilúvio.

— Nos últimos anos, constantemente ouvimos falar do aquecimento global e de suas consequências, entre as quais as secas, as inundações, os furacões, a fome e o calor excessivo. Segundo as previsões dos cientistas, entre 200 milhões e 600 milhões de pessoas enfrentarão falta de alimentos nos 70 anos seguintes, enquanto inundações litorâneas podem destruir 7 milhões de casas.[1]

 

Diante da realidade de fome, seca e inundações que afetam a vida de milhões de pessoas, sempre nos perguntamos: por quê? Quando aconteceu o tsunami, algumas interpretações de cunho religioso afirmaram: “Deus permitiu a morte dessas pessoas para que a humanidade se desse conta de que precisa melhorar, ser mais sensível à realidade do outro!” Será?

Ontem, como hoje, cada povo, à luz de sua cultura e de sua realidade, reflete sobre a causa dos desastres nacionais: inundações, terremotos, guerras etc. A Bíblia também registra uma história de dilúvio. Os capítulos 6 a 9 do livro do Gênesis apresentam uma história completa sobre esse evento: causas, destruições e recriação. Nela, o povo de Israel afirma que Deus não castiga o ser humano pela maldade deste; é a própria ação humana que continua destruindo o ser humano e a natureza.

A base de sua reflexão é a experiência e a observação da vida cotidiana, especialmente do exílio na Babilônia, da vida sofrida dos deportados de Israel no império tirânico. A história do dilúvio, sua linguagem e simbolismo, é semelhante aos mitos da Mesopotâmia, onde se situa a Babilônia, mas foi adaptada conforme os interesses e a crença religiosa de seus escritores. A história do dilúvio, tecida de experiências vividas pelo povo de Israel, é um alerta e, ao mesmo tempo, uma lição da vida. Uma história de sabedoria.

 

1. Mitos de dilúvio

Ásia, Europa, África, Oceania e as Américas produziram vários relatos sobre o dilúvio, dos quais cerca de 70 são conhecidos! São relatos que nasceram das experiências concretas de vários povos com as inundações. A região da Mesopotâmia, hoje conhecida como Iraque e Síria, não foge à regra. As descobertas arqueológicas comprovam que as narrações mesopotâmicas têm como base inundações nas regiões baixas do Tigre e do Eufrates, uma área de aproximadamente 600 quilômetros, a qual, para os habitantes da região, significava o mundo inteiro. Com base nessa vivência, o povo elabora suas histórias de dilúvio, respondendo à seguinte pergunta: por que as divindades nos castigam? De quem é a culpa?

Um dos mitos do dilúvio mais conhecidos se encontra na epopeia de Gilgamesh, que apresenta algumas semelhanças com o relato bíblico. É um poema babilônico, descoberto nas ruínas da antiga cidade de Nínive, entre 1849 e 1854, em tabuinhas de terracota. Foram encontrados fragmentos dessa história na Palestina e na Anatólia. Uma história muito popular.

A epopeia de Gilgamesh, conservada na biblioteca do rei da Assíria, Assurbanipal, pode ser datada do século VII a.C. De acordo com a história, a morte de Enkidu trouxe grande tormento para o seu amigo Gilgamesh. Por isso, ele parte em busca do segredo da imortalidade, mas chega a um lugar situado além das águas da morte. Nesse local, Utnapishtim desfruta da imortalidade. Gilgamesh quer saber como ele conseguiu a imortalidade e um lugar entre as divindades.

Eis a resposta de Utnapishtim, o amigo de Gilgamesh:

 

Vou revelar-te, Gilgamesh, algo oculto,

e o segredo dos deuses, a ti quero contar.

Shuruppak, a cidade que conheces,

[e] que está situada [à margem] do Eufrates,

esta cidade é antiga, é lá que estavam o deuses.

Suas más disposições levaram os grandes

deuses a desencadear um dilúvio (…).

Homem de Shuruppak, filho de Ubar-Tutu,

passa a demolir tua casa, constrói um barco;

renuncia à riqueza e busca a vida;

despreza os bens e conserva a vida.

Faze subir à barca viventes de todas

as espécies.

 

Que da barca que construirás,

as dimensões se correspondam:

que sua largura e comprimento sejam iguais;

cobre-a como é coberto o Apsu.

