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Publicado em março-abril de 2010 - ano 51 - número 271 - (pp. 11-20)

A quem servir: a Deus ou ao dinheiro? Reflexão à luz de Mateus 6,24

Por Valter Luiz Lara

A semana inteira fiquei esperando

Pra te ver sorrindo, pra te ver cantando

Quando a gente ama não pensa em dinheiro

Só se quer amar

(Tim Maia)

INTRODUÇÃO

A pergunta do título deste artigo é simples e direta. No entanto, o texto de Mt 6,24 é ainda muito mais incisivo e contundente, pois dirige ao leitor um dito de Jesus em forma de sentença que nega categoricamente ser possível determinado tipo de atitude:

a) Ninguém pode servir a dois senhores:

b) ou odiará a um e amará o outro, ou se apegará a um e desprezará o outro.

c) Não podeis servir a Deus e ao dinheiro (Mt 6,24).

 

O conteúdo desse versículo é constatação da realidade que envolve a vida das pessoas em geral. Todos estão incluídos em duas possibilidades de comportamento: ou se serve a Deus, ou se serve ao dinheiro. Do ponto de vista do texto, não há meio-termo ou alternativa fora dessas duas possibilidades de serviço. Por isso, sua conclusão é pela negação de uma alternativa que possa juntar num mesmo sujeito os dois serviços.

O texto apresenta-se de maneira proverbial e disjuntiva (ou isto, ou aquilo), comunicando uma constatação de Jesus acerca da conduta humana diante destas duas realidades: “Deus” e “dinheiro”. Depois de ouvir ou ler sentença tão clara e direta, não há como não perguntar: de que lado estamos, do lado de Deus ou do dinheiro? Pelo menos parece ter sido essa a intenção de quem a pronunciou e de quem a redigiu.

 

1. Indagações do leitor atual diante de Mt 6,24

Trazendo essa sentença para os nossos dias, não seria difícil extrair dela alguns ensinamentos que nos levariam a considerar ideias simples como avareza, ganância e egoísmo e outros comportamentos universalmente reconhecidos como expressão de absolutização do amor ao dinheiro acima de qualquer coisa, transformando o dinheiro em deus, em valor absoluto da vida da gente. Pelo menos em tese, muitos de nós admitimos que esses comportamentos são reprováveis e contrários a Deus. Sim, esse ensinamento não parece contradizer a mensagem do texto. Mas, por outro lado, proponho sairmos corajosamente do “em tese” e atentarmos para o mundo real com o qual estamos quase todos comprometidos cotidianamente.

A forma pela qual atualmente organizamos a vida em sociedade nos faz extremamente dependentes do dinheiro. De alguma forma, somos todos — uns mais, outros menos — servos, necessitados e desejosos do dinheiro para, no mínimo, sobrevivermos: comprar o pão, o leite, pagar o aluguel, a prestação, o passe do ônibus, a conta de luz, da água e do supermercado. Como de fato, então, negá-lo? Ou não se trata disso? Mt 6,24 seria apenas apelo para os que vivem da especulação financeira e trabalham para acumular capital sem se importar com os meios que utilizam para tais fins e com as consequências danosas desse comportamento para os demais cidadãos? Podemos fazer uma concessão e considerar esse versículo não como negação do dinheiro, mas simplesmente como orientação para não fazer dele senhor de nossa vida? Podemos adotar essa linha de análise e nos contentar com ela ou há mais para extrair de Mt 6,24?

 

2. Para além de uma interpretação subjetiva e moralista

A interpretação de apelo moral contra o dinheiro entendida apenas como apego exagerado pode simplificar muitas coisas e esconder outras tantas. Pode, por exemplo, individualizar a interpretação e dar-lhe um tom intimista, formando gente extremamente escrupulosa em relação ao uso do dinheiro — o que de per si não parece estar errado, mas não dá conta de toda a realidade que a sentença pode querer abarcar. Esse tipo de interpretação, ao fechar-se no mundo da subjetividade moral, não consegue enxergar o mundo mais objetivo das relações econômicas, sociais e políticas do qual o dinheiro é componente estruturante, senão essencial, no que tange à forma pela qual a sociedade inteira se organiza. Ignorar esse mundo, que inclui evidentemente o comportamento individual, mas não se restringe à subjetividade moral, pode nos aprisionar numa interpretação inocente e acrítica das estruturas das relações em que o dinheiro aparece não apenas como objeto de nosso desejo, mas, sobretudo, como realidade organizadora do nosso sistema de vida. Dessa forma, vamos considerar Mt 6,24 à luz de nossa situação real de dependência em relação ao dinheiro e à luz do papel central que ele exerce na dinâmica das relações sociais. Dinheiro, em forma de capital, tal como pode ser considerado hoje, sem dúvida é centro estruturador do funcionamento da sociedade. Por isso, permitiu aos primeiros estudiosos da sociedade industrial chamá-la de capitalista. Em sintonia com esse pressuposto, sugerimos como proposta de análise um percurso que pode nos ajudar a verificar o significado mais preciso assumido por Mt 6,24 ao ser pronunciado em seu contexto original, mais diretamente ligado aos interlocutores do tempo de Jesus.

