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Publicado em número 262 - (pp. 18-24)

Ceia, memória, comunhão, festa e esperança… Uma leitura da primeira carta aos Coríntios 11,17-34

Por Pe. Shigeyuki Nakanose, svd

Meu pai, Masayuki, faleceu no dia 19 de setembro de 2007. Depois do enterro, conforme a tradição, os habitantes da ilha de Kaminoshima, em Nagasaki, Japão, reuniram-se na minha casa para rezar, conversar, comer e beber juntos em memória do meu pai. Quem puxou a reza foram os anciãos e anciãs da ilha, amigos e amigas de infância do meu pai. Cada um começou a oração como se estivesse conversando com meu pai: pai-nosso, ave-maria e outras orações tradicionais, de que eu nem me lembrava mais. Com tons graves, as rezas batiam no peito de cada participante, numa mistura de sentimentos: ausência, saudade, tristeza e gratidão…

Terminada a oração, a comida e a bebida foram servidas. Uma refeição comunitária. Naturalmente, o centro da conversa foi o meu pai. A sua foto, grande, rodeada de flores, estampava largo sorriso e fora colocada no centro da sala, à vista de todos. Os anciãos e as anciãs contavam momentos de sua convivência com meu pai e que marcaram suas vidas: brincadeiras de criança, trabalhos comunitários na roça, particularmente nas colheitas, na pescaria, a guerra — a bomba atômica —, o casamento, os nascimentos dos(as) filhos(as), as festas… Era o livro da história do meu pai, o qual parecia se abrir devagar. Muitas páginas de sua história foram novidade para as pessoas mais jovens. Alguns fatos nem os filhos e filhas sabiam. Memórias, comunhão, discursos, vozes exaltadas, sorrisos, palmas e bebidas. Uma festa da vida. Uma esperança na caminhada. O pai se fazia presente de muitas formas.

Com base na memória dessa e de outras refeições comunitárias marcantes de nossas vidas, vamos nos aproximar do texto da primeira carta aos Coríntios 11,17-34: a ceia do Senhor. Essa refeição comunitária torna viva a presença de Jesus Cristo crucificado e ressuscitado nas comunidades cristãs, espalhadas pelas cidades do império romano. Da comunhão plena com o corpo e o sangue de Jesus Cristo na ceia, brota o compromisso cristão: a comunhão solidária entre todas e todos, especialmente com as categorias marginalizadas pelo império. Para refletir sobre a ceia de ontem e hoje, à luz de 1Cor 11,17-34, vamos conhecer a sociedade greco-romana, especialmente a ceia oficial chamada de “banquete patronal”. Esse costume estava sendo introduzido na comunidade cristã, provocando distorções na celebração da ceia do Senhor.

 

1. O banquete patronal na sociedade greco-romana

Corinto é reconstruída como colônia romana por Júlio César, no ano 44 a.C., e mais tarde, constituída capital da província da Acaia. Com aproximadamente 300.000 habitantes, é uma das maiores cidades de todo o império romano. Como as principais cidades greco-romanas do seu tempo, dois terços da população são escravos(as), que trabalham, por exemplo, como estivadores dos dois portos que movimentam a economia da cidade.

Um dos meios de o império romano controlar os habitantes de uma cidade cosmopolita como Corinto é o próprio sistema de patrocínio e de clientela conhecido pelo nome de patronato. O esquema do patronato se caracteriza pela troca de favores entre pessoas, criando verdadeira teia de influência e poder. Quando as elites favorecem as camadas mais pobres, essa prática gera dependência e submissão, porque as pessoas pobres se sentem gratas e devedoras de favores aos poderosos.

Sem dúvida, a figura máxima na sociedade patronal é o imperador. Ele é considerado o pai e o patrono do império, distribuidor dos bens, defensor da pax romana, sendo até chamado de “Senhor”, ou seja, kyrios em grego. Essa imagem divinizada do imperador é alimentada nas cidades conquistadas por meio de procissões, cultos, sacrifícios e dedicação de templos em sua homenagem.

Os líderes locais, as famílias ricas e os funcionários públicos disputam entre si a melhor forma de homenagear o imperador, em troca de “patrocínios” — benfeitorias. Os favores mais comuns são a distribuição de cargos e honras, a assistência financeira, o direito de obter a cidadania romana e até o de usar o sistema de suprimento de água.