Eu compreendi e disse a Ea, meu Senhor:

“[…] meu Senhor, assim será como tu

me disseste;

[fiquei] atento e, assim, o farei![2]

 

De acordo com esse relato da tradição mesopotâmica, o dilúvio foi um acontecimento que atingiu o mundo todo, salvando-se apenas os homens e os animais que estavam na barca; depois de sete dias, a chuva parou e a barca ancorou no monte Nicir. Num primeiro momento, Utnapishtim soltou uma pomba que logo voltou; depois soltou uma andorinha e esta também voltou; por fim, soltou o corvo, que não voltou. Em seguida, soltou todos os animais e ofereceu um sacrifício de ação de graças às divindades.

Quem copiou de quem? Na epopeia de Gilgamesh há muitos elementos semelhantes ao texto bíblico (Gn 6,1-9,17). Vejamos bem: acontece o dilúvio, apenas um homem e um casal de cada espécie de animais se salvam; há um deus que avisa uma pessoa sobre a proximidade da inundação; há a construção de um barco que ancora no mar; o período do dilúvio, de acordo com Gênesis 7,4, é de sete dias; há o sacrifício e a bênção das divindades. Coincidências demais, não!?

Entre a tradição mesopotâmica sobre o dilúvio e a tradição bíblica há muitos pontos em comum, mas também muitas diferenças. De acordo com a epopeia de Gilgamesh, o dilúvio é decorrência das más disposições dos deuses. Os seres humanos oferecem sacrifícios para aplacar a ira das divindades, justificando-se assim os ritos de sacrifícios que correspondiam aos interesses do império. A narrativa bíblica apresenta outro motivo. Vamos retomar o relato de Gênesis?

 

2. “A terra está cheia de violência por causa dos homens”: Gn 6,1-22

Os relatos anteriores sobre Adão, Eva e a serpente (Gn 2,4b-3,24), Caim e Abel (Gn 4,1-16) e Lamec (Gn 4,23-24) mostram a autossuficiência humana, cujas consequências são concentração de bens e de poder e o controle social. O ser humano busca ser como deus; não reconhece Javé como o seu criador. A consequência é a competição, o aumento da violência e a morte. O narrador descreve o desânimo de Deus diante de seu projeto inicial: “Meu espírito não permanecerá no homem, pois ele é carne; não viverá mais que cento e vinte anos” (Gn 6,3; cf. 2,7).

Nos versículos 1-4 do capítulo 6, o autor apresenta uma antiga história sobre a união dos filhos dos deuses com as filhas dos homens. Há muitas interpretações possíveis para esse texto, mas, no contexto das narrativas de Gênesis 1-11, é possível ver a pretensão das pessoas de ser como as divindades. Os filhos de Deus se comportam como donos absolutos do mundo. A vontade deles é que importa: viram as belas filhas dos homens, gostaram delas e as tomaram como suas mulheres. Algo curioso é que, na Bíblia, há relatos de homens poderosos que agiram dessa forma, por exemplo: Davi, quando vê Bersabeia tomando banho, fica boquiaberto com a sua beleza e manda buscá-la para si (2Sm 11,2-5).

De acordo com o relato de Gênesis, a realidade de corrupção provoca a destruição da terra. A expressão “Javé viu” introduz a decisão de uma intervenção (Gn 6,2; 29,31; Ex 2,25; 3,4; 4,3). No primeiro relato da criação, Deus vê a sua obra e conclui que tudo era muito bom (Gn 1,31). No entanto, agora aparece o oposto: “a maldade do homem era grande sobre a terra, e era continuamente mau todo desígnio de seu coração” (Gn 6,5). Esse texto, possivelmente, nasce da realidade de injustiça e violência praticadas pelos dirigentes do Estado, especialmente da Babilônia.

Diante da maldade do ser humano, o autor apresenta Javé de maneira muito humana, vivendo grande conflito interior: “arrependeu-se de ter feito o homem sobre a terra, e afligiu-se o seu coração” (Gn 6,6). A palavra hebraica usada para o verbo arrepender-se é naham, que possui a mesma raiz de Noé. Além do significado de arrepender-se, essa palavra pode ser entendida como doer-se, sentir pesar, consolar-se, compadecer-se, sentir pena e compaixão.