O ponto de partida deve ser uma avaliação crítica do papel desempenhado pelo dinheiro no contexto atual e utilizá-la como pré-texto e condição para perguntarmos se ele exerce ou não as mesmas funções no contexto específico da sociedade do tempo de Jesus. Desse modo, abre-se a possibilidade de compreensão não apenas do que a nossa subjetividade sociocultural impõe ao texto, mas também do que, de fato, dele se pode extrair de instigante para a complexa realidade em que vivemos; e tudo isso sem perder a fidelidade ao que o dito de Jesus pode ter significado aos seus interlocutores mais próximos.

 

3. O papel e o significado do dinheiro em nossa sociedade à luz do conflito “capital versus trabalho”

No mundo atual, dominado pelo sistema de mercado, dinheiro representa poder de acesso às mercadorias. O conceito de mercado aqui assumido é bem abrangente; supõe não só os supermercados, lojas ou feiras nos quais trocamos dinheiro por mercadorias, mas a totalidade de todos esses estabelecimentos de compra e venda. Inclui leis, processos, sujeitos envolvidos e princípios que marcam relações entre pessoas, produção e consumo de mercadorias e, de certa forma, a própria divisão social do trabalho. No caso específico do mercado de trabalho, predomina o contrato sob a forma de aluguel da força de trabalho. Aluga-se — por meio do poder e do dinheiro dos que detêm a propriedade do capital em forma de meios de produção — a força de trabalho (pago usualmente sob a forma de salário) dos que não possuem outra coisa para adquirir dinheiro a não ser sua capacidade para o trabalho.

 

3.1. Só o trabalho gera dinheiro?

Na vida da grande massa de trabalhadores do mundo inteiro, sim: só o trabalho gera dinheiro. E assim, determinados e subordinados pela lógica do mercado neste nosso mundo, para eles a posse de dinheiro é condição primeira e irremediável para a posse de bens e acesso a serviços. Embora a grande maioria busque obter dinheiro por meio de seu trabalho, felizmente ou infelizmente — depende de quem julga — há inúmeras outras possibilidades legais e ilegais de consegui-lo sem ter de trabalhar.

Em tese — pois na prática há variações, desvios e desmandos nas emissões de moeda pelos governos —, do ponto de vista da ciência econômica, o montante em cédulas e moedas que circula em dada sociedade deve representar o valor equivalente ao total da riqueza produzida pelo trabalho. Essa riqueza é medida segundo a quantidade total de bens e serviços produzidos em determinado período — cujo resultado é expresso sob a fórmula designada por PIB (Produto Interno Bruto). Daí a teoria de Adam Smith — autor considerado o pai da sociedade de livre mercado —, segundo a qual capital pressupõe trabalho produtivo e, por isso, a riqueza das nações deve estar presumida na capacidade de produção pelo trabalho (Smith, 1983, p. 35; pp. 57-75).

Portanto, segundo a mesma teoria, trabalho gera capital, embora capital investido e acumulado possa também gerar trabalho. Na prática, porém, o fato nu e cru é que existe capital sem a necessária colaboração e implicação do trabalho. Há bens que já estão dados para a sociedade e independem do trabalho: terra e as inúmeras fontes de energia presentes na natureza, incluindo fauna e flora, são bons exemplos. A apropriação privada de tais bens os transforma em capital privado, provocando na sociedade uma desigualdade imensa, pois cria o grupo dos que têm a posse ou o usufruto desses bens e o grupo dos que não têm acesso a eles (Rousseau, 1999, p. 203).