Os benefícios do patronato se estendem à relação entre os poderosos e as massas menos privilegiadas. Os patronos poderosos de Corinto, por exemplo, distribuem comida, organizam jogos imperiais e fazem obras para serem vistos e honrados nas praças. Ter honra significa receber reconhecimento público da sua dignidade e condição social. Quando a honra de uma pessoa é reconhecida publicamente, ela pode se relacionar com outras do mesmo grupo social. Desse modo, os poderosos asseguram os interesses econômicos de seu grupo e perpetuam seu status social.

Os clientes, por sua vez, alimentam o status de seu patrono, cumprindo certas obrigações. A primeira delas é fazer a “saudação matinal” para o patrono, reunindo grande número de pessoas à sua porta para saudá-lo. O cliente deve também acompanhar seu patrono nas caminhadas de negócios públicos; caso o patrono faça algum discurso, seu cliente deve aplaudi-lo. A “regra de ouro” do afilhado ensina a forma de agradar o patrono: concordar sempre com sua opinião. Nas listas de pessoas apadrinhadas estão poetas, artistas, filósofos e até figuras religiosas, como os missionários.

Tudo isso faz parte da estratégia de dominação. O sistema patronal está presente em todas as dimensões da sociedade e é quase impossível viver à sua margem. O cliente de um patrono poderoso também pode ser patrono de pessoas menos privilegiadas. A hierarquia da sociedade de patrocínio e de clientela dificulta o surgimento de movimentos de resistência e de protesto contra os poderosos patrocinadores. Havia vários meios e espaços para fortalecer a hierarquia da sociedade greco-romana. O mais importante espaço pode ter sido as “associações de voluntários” e seu banquete patronal.

Nos centros urbanos do mundo mediterrâneo, a criação de associações de voluntários é muito comum. Os mercadores e imigrantes, especialmente, organizam suas associações para promover contatos sociais e proteger seus interesses particulares no contexto de grandes cidades como Corinto — uma cidade muito movimentada, com um constante vai e vem de pessoas de várias regiões.

Os membros dessas associações se reúnem pelo menos uma vez por mês, geralmente em ocasiões de festas, sobretudo em honra da divindade protetora. O culto às suas divindades é uma forma de alimentar o senso de proteção e de unidade do grupo. A reunião costuma ser na forma de uma refeição comunitária: o banquete patronal (deipnon). Normalmente, o banquete se realiza nas casas dos patronos poderosos e obedece a certas normas. Por exemplo, os convidados se sentam de acordo com sua posição social (cf. Lc 14,8-10): de um lado, os ricos, os poderosos e os influentes; do outro, os libertos, os pobres e os escravos.

Os ricos são recebidos no refeitório — triclínio — com tapetes e assentos confortáveis, onde se acomodam, em média, de oito a dez pessoas. Eles são os primeiros a ser servidos, recebendo os melhores alimentos. Os pobres são acomodados no átrio, uma espécie de pátio, parcialmente coberto e menos confortável que o triclínio. A maioria das pessoas fica em pé, encostada em alguma parede ou pilastra, e recebe comida e bebida inferiores.

Plínio, um patrono do século I, manifesta-se contra a discriminação praticada nos banquetes patronais. Ele descreve uma cena cotidiana de um banquete: “Alguns pratos muito elegantes foram servidos aos hospedeiros e a poucos a seu redor; os pratos oferecidos aos outros eram baratos e desprezíveis. Havia três tipos de vinho em diferentes frascos: o primeiro era para ele e para mim; o segundo, para seus amigos de classe inferior; e o terceiro para os alforriados dele e meus”.

No banquete, as diferenças sociais entre ricos e pobres são visíveis. A ordem hierárquica deve ser respeitada, para que os convidados ilustres não se sintam desonrados pelo patrono da festa; desonrar um convidado ilustre é considerado um escândalo.