O ser humano pode ter esperança, pois Deus se compadece dele e aponta para uma luz no fim do túnel. O v. 8 começa com Noé, o homem que encontra graça aos olhos de Javé. Ele é descrito como justo e íntegro entre seus contemporâneos, uma pessoa que “andava com Deus”. Essa expressão é usada unicamente para Noé e para Henoc (Gn 5,21-24). O próprio Javé reconhece Noé como justo (Gn 6,8). Ele é o homem que tem no nome a mesma raiz da palavra arrependimento e compaixão. Ele anda e vive com o Deus da gratuidade.

O verbo hebraico sh’hat, cujo sentido pode ser corromper, é usado três vezes em Gn 6,11-12 para descrever a situação da terra. O mesmo verbo também é usado no v. 13 no sentido de exterminar ou desaparecer: “Deus disse a Noé: ‘Chegou o fim de toda carne, eu o decidi, pois a terra está cheia de violência por causa dos homens, e eu os farei desaparecer da terra’” (Gn 6,13.17). A corrupção do ser humano gera a destruição da terra e de todos os seres vivos. Noé recebe a ordem de fazer uma arca, alojando animais de todas as espécies.

Uma arca que não parece nada com um barco: retangular, com três andares, semelhante à concepção de mundo daquela época. É nesse pequeno mundo que estão as sementes da nova humanidade. Arca é um termo que aparece 26 vezes no relato do dilúvio e será empregado mais duas vezes em Ex 2,3.5. É possível que exista uma ligação entre a salvação da humanidade por meio de Noé e a de Israel por Moisés.

No primeiro relato da criação, Deus estabelece uma ordem no universo. No entanto, a maldade humana provoca a desordem. A palavra hebraica dilúvio, mabbûl, significa “o oceano do céu”. De acordo com Gênesis 1,9, Deus ordena: “Que as águas que estão sob o céu se reúnam num só lugar e que apareça o continente”; no dilúvio, a ação é contrária: as comportas do céu se abrem (Gn 7,11). As barreiras instituídas por Deus foram rompidas. As águas de cima e as de baixo se misturam. O continente desaparece, a vida se extingue. Acaba-se a ordem. O dilúvio é uma volta ao caos.

Em meio ao caos, Deus faz uma aliança com Noé e com toda a sua família. A aliança com Noé não exige contrapartida, é gratuidade de Deus: o objetivo é preservar a vida. Desde os inícios da humanidade, Deus é o defensor dos justos e dos oprimidos (Ex 3,7). Na arca, homem, mulher, filhos e um casal de cada ser vivo formam uma só família. Eles carregam a responsabilidade de cuidar do universo, mas o centro da salvação é Noé. Ele, como Moisés e outros grandes líderes do povo de Israel, encontra graça aos olhos de Javé (Ex 33,17).

Em síntese, o capítulo 6 do livro do Gênesis narra as causas do dilúvio e a decisão de Deus de manter a semente da vida por meio de Noé. Numa descrição detalhada, o texto apresenta os preparativos antes da catástrofe: a construção de uma arca e a escolha de animais de cada espécie para conservar a vida. O narrador já havia nos informado sobre a conduta de Noé, agora comprovada por sua ação: “Noé assim fez; tudo o que Deus lhe ordenara, ele o fez” (Gn 6,22).

 

3. “Deus lembrou-se então de Noé”: Gn 7,1-8,22

Tudo está preparado para as águas caírem. Noé, toda a sua família e os animais aguardam o dilúvio na arca por sete dias (Gn 7,1-10). O próprio Javé confirma o motivo de Noé ter sido o escolhido: “É o único justo que vejo diante de mim no meio desta geração” (Gn 7,1). A autossuficiência e a maldade humana impossibilitam o relacionamento entre as pessoas, com todos os seres criados e com Deus. Distanciando-se da imagem de Deus, que é o ser humano, a pessoa se distancia do próprio Deus. Mesmo assim, Deus continua estendendo a sua mão. Dá-nos mais uma chance.

O olhar de Deus pousa sobre Noé, nele repousam as esperanças de restaurar a humanidade (Gn 6,8). Os poderosos, com sua ganância e ambição, distanciam-se do projeto de Deus, baseado na partilha e na solidariedade. São eles que estão provocando a destruição. A salvação da nação não depende dos poderosos (Sf 3,1-3; Mq 4-5). A família de Noé, como o resto de Israel, é responsável pela sobrevivência e restauração do povo. Esse resto pode contar com a ação de Deus, o go’el, aquele que assume a defesa dos oprimidos e inocentes (Gn 4,11.15; 9,6; Nm 35,19).