Nesse caso, o trabalho fica refém do capital. A terra, por exemplo, é meio de produção capaz de gerar mais capital com base no trabalho, mas, quando a sua posse ou usufruto é restrita a poucos, o trabalho acaba ficando subordinado aos interesses de quem detém a propriedade do capital, os quais nem sempre são produtivos e não poucas vezes são meramente especulativos. O nosso dia a dia vivido no sistema capitalista de produção parece realmente demonstrar o contrário da teoria de Adam Smith: dinheiro tem o poder de gerar mais dinheiro sem precisar do trabalho, como já demonstramos. Todos sabem que não são poucos os que vivem de renda e de especulação financeira em prejuízo do investimento produtivo gerador de emprego e benefício social. A exceção, nesse caso, reúne a imensa maioria, os que vivem apenas do suor de seu trabalho e são obrigados a alugar sua força de trabalho como garantia para ter acesso ao dinheiro e ao que ele, por sua vez, é capaz de trazer em bens e serviços.

 

3.2. Apropriação privada dos meios de produção na origem da oposição entre capital e trabalho

Da oposição entre capital e trabalho deriva a divisão social básica da sociedade de classes: aqueles que só têm o trabalho como meio para adquirir os bens necessários para a sua sobrevivência e aqueles que concentram para si mesmos a posse privada dos meios de produção (João Paulo II, 1981, p. 26).

A terra é só um exemplo, pois o avanço e a aceleração do desenvolvimento das forças produtivas acabaram ampliando a variedade dos meios de produção. Ciência, conhecimento e tecnologia, meios de transporte, fontes, redes e estruturas de armazenamento e distribuição de energia, além do conjunto dos meios de comunicação, são outros bons exemplos de meios de produção apropriados por particulares. A posse privada desses meios numa sociedade como a nossa é, por um lado, direito e expressão de livre iniciativa e, por outro, expressão de desigualdade e injustiça social.

 

3.3. O predomínio do capital sobre o trabalho

A disputa pela posse da terra e pelo direito ao trabalho livre e autônomo nela tem sido um dos maiores problemas da história humana e ainda é questão não resolvida na maior parte do planeta, principalmente no Brasil, causando fome, violência e morte.

O que temos então é o predomínio do capital sobre o trabalho, injustiça denunciada inúmeras vezes pela Igreja em suas encíclicas sociais desde Leão XIII (Bigo e D’Ávila, 1986). Com base nessa consciência do papel ambíguo do dinheiro concebido pelo viés do conflito “capital versus trabalho” é que propomos a leitura e aproximação de Mt 6,24. Sua interpretação deve ser feita segundo a consciência crítica do nosso contexto atual na consideração desse modelo de organização social e econômica de produção capitalista. Caso contrário, vamos continuar numa linha de interpretação moralista e individual, prescrevendo escrúpulos com relação ao uso do dinheiro, sem vislumbrar a crítica ao sistema injusto que o erige acima do trabalho, negando vida digna à maioria dos trabalhadores — privados do acesso aos bens destinados por Deus ao usufruto de todos os seus filhos.

Por isso, é preciso verificar, para dispormos de um termo de comparação com a nossa sociedade, os casos em que comunidades humanas vivem sem dinheiro, onde não existe o conflito entre capital e trabalho. Em seguida, voltando no tempo, é preciso investigar as origens do dinheiro para notar exatamente sua função original e sua relevância relativa em sociedades pré-capitalistas, sobretudo em rincões onde se vive direta e mais exclusivamente em função do trabalho apenas para a subsistência da comunidade, com pouca ou quase nenhuma produção de excedente.

 

4. Sociedades sem dinheiro e a origem da moeda

Não precisamos ser economistas para sabermos que o dinheiro é uma realidade em forma de moeda, nota (cédulas impressas pelo governo mediante o Banco Central) ou outro meio qualquer de crédito, cheque, ações ou outro valor que permite a troca das mercadorias no mundo dos intercâmbios comerciais. Dinheiro representa poder de troca.

Sem dinheiro ou com pouco dinheiro, o sujeito está condicionado à situação de miséria e exclusão social. Pelo menos é o que revela nossa experiência no dia a dia.

Mas nem sempre foi assim. Os seres humanos nem sempre viveram sob o domínio de sistemas econômicos monetários, isto é, comandados por valores centrados na cunhagem de moedas ou de cédulas.