Depois da refeição principal, o encontro prossegue com festa acompanhada de bebida (convivium). Nesse momento, são organizados alguns eventos, como diversão, concerto, palestra, debate etc. Tudo isso para facilitar os contatos sociais dos associados. Com frequência, ocorrem discussões acaloradas e brigas, pois os convivas se exaltam ou se embriagam com muito vinho nos banquetes. Por isso, algumas normas devem ser cumpridas:

Os membros têm seus lugares determinados, de acordo com sua posição hierárquica; esses lugares devem ser respeitados.

Não é permitido falar fora da ordem ou sem licença. As pessoas consideradas mais importantes têm prioridade para falar.

Brigas e conflitos ou a formação de grupos/facções e partidos são proibidos.

Os membros devem evitar acusações mútuas diante do tribunal.

As normas têm por objetivo evitar a disputa dentro da associação e, ao mesmo tempo, manter a “divisão social”, defendendo os interesses dos membros ilustres da associação. Sem dúvida, a comunidade ou a assembleia cristã de Corinto não é uma ilha isolada. Ela recebe constante influência da realidade ao seu redor.

Paulo constata que alguns cristãos da comunidade de Corinto continuam se comportando como poderosos patronos gentios e trazem seus problemas para dentro da comunidade: uns se consideram como “rei” (1Cor 4,8); outros tentam resolver as disputas nos tribunais civis, usando recursos financeiros (1Cor 6,1-8); e há aqueles que continuam participando de banquetes sagrados nos templos pagãos (1Cor 8,1-6). Alguns deles não respeitam nem mesmo a refeição comunitária. A ceia do Senhor deixa de ser o sinal de comunhão e torna-se momento de divisão e de conflito.

O conflito se agrava mais ainda com a presença de alguns judeu-cristãos radicais. Eles não aceitam com facilidade a presença de estrangeiros(as) à mesa, pois um judeu não pode comer ao lado de pessoas não circuncidadas. Como a circuncisão é sinal da aliança com Deus, ele ficaria impuro. Tal preocupação é também a de Pedro e Barnabé, criticados por Paulo: “Mas quando Cefas veio a Antioquia, eu o enfrentei abertamente, porque ele se tornara digno de censura. Com efeito, antes de chegarem alguns vindos da parte de Tiago, ele comia com os gentios, mas, quando chegaram, ele se subtraía e andava retraído, com medo dos circuncisos” (Gl 2,11-12).

Outro problema fundamental desse grupo de cristãos radicais é o desprezo pelos pobres e doentes (Pr 6,11). Segundo o ensinamento oficial do Primeiro Testamento, a pobreza e a doença são consideradas castigos de Deus, por causa do pecado (Ex 20,5; 34,7). Com efeito, alguns judeu-cristãos teriam muita dificuldade em sentar à mesa com “o lixo do mundo, a escória do universo” (1Cor 4,13). A mesa se torna um lugar de preconceito e exclusão.

Na comunidade cristã, a ceia do Senhor deveria ser momento de comunhão, partilha e festa, para reavivar a prática e a espiritualidade de Jesus de Nazaré. Uma refeição fraterna entre os membros e com o Senhor Jesus. Porém, em sua carta, Paulo evidencia que alguns cristãos estão desvirtuando o sentido da ceia na comunidade.

 

2. A ceia do Senhor

A ceia do Senhor é uma refeição comunitária em memória de Jesus, na qual cada pessoa traz algo para ser partilhado. Sentam-se todos à mesma mesa e partilham da ceia do corpo e sangue de Jesus de Nazaré, que lutou pela igualdade, pela comunhão e pela vida. É um convite a experimentar a comunhão fraterna entre ricos e pobres, livres e escravos, judeus e gentios, mulheres e homens.

A ceia é um dos momentos mais fortes para vivenciar a presença de Jesus crucificado, morto e ressuscitado no meio dos primeiros cristãos e cristãs. No entanto, isso não está ocorrendo em Corinto. Em sua carta, Paulo condena a divisão criada no momento da ceia: “Vossas assembleias, longe de vos levar ao melhor, vos prejudicam. Em primeiro lugar, ouço dizer que, quando vos reunis em assembleia, há entre vós divisões” (1Cor 11,17-18). Qual é a causa da divisão? Onde está o problema?