O dilúvio é descrito como volta ao caos: “nesse dia jorraram todas as fontes do grande abismo e abriram-se as comportas do céu” (Gn 7,11). Romperam-se os diques estabelecidos por Deus. É uma anulação do segundo dia da criação (Gn 1,7). Tudo virou um aguaceiro só: as águas de baixo e as de cima se juntaram, provocando o dilúvio. Mas, afinal, a inundação foi provocada pelo rompimento das comportas do céu ou por uma chuva torrencial (Gn 7,4.12)? É importante lembrar que há duas diferentes redações do dilúvio que se fundiram num mesmo texto.

A mistura das águas já tinha acontecido quando ouvimos que “Javé fechou a porta por fora” (Gn 7,16). Dessa forma, o autor nos lembra que Javé, mesmo mantendo firme o seu propósito de destruir a terra, continua acompanhando os passos do ser humano e protegendo as sementes de uma nova humanidade. Tudo desaparece: “Morreu tudo o que tinha um sopro de vida nas narinas. Isto é, tudo o que estava em terra firme” (Gn 7,22).

Na terra não sobrou sequer um fio de vida, tudo se extinguiu. É interessante perceber que não são mencionados os animais que vivem no mar. De fato, o que está em questão é a destruição da terra por causa das situações de pecado e da maldição sobre o solo (Gn 3,17). Dessa forma, simbolicamente, as águas purificam a terra e a preparam para nova relação dos seres humanos com ela.

Depois da catástrofe, ouvimos uma palavra de esperança: “Deus lembrou-se então de Noé e de todas as feras e de todos os animais domésticos que estavam com ele na arca” (Gn 8,1). Lembrar-se tem o sentido de compadecer-se (Gn 19,29; 30,22; Jr 31,20; Sl 8,5). Novamente nos lembramos da primeira criação: sopra o vento (Gn 1,2), separam-se as águas inferiores e superiores (Gn 1,7), aparecem a terra firme (Gn 1,9) e as plantas (Gn 1,11), as aves voltam ao firmamento (Gn 1,20), o ser humano sai para repovoar a terra (Gn 1,28). Todos esses passos se verificam novamente em Gênesis 8,1-12: Deus ordena o caos, recria a ordem.

Para saber se as águas tinham baixado, Noé solta uma pomba, que, não encontrando lugar onde pousar, retorna para a arca. Em seguida, ela é novamente solta e volta com um ramo de oliveira no bico, sinal de vida nova. Pela terceira vez, Noé solta a pomba, que não volta. Assim, ele compreende que a terra está seca. Já pode sair. Em seguida, o texto acrescenta: “Então assim falou Deus a Noé: ‘Sai da arca, tu e tua mulher, teus filhos e as mulheres de teus filhos contigo’” (Gn 8,15). Noé recebe a ordem de sair e fazer sair todos os que se encontram na arca. A bênção de Deus os acompanha: “que pululem sobre a terra, sejam fecundos e multipliquem-se sobre a terra” (Gn 8,17b). Essa bênção a Noé e a seus filhos já havia aparecido no primeiro relato da criação (Gn 1,28; 9,1.7).

Como no mito mesopotâmico de Gilgamesh, Noé constrói um altar e oferece sacrifícios para Javé; o ser humano reconhece que Deus é o criador. Esse relato, que nasceu no meio do povo, recebeu alterações da tradição sacerdotal e da teologia do puro e do impuro. O texto contém uma camada popular e outra oficial. Porém, o mais importante é a promessa que não haverá mais maldição: “Enquanto durar a terra, semeadura e colheita, frio e calor, verão e inverno, dia e noite não hão de faltar” (Gn 8,22).

O ritmo constante dos dias e do ano permite a vida das plantas, dos animais e das pessoas. É o sonho e o desejo de que a vida tenha condições de florescer, não obstante a dura realidade dos exilados. E o mais importante: Deus está presente e renova a sua aliança. Ele é o protetor e o libertador do povo oprimido, “aquele que te modelou, ó Israel: não temas, porque te resgatei, chamei-te pelo teu nome; tu és meu” (Is 43,1). Vamos continuar lendo a história do dilúvio e entender qual é o projeto de Deus para a formação da nova humanidade.