Antes de prosseguirmos a análise, já podemos vislumbrar alternativas de interpretação de Mt 6,24 cujo teor ultrapasse a leitura ingênua e moralista denunciada por nós anteriormente. Afinal, se houve formas de organização social e de produção econômica não baseadas no dinheiro, há então possibilidade de ver no dito de Jesus mais do que a negação pura e simples do serviço ao dinheiro como contrário a Deus — ver também a proposição de outro sistema de organização socioeconômica capaz de sobreviver sem dinheiro? Ou ainda, será que há — presumido na fala de Jesus — algum tipo de organização socioeconômica que confira um papel diferente, menor ou secundário ao dinheiro e no qual usá-lo não implique servi-lo como a um deus em substituição às exigências do serviço ao Deus verdadeiro? Essa questão nos faz perguntar pelas origens do dinheiro e pelo modo como a sociedade do tempo de Jesus estruturava suas relações com base nele.

Resta-nos, assim, ler o texto de Mt 6,24 à luz do contexto, buscando modelos dominantes e alternativos possíveis que possam ter servido como pano de fundo histórico e social para a crítica contundente ao dinheiro ali presente. Mas primeiro vamos às origens do dinheiro na sociedade humana.

Na origem do dinheiro está a cunhagem de moedas, inventada para facilitar e favorecer as trocas em espécie, o que tradicionalmente foi chamado de escambo. O rei da Lídia, por volta dos séculos VIII e VII a.C., em região próxima da antiga Grécia, ficou conhecido como o primeiro a cunhar moedas. Entretanto, a circulação de moedas, durante muito tempo, permaneceu restrita às cidades e ao ambiente do comércio realizado nos meios urbanos. As comunidades humanas continuaram a viver segundo o escambo, trocando seus produtos e serviços segundo o valor de uso ditado pelas necessidades do cotidiano.

Mesmo com a cunhagem de metais preciosos (a princípio ouro, prata, cobre e bronze), que introduziu valores monetários previamente estipulados em unidades diversificadas, facilitando as trocas comerciais, as relações entre os camponeses produtores em economias de subsistência com pouca ou quase nenhuma produção de excedente continuaram a ser dominadas pelo escambo. Em muitas sociedades desse tipo, em comunidades menos complexas (tribais, autóctones e indígenas), o sistema das trocas em espécie funciona até hoje. O dinheiro, em forma de moeda, penetrou a praça do mercado, mas só aos poucos, pelo domínio da cidade sobre o campo, é que, pela via da imposição de sistemas tributários cada vez mais complexos, chegou também ao mundo dos camponeses.

 

5. O dinheiro na sociedade do tempo de Jesus

A Palestina do tempo de Jesus estava inteiramente subordinada ao domínio externo do império romano e de certa forma procurava manter os valores de suas tradições culturais, convivendo em muitos lugares, sobretudo nas cidades, com forte influência dos costumes propagados pela difusão da cultura grega.

 

5.1. Sociedade escravocrata

No que se refere ao padrão dos relacionamentos sociais, o mundo helênico se constituiu historicamente pelo predomínio da relação “senhor versus escravo” como sua base produtiva econômica. Com o domínio de Roma, essa relação se expandiu ainda mais. Havia outras formas de relacionamento social, mas essa fundamentava a ordem de todos os valores da vida econômica, social, política e ideológica. Para compreendermos melhor o que significava tal relação como base da organização social, basta lembrar que, nos momentos áureos do predomínio de Roma, a “cidade eterna” chegou a possuir quase ⅔ de escravos na composição de sua população. Não é por acaso que o Novo Testamento está cheio de imagens referindo-se à relação “senhor-escravo” e ao verbo “servir”. Não se trata de relação meramente voluntária, como pode sugerir a palavra “servo”, “servidor”, quando traduzimos para o português a palavra doulos do grego. A relação do senhor com seu servo é marcada por um código e contrato jurídico, com implicações e deveres nas dimensões econômicas, sociais e políticas. Conforme definia o estatuto jurídico romano, escravo era instrumentum vocalicum, isto é, coisa que fala, propriedade absoluta de seu senhor.

 

5.2. Relações desiguais clientelistas

Ao lado da estrutura das relações entre senhor e escravo, havia outra ainda mais abrangente que moldava a diferenciação ou assimetria social em todas as esferas da realidade, atingindo todos os indivíduos e pondo-os uns diante dos outros segundo relações de dependência. Essa relação classificava qualquer pessoa numa situação cuja ordem a definia como “inferior” ou “superior” diante dos outros, mas raramente como igual, mesmo sendo da mesma categoria ou origem social. Assim se estabeleciam vínculos de dependência não só entre senhor e escravo, mas entre senhores, escravos e cidadãos, também dentro de suas próprias classes sociais, de modo a criar uma escala gigantesca de relações em que prevalecia o critério da sujeição do inferior ao superior, chamada de relação clientelista: patrono versus cliente.