 

4. “Eis que estabeleço minha aliança convosco”: Gn 9,1-17

A primeira cena do capítulo 9,1-7 está emoldurada com uma bênção. No v. 1, Noé e seus filhos são abençoados; no v. 7, a mesma bênção se repete, acrescentando: “Dominai a terra”. A bênção é um sinal da proteção especial de Deus (Gn 12,3; 14,9). Ela não é só desejo ou palavra de consolo, mas também garantia de vida digna. A bênção de Deus inclui prosperidade, vida longa e descendência (cf. Sl 128). Ela se manifesta na multiplicação da vida: “Sede fecundos, multiplicai-vos e enchei a terra” (Gn 9,1.7).

Toda a natureza e todo ser vivo estão entregues nas mãos do ser humano (Gn 9,2). Antes do dilúvio, a erva é o alimento de todos (Gn 1,29-30). Depois do dilúvio, há outra ordem: “Tudo o que se move e possui vida vos servirá como alimento, tudo isso eu vos dou, como vos dei a verdura das plantas” (Gn 9,3). A partir de então, o ser humano pode matar outros animais para se alimentar. Matar para se alimentar é muito perigoso, por isso se faz necessário impor proibições.

“Não comereis a carne com sua vida, isto é, com o sangue” (Gn 9,4). A tradição judaica acredita que a vida está no sangue. Ela pertence exclusivamente a Deus. Trata-se do respeito à vida, de não matar os animais simplesmente por diversão ou demonstração de poder. Quanto ao ser humano, a proibição de matá-lo é mais dura ainda, pois o próprio Deus pedirá contas disso. A expressão “pedirei contas” é repetida três vezes no v. 5, indicando que Deus exercerá a vingança contra quem tirar a vida de outra pessoa. Ele age como o parente próximo, que tem o direito de vingar o sangue (Gn 4,10).

“Quem derrama o sangue do homem, pelo homem terá seu sangue derramado. Pois à imagem de Deus o homem foi feito” (Gn 9,6). De acordo com as leis antigas, quem mata uma pessoa está sujeita à justiça daqueles que têm o direito de exercer a vingança (Nm 35,19). Quem respeita a vida é portador da bênção de Deus.

A segunda cena deste capítulo começa com a aliança e termina com o sinal da aliança (Gn 9,8.17). A aliança com Deus possui características diferentes em cada etapa da história de Israel. No início, a aliança é feita com Noé e com toda a criação, e o sinal é o arco. Em seguida, com Abraão e os seus descendentes, o sinal é a circuncisão (Gn 17); mais tarde, no período do pós-exílio, a aliança, tendo como patrono Moisés, será exclusiva para Israel e exigirá a obediência à Lei, especialmente à lei do sábado (Ex 19,5; 34,27-28; 24,7-8; Ex 31,16-17).

A aliança de Deus com Noé e com todas as criaturas é gratuita. Não há exigências. A sua aliança é em defesa da vida da terra, de todos os animais e do próprio ser humano: “Não haverá mais dilúvio para devastar a terra” (Gn 9,11). A aliança com toda a natureza é um tema presente em outros livros proféticos. Na profecia de Oseias, lemos: “Farei em favor deles, naquele dia, um pacto com os animais do campo, com as aves do céu e com os répteis da terra” (Os 2,20).

O termo aliança, berit, é repetido sete vezes neste capítulo (Gn 9,9.11.12.13.15.16.17). O compromisso é firmado com toda a humanidade e com todas as criaturas. O sinal é o arco: “porei meu arco na nuvem e ele se tornará um sinal da aliança entre mim e a terra” (Gn 9,13). Deus institui um sinal para se lembrar de sua aliança. Será que ele tem o hábito de esquecer? Não. É apenas uma forma simbólica de falar. A nuvem é o veículo de Deus (Is 19,1; Sl 104,3). O arco é o símbolo da presença divina (Ez 1,28)

O surgimento do arco-íris depois de uma chuva forte sempre traz uma sensação de bem-estar, de novo frescor. No campo ou nas pequenas cidades, há muitas pessoas que costumam repetir: é o sinal da aliança de Deus. O arco-íris é portador de boas notícias: Deus está sempre disposto a manter a sua aliança. O seu projeto é de um mundo solidário e justo.

O convite do grupo profético no exílio continua válido e aberto a todos(as): “Ah! Todos que tendes sede, vinde à água. Vós, os que não tendes dinheiro, vinde, comprai e comei; comprai sem dinheiro e sem pagar, vinho e leite. Escutai-me e vinde a mim, ouvi-me e vivereis. Farei convosco uma aliança eterna, assegurando-vos as graças prometidas a Davi” (Is 55,1.3). Deus é nosso aliado na construção de uma nova sociedade. Demo-nos as mãos e sejamos, à imagem e semelhança dele, portadores(as) de bênçãos.

 

5. A realidade de injustiça atinge toda a natureza

Nas primeiras páginas da Bíblia, a transgressão de Adão e Eva provoca ruptura no relacionamento com Deus e com a terra. No relato de Caim e Abel, vemos que a inveja e as desigualdades atingem a vida do irmão e da irmã. À medida que a realidade de injustiça aumenta, atinge toda a natureza. A autossuficiência do ser humano continua ameaçando a existência em nosso planeta.

O dilúvio é consequência da maldade humana e da realidade de violência. Tanto a decisão de destruir o mundo quanto a de salvá-lo partem de Deus. O mito babilônico, em suas várias versões, é mais antigo do que os relatos de Gênesis 6-9. Provavelmente, os autores do relato bíblico tinham conhecimento dessas histórias e as adaptaram conforme a sua realidade.

A intenção do relato bíblico é apresentar o dilúvio como um ato divino por causa da corrupção da humanidade. As narrativas de Gênesis 1,1 até 6,4 registram situações de pecado individual e coletivo. Deus é descrito como o Senhor de toda a história, Criador do universo e de todos os seres vivos. Num ato de amor, ele cria; e, por causa da maldade humana, ele destrói. A leitura desses textos transmite a consciência de que a situação de pecado traz sofrimento e destruição para os seres vivos, para toda a natureza e para a sociedade.

Toda ação contra a vida é uma ruptura da aliança com Deus: “Pereceu então toda a carne que se move sobre a terra: aves, animais domésticos, feras, tudo o que fervilha sobre a terra e todos os homens. Morreu tudo o que tinha sopro de vida nas narinas” (Gn 7,21-22a). Nas tradições bíblicas há vários textos que reafirmam essa verdade (Os 4,1-3).

Na mentalidade dos profetas, Deus faz justiça aos oprimidos e fracos, destruindo o opressor. Na profecia de Amós, lemos: “Ele que faz as Plêiades e o Órion, que transforma as trevas em manhã, que escurece o dia em noite, que convoca as águas do mar e as despeja sobre a face da terra, Javé é o seu nome! Ele faz cair devastação sobre aquele que é forte, e a devastação virá sobre a cidadela” (Am 5,8-9).

A profecia de Sofonias ergue o seu grito contra a política opressora dos governantes. Ele anuncia a ação de Javé: “Na verdade suprirei tudo da face da terra, oráculo de Javé. Suprimirei os pássaros do céu e os peixes do mar, farei tropeçar os perversos e aniquilarei os homens da face da terra, oráculo de Javé” (Sf 1,2-3). Na realidade, são as situações de injustiça e exploração que estão acabando com a vida do povo e destruindo a natureza (Sf 1,2-2,3).

Um pouco antes do exílio da Babilônia, o profeta Jeremias denuncia a situação de destruição, consequência da ganância e da ambição dos governantes. A voz do profeta continua ressoando em nossos ouvidos: “Sim, meu povo é tolo, eles não conhecem, são filhos insensatos, não têm inteligência; são sábios para o mal, mas não sabem fazer o bem!” (Jr 4,22). Em seguida, descreve a terra como um imenso deserto: “Porque assim disse Javé: a terra será devastada, mas não a aniquilarei completamente” (Jr 4,27).

O profeta Jeremias compara a ação imperialista ao dilúvio: “É o Egito que subia como o Nilo e como os rios agitavam as águas. Ele dizia: ‘Subirei, cobrirei a terra e destruirei a cidade e os seus habitantes’” (Jr 46,8). Outras pessoas que deram continuidade à profecia de Jeremias veem a destruição da Babilônia como um ato de Deus: “Porque Javé devasta a Babilônia e acaba com o seu ruído, ainda que suas ondas bramam como grandes águas e ressoe o fragor de sua voz” (Jr 51,55).