Todas as classes sociais estavam submetidas ao modelo de subordinação, lealdade e obediência que o inferior devia ao superior. Sempre havia, na pirâmide social romana, alguém considerado mais forte, de maior status social, político ou econômico, estabelecido um ou mais degraus acima da condição social de outrem — exceto o imperador, patrono de todos e cliente de ninguém. Na maioria das vezes, o patrono era alguém com considerável posse, capaz de assistir às necessidades urgentes ligadas à vida de seus clientes. Seu poder econômico, status social e prestígio político deviam estar acima dos que, em troca, lhe podiam prestar homenagem, apoio, prestígio e serviço. Havia uma relação de lealdade e fidelidade entre ambas as partes. O patrono devia ajudar seus clientes em momentos de necessidade, e, por sua vez, os clientes, fossem escravos ou cidadãos livres de menores posses, poder e status, deviam oferecer apoio, elogio, cuidados, obediência e serviços ao patrono.

Na relação patrono­–cliente há uma oposição dentro de um quadro estrutural de mútua dependência e cumplicidade social. É exatamente isso que ideologicamente justificava a aceitação da desigualdade e injustiça presentes na totalidade das relações sociais do mundo romano (Moxnes, 1995, pp. 48-49).

 

5.3. Função do dinheiro na sociedade e no tempo de Jesus: cidade versus campo

Nas cidades impera a lógica do mercado. Trata-se de lugar onde ocorrem os intercâmbios comerciais, onde se troca tudo, de moedas a escravos, de alimentos e gêneros de primeira necessidade a artigos sofisticados consumidos pela elite, como vestes finas e adornos requintados. Nesse mundo, o dinheiro é imprescindível. Riqueza é sinônimo de poder, status e acesso aos bens. Nas cidades encontra-se, ademais, o mercado em que se pode fazer compra e venda de escravos; nelas, as relações clientelistas são muito mais explícitas, pois patronos usam do poder e prestígio que sua riqueza lhes confere para trocar favores com gente disposta a mantê-los no poder. O caráter centralizador da economia é garantido pela presença sempre eficiente da força coercitiva da polícia local ou romana e pelo ordenamento jurídico do sistema de cobrança dos tributos, cujo patrono máximo é o imperador.

Tudo isso é mantido com base numa economia de produção agrária sustentada pelos camponeses e totalmente subordinada aos grandes proprietários de terra, os quais, na maioria das vezes, residem nas cidades. No entanto, é ao redor de pequenas cidades, vilas e aldeias que sobrevive a maior parte da população daquela época. Os lugares por onde Jesus passou a maior parte de seu ministério fazem parte desse cenário rural demarcado por pequenos centros de residência, encontro e intercâmbio social e político — é o caso das aldeias sem muita importância política e comercial, como Nazaré, Caná e Cafarnaum, distantes não apenas geograficamente, mas também social, comercial e politicamente de polos urbanos como Jerusalém, Cesareia e Séforis.

 

5.3.1. O dinheiro na perspectiva de Jesus e de seu contexto como cidadão pobre das aldeias periféricas da Galileia

Jesus é habitante de um mundo cujo ethos está comprometido com os costumes rurais, muito bem demarcados pelas heranças deixadas pela sociedade tribal, familiar e patriarcal, propiciamente representadas pelos movimentos proféticos e sapienciais presentes nas tradições da fé bíblica do Primeiro Testamento e atuantes nos movimentos sociorreligiosos daquele tempo, como o do Batista, dos essênios e dos zelotes.

Como pequeno artesão que era (carpinteiro de origem: Mc 3,6), Jesus vivia nas pequenas aldeias próximas do campo. Exercia uma profissão cujas características deviam estar bem próximas do que hoje podemos chamar de pedreiro ou carpinteiro; era alguém que realizava toda espécie de serviços ligados às necessidades da casa, de consertos de móveis e utensílios até obras simples de reparo e construção. Seu mundo é a Galileia, lugar da rebeldia contra os romanos e de resistência cultural, ambiente bem diferente de cidades helenizadas como Séforis. Seu mundo está ligado ao ethos do camponês das pequenas vilas e aldeias. Embora saiba — e tema — o que significa a relação “senhor versus escravo”, sua tradição mantém a fé inabalável de um povo cujo Deus o libertou da escravidão. A dominação imperial e o perigo de tornar-se escravo por dívidas são fatos incômodos presentes todos os dias. Tributação opressiva do trabalhador e do pequeno proprietário não deixa viver livre o povo camponês, mesmo que este não chegue a ser transformado (juridicamente) em escravo.