O tema do dilúvio atravessa a história de Israel como símbolo da destruição causada pela maldade humana e como a esperança a partir de Noé. No exílio da Babilônia, na situação de abandono e destruição provocada pelos pecados da elite de Israel (Jr 23,1-6; Ez 34,1-31), um grupo recorda a promessa de Deus e sua fidelidade: “Como nos dias de Noé, quando jurei que as águas nunca mais inundariam a terra, do mesmo modo juro agora que nunca mais me encolerizarei contra ti, que não mais te ameaçarei. Os montes podem mudar de lugar e as colinas podem abalar-se, porém meu amor não mudará, minha aliança de paz não será abalada, diz Javé, aquele que se compadece de ti” (Is 54,9-10).

Os relatos em torno do dilúvio em Gn 6-9 contêm uma promessa de vida: “Eu não amaldiçoarei nunca mais a terra por causa do homem… Nunca mais destruirei todos os viventes” (Gn 8,21). Não, Deus não destrói. A sua aliança com o ser humano é feita sem exigir nada em troca. É feita na gratuidade. Mas esse gesto de amor está sem resposta, pois a terra continua sendo destruída pela ganância e pela ambição de grupos poderosos. O aquecimento global provoca furacões, secas, inundações e incêndios nas florestas. A vida está ameaçada, e ninguém está a salvo.

O efeito estufa é resultado das atividades humanas, especialmente das indústrias que lançam vários gases na atmosfera. Esses gases formam uma camada em torno do planeta e impedem que a radiação solar retorne ao espaço. Com o Tratado de Kyoto, em 2005, os países se comprometeram a reduzir em 5% as emissões de dióxido de carbono em relação aos níveis de 1990. Os Estados Unidos, responsáveis por 25% de todo o gás carbônico emitido no planeta, não assinaram esse tratado. Os dados são alarmantes. O nível de emissão de gases continua subindo. De acordo com dados da ONU, em 2005 aconteceram 360 desastres naturais, dos quais a maioria foi provocada pelo aquecimento global. Vejamos os fatos: foram 168 inundações, 69 tornados e furacões e 22 secas que afetaram a vida de 154 milhões de pessoas.[3]

A política neoliberal, concentradora de renda e de poder, continua destruindo a vida. Como podemos pressionar os governos para mudar as políticas de desenvolvimento em proveito de uma economia solidária e sustentável? É importante que todas e todos tomemos consciência da gravidade do momento. Como pessoas, grupos e comunidades, podemos somar forças com outros grupos que lutam pela preservação do meio ambiente. Como seres humanos, somos chamados a viver em harmonia com toda a criação. Há urgência em dar uma resposta à nossa vocação! Que possamos viver de maneira integrada com todo o universo. Respeitemos este chão sagrado que é a nossa casa.

 

Bom dia, natureza, pulmão da terra mãe

Portal da cor, futuro, cada nascer do sol

Carinho, companheiro

É como se a paz

Cobrisse o mundo inteiro

Terra, água, fogo e ar

Quero o sabor, o som

Quero tocar, visão

Cheiro de vida e um mar de gerações

Procuro a resposta

Por que criar a dor?

Se quando estamos juntos

Temos sonho, força e amor

Gema da criação

Herdeiro do pintor

Dono da manhã

Do sim, do não

Coragem, companheiro

Pra que fechar a voz

Se a força do desejo

Pulsa em cada um de nós?[4]

 

Renovemos nossa aliança com o Deus da vida, com todos os seres vivos e com toda a natureza: “Não haverá mais dilúvio para devastar a terra” (Gn 9,11c).

 



[1] Aquecimento deixará milhões famintos e sem água, diz estudo. Disponível em: <www.noticias.uol.com.br>. Acesso em: 30 jan. 2007.

[2] Texto extraído do livro A criação e o dilúvio segundo os textos do Oriente Médio Antigo. São Paulo: Paulus, 1990, p. 59.

[3] Jaime Klintowitz. “Apocalipse já”. Veja, São Paulo, edição 1.961, ano 39, nº 24, pp. 75-76.

[4] Milton Nascimento. “Portal da cor”. Ricardo Silveira; Milton Nascimento [Compositores]. In: Minha história. São Paulo: PolyGram, [1993?]. 1 CD. Faixa 4.

Equipe do Centro Bíblico Verbo