Nas aldeias se convive a duras penas com o que restou de uma economia baseada na memória da tradição bíblica tribal fundada na subsistência familiar e na autonomia produtiva. Nesta sociedade, só Iahweh é Rei (Jz 8,23); a terra é partilhada segundo as necessidades de cada clã familiar (Js 13-20); Iahweh é o Deus que libertou o povo da casa da escravidão (Lv 26,13; Dt 6,12) para que ninguém seja escravo (Lv 25,55); ninguém é dono da terra, a não ser Iahweh, seu único proprietário (Dt 10,14). No mundo da aldeia israelita ainda persiste a força crítica dessa memória religiosa. Não é difícil imaginar em gente que mantém viva essa memória o desejo de poder sobreviver sem a necessidade da moeda ou, ao menos, deixá-la restrita a mero instrumento de troca, para uso apenas de quem precisa ir ao mercado.

Para essa gente do campo, o escambo, em situação normal, é uma possibilidade real. Dinheiro é realidade do mercado imprescindível na cidade, onde preside a ordem do mercado. No campo, ao contrário, dinheiro ou é pagamento (denário) do diarista empobrecido que perdeu sua pequena propriedade e agora é obrigado a trabalhar para outro, ou é valor que se deve pedir emprestado para suprir as necessidades em caso de fracasso produtivo ou pagamento de dívidas. Na melhor das hipóteses, na ótica do aldeão, dinheiro é o que se consegue trocar com a venda dos produtos da colheita para, em seguida, conseguir pagar os tributos devidos a César, ao templo ou a Herodes.

É, pois, do ponto de vista do mundo aldeão e campesino, buscando guardar as tradições da vida tribal familiar segundo a memória de sua fé milenar, que podemos compreender o dito de Jesus sobre dinheiro e Deus em Mt 6,24.

Numa análise atenta sobre os aspectos econômicos presentes no Evangelho de Lucas, Halvor Moxnes, em seu livro A economia do reino, verifica ser a “ausência de dinheiro como o meio de intercâmbio” um traço característico de economias camponesas. Nesse sentido, vale a pena transcrever suas conclusões:

Embora a economia de mercado como tal não figure de forma proeminente no Evangelho de Lucas, o dinheiro, sob a forma de moedas de cobre ou de prata, aparece como meio de intercâmbio muito empregado. Mas trata-se de um intercâmbio não tanto na forma de comércio sob forma de “mercado livre”, mas na de obrigações dos camponeses para com os seus superiores. Elas incluíam dívidas e aluguéis que deviam ser pagos aos proprietários pelo arrendamento da terra, impostos e taxas devidos à administração romana, e as ofertas ao templo. Assim, nas passagens que referem a dinheiro não entramos no mundo social dos comerciantes e negociantes, e sim naquele do camponês. Quando Lucas menciona dinheiro e transações monetárias, pode estar descrevendo a transição de uma economia camponesa baseada no intercâmbio de mercadorias para uma economia monetária, embora não de mercado livre. Os camponeses conseguiam o dinheiro necessário para fazerem frente a suas obrigações vendendo o seu excedente de produção. Os preços dos produtos dos pequenos proprietários não eram estabelecidos pelo mercado livre, eram determinados pelos grandes proprietários. A exigência de pagar taxas e aluguéis em dinheiro era, portanto, outra forma de aumentar a pressão sobre os pequenos proprietários e de torná-los ainda mais dependentes de proprietários maiores (Moxnes, 1995, p. 71).

 

De qualquer modo, vendo pela ótica dos camponeses, dos pequenos proprietários, dos endividados e trabalhadores arrendatários e das outras camadas da população despossuída, a introdução do dinheiro como meio de troca tornou-o, a princípio, alvo de apreciação muito mais negativa do que positiva. Afinal de contas, numa economia que não dependia do dinheiro para garantia da subsistência, mas em que ele, ao contrário, estava quase sempre associado à necessidade de pagamento de tributos devidos ao Estado, ao templo e aos grandes proprietários, não ficava difícil ter um juízo depreciativo a respeito do dinheiro, associando-o ao sistema iníquo de injustiça e desigualdade social que penalizava pobres em detrimento dos ricos. Nesse contexto, não é de estranhar o juízo severo do povo contra os cobradores de impostos e o discernimento de Jesus em favor dos pobres, apresentando-os como os sujeitos privilegiados do reino de Deus (Lc 6,20; Mt 5,3; 11,5.25).

O juízo de Jesus sobre o dinheiro é fruto de seu discernimento da realidade vivida pelo povo, que sofria a influência nociva da economia monetária associada ao pesado tributo e ao comércio de escravos e mercadorias cada vez mais inacessíveis às condições do camponês. Tudo isso provocava endividamento crescente dos que sobreviviam apenas do trabalho na terra e, por sua vez, gerava absurda concentração da terra nas mãos de poucos. Empobrecimento, miséria, fome e escravidão, aos olhos de Jesus camponês, estavam associados, sem dúvida, ao dinheiro como símbolo da intervenção monetária na economia livre e de subsistência das pequenas aldeias israelitas da Galileia. Suas palavras situam o serviço ao dinheiro em oposição ao serviço a Deus, pois os ricos proprietários, cheios do dinheiro, servem a um sistema de opressão e destruição da comunidade campesina, evidenciando a mais brutal contradição com o sistema desejado por Deus.

 

Considerações finais

Não pretendemos esgotar o assunto, muito menos a análise de Mt 6,24. Entretanto podemos encaminhar algumas sugestões para quem deseja realizar uma interpretação mais detalhada desse texto. Diferentes possibilidades de significação começam a se abrir quando reconhecemos o trabalho de composição redacional feito pelos evangelistas ao recolherem da tradição oral, cada qual a seu modo ou segundo alguma fonte já escrita, as palavras de Jesus.

A primeira constatação necessária a ser feita é esta: o texto escrito de Mt 6,24 é paralelo a Lc 16,13; trata-se de texto pertencente ao conjunto de palavras de Jesus comuns a Mt e Lc e, portanto, considerado pelos pesquisadores como proveniente de uma fonte independente e original ainda não encontrada pelos arqueólogos, mas apenas deduzida desses dois evangelhos: a fonte Q (Q de Quelle — em alemão, “fonte” — fonte comum a Mt e Lc). Esse texto contém o sermão da montanha (Mt) ou de planície (Lc) e outros ditos de Jesus que marcam as características mais primitivas do movimento organizado por ele junto aos seus primeiros discípulos, atuando nas aldeias da Galileia. Trata-se, possivelmente, de um dos primeiros registros escritos sobre o homem de Nazaré, tendo sido composto provavelmente entre as décadas de 40 e 50 d.C. O evangelho extracanônico de Tomé, também considerado primitivo em suas primeiras redações, contém palavras semelhantes. Os testemunhos múltiplos e primitivos bem como a semelhança da sentença nessas fontes colaboram para apoiar a opinião de que a sentença realmente nos remete às palavras do Jesus histórico, tal como pressupomos desde o início desta reflexão.

Nesse sentido, além do esforço que fizemos para contextualizar Mt 6,24 na sociedade do tempo de Jesus, seria muito interessante considerar os novos significados que podem ser acrescentados às palavras de Jesus à medida que elas vão sendo inseridas nos novos contextos históricos e sociológicos dos redatores. Os contextos específicos das comunidades dos redatores de Q, Tomé, Mateus e Lucas, podem condicionar o modo pelo qual cada um deles pretendeu comunicar e transmitir as palavras de Jesus. Mas o levantamento de novos significados dados por cada um dos autores do evangelho fica para uma próxima vez, pois exige um aprofundamento da crítica redacional. Interessa-nos, a título de conclusão, retomar um pouco mais de perto a palavra original recolhida em todos esses textos e cuja tradução em português é “dinheiro”.

Na verdade, a palavra do texto grego original é mais precisamente Mamona. O que isso significa? Por que Jesus teria usado Mamona, uma vez que essa palavra é transcrição grega de palavra aramaica para se referir a dinheiro?

Mamon, em sua forma substantiva, não é exatamente dinheiro na forma específica de moeda, como lépton, denário, assarion, dracma ou argyrion, mina ou talento. Não é palavra que serve para designar genericamente qualquer moeda ou o que mais proximamente traduziríamos como dinheiro. Mamon é nome próprio de um dos deuses do panteão variado da cultura pagã do Oriente antigo, mais precisamente da Síria. Ele representa o culto ao dinheiro como expressão de riqueza. É o representante sírio do deus responsável pela riqueza, cujo culto tem como objetivo favorecer o enriquecimento de seus adoradores e, por conseguinte, a manutenção e reprodução do sistema comercial monetário que lhe está pressuposto.

Sendo assim, voltamos ao princípio deste artigo e deparamos agora não apenas com o agir individual de sujeitos que devem simplesmente rejeitar esta ou aquela moeda, escolher entre o uso do dinheiro para este ou aquele determinado fim e o serviço a Deus. Afinal, Jesus não está se referindo ao preço justo do trabalho que deve ser pago (normalmente em dinheiro) ao trabalhador. Em algumas parábolas, ele mesmo admitiu que devia ser pago salário justo ao trabalhador da última hora (Mt 20,1-16). Portanto, o que está em jogo em Mt 6,24 é a rejeição contundente de um sistema cujo deus não é Iahweh, pois não persegue a lógica da justiça distributiva e da reciprocidade de dons provenientes do trabalho, capaz de suprir igualitariamente o sustento da família, do clã e da comunidade.

O dinheiro personificado como deus Mamon representa o sistema cuja moeda governa a vida e a morte das pessoas. Na ótica de Jesus e de seus discípulos, esse deus é iníquo. Esse “Mamon-dinheiro” é dispensável. Sem ele pode-se muito bem tocar a vida segundo os princípios da dádiva e da reciprocidade distributiva: “Não leveis ouro, nem prata, nem cobre nos vossos cintos, nem alforje para o caminho, nem duas túnicas, nem sandálias, nem cajado, pois o operário é digno do seu sustento” (Mt 10,10). A alternativa apontada é o sistema econômico das pequenas aldeias. Sem a interferência do sistema monetário, a justiça desejada por Iahweh flui muito melhor.

Desse modo, podemos afirmar que Mt 6,24 impõe uma escolha: o serviço de dois senhorios, de dois deuses, de duas lógicas e, por isso mesmo, de dois absolutos da vida. A linguagem é religiosa, embora o foco seja econômico. Está pressuposto pela sentença disjuntiva (ou “a” ou “b”) — a escolha de um exclui o outro. Nessa linha, Jesus segue a tradição dos profetas que criticaram duramente o sistema econômico tributário e comercial em vigor nas cidades, causa do sofrimento e violência contra os pobres (Am 2, 6; 5,11-12; Is 5,8).

O sentido profético e profundamente atual das palavras de Jesus está no discernimento necessário que temos de fazer do sistema de produção e reprodução de nossas vidas tanto do ponto de vista material como do ponto de vista ético e espiritual. Pois a miséria é um problema ético e espiritual para os que não são miseráveis, embora para os primeiros seja um problema material de sobrevivência. O discernimento é este: como queremos organizar a economia e, com base nela, nossa vida como um todo? O nosso mundo vive em crise e ultrapassa bem mais os limites do que se chamou de crise financeira. Sem cair no lugar-comum, é preciso admitir: a crise realmente é de valores. Precisamos decidir a quem, de fato, queremos servir. A crise financeira é apenas a ponta do iceberg. Alguns dizem que saímos dela, mas a qualquer momento podemos vê-la retornar, sobretudo porque não foram corrigidas e alteradas as causas que a provocaram (escrevo em setembro de 2009). O fato é que os mais pobres foram afetados profundamente e os dados mostram o avanço da fome e da indigência em todo o mundo.

Neste momento, novamente temos a oportunidade de decidir se queremos servir à lógica do sistema que privilegia o mercado financeiro e o desenvolvimento completamente cego aos limites das possibilidades dos recursos naturais ou se vamos organizar novas lógicas de solidariedade cuja finalidade seja suprir, em primeiro lugar, as necessidades reais da população mais pobre do planeta. É preciso decidir logo, caso contrário, corremos o risco de escolher o deus errado, um ídolo que nos conduzirá à destruição da própria vida. O momento exige de nós, conforme Mt 6,24, o testemunho de fé em favor do serviço ao Deus da vida. Em outras palavras, significa ter a coragem de testemunhar alternativas e esperanças de que outro mundo realmente é possível.

 

Bibliografia

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Valter Luiz Lara