A comunidade de Corinto celebra a ceia do Senhor nas casas. Possivelmente, quem oferece a casa são os membros mais ricos da comunidade, como Gaio (Rm 16,23). É provável que alguns patronos poderosos, membros da comunidade cristã, convidem, conforme o costume da época, os membros mais ilustres, poderosos e ricos (1Cor 1,26-29) para participar da ceia no triclínio — na sala de jantar —, enquanto as outras pessoas da comunidade ficam no átrio. Também existe diferença de comida: “Quando, pois, vos reunis, o que fazeis não é comer a ceia do Senhor; cada um se apressa por comer a sua própria ceia; e, enquanto um passa fome, o outro fica embriagado” (1Cor 11,20-21).

Paulo repreende essa atitude e ironiza: “Não tendes casa para comer e beber?” (1Cor 11,22a). Dessa forma, ele toca a raiz da crise da comunidade: “desprezais a Igreja de Deus ou quereis envergonhar aqueles que nada têm?” (1Cor 11,22b). Há “discriminação e desprezo” entre pobres e ricos na assembleia, irmãos e irmãs da mesma fé no Senhor Jesus. Os que podem mais trazem boa quantidade de comida, comem tudo rapidamente e não esperam os que chegam depois, com pouca coisa ou, quem sabe, sem nada para partilhar.

Mas por que alguns chegam atrasados à assembleia? As informações anteriores nos mostram que “aqueles que nada têm” (1Cor 4,9-13) são os pobres da comunidade, que provavelmente trabalham e não conseguem chegar no horário. Ou, não tendo nada para partilhar, sentem-se envergonhados. Como essas pessoas procuram diminuir a vergonha? Chegando mais tarde. Assim disfarçam as mãos vazias e se livram de ser chamadas de aproveitadoras. No entanto, foi exatamente com gente pobre e desprezada que Jesus conviveu e celebrou a refeição comunitária.

Por isso, depois de explicitar o problema e chamar a atenção de membros poderosos que não partilham a refeição com todos, Paulo os repreende mais uma vez: “Que vos direi? Hei de louvar-vos? Não, neste ponto não vos louvo” (1Cor 11,22c), e recorda o que recebeu do próprio Senhor: “Na noite em que foi entregue, o Senhor tomou o pão e, depois de dar graças, partiu-o e disse: ‘Isto é o meu corpo, que é para vós, fazei isto em memória de mim’” (1Cor 11,23-24).

Para os judeus, o corpo representa todo o ser da pessoa e, por comungarem no corpo de Cristo Jesus, os cristãos assumem as palavras e a prática de Jesus e participam do corpo ressuscitado: “O corpo é para o Senhor, e o Senhor é para o corpo. Ora, Deus, que ressuscitou o Senhor, ressuscitará também a nós pelo seu poder” (1Cor 6,13-14). Paulo insiste que a ceia celebrada na assembleia cristã é sagrada e recorda as refeições comunitárias de Jesus de Nazaré. São refeições comunitárias com o “lixo do mundo”.

O mesmo o Senhor Jesus faz com o vinho e pede que se faça esse gesto “em memória de mim” (1Cor 11,25). Beber o vinho é participar da nova aliança inaugurada pelo sangue de Cristo. O sangue, a paixão e a morte de Cristo são consequência de sua prática de doação, amor e solidariedade com os fracos e pequenos. É o amor que vence a morte. A salvação da humanidade, a nova aliança e o novo êxodo. Por isso, a ceia do Senhor é memorial; celebrá-la significa, pois, atualizar o gesto de entrega e compromisso de Jesus crucificado, morto e ressuscitado no hoje da vida comunitária.

Podemos dizer como Paulo: “Todas as vezes, pois, que comeis desse pão e bebeis desse cálice, anunciais a morte do Senhor até que ele venha” (1Cor 11,26). Todas as vezes que os cristãos celebram a ceia do Senhor, trazem o que têm e repartem entre todas e todos. Revivem sua aliança com Jesus condenado, crucificado e morto por ter sido sensível e solidário à “escória do universo”. A comunidade cristã que não faz isso está comendo a própria condenação: “Todo aquele que comer do pão ou beber do cálice do Senhor indignamente será réu do corpo e do sangue do Senhor” (1Cor 11,27) — pois, desse modo, se inclui no grupo daqueles que insultaram, condenaram e mataram Jesus.

A nova aliança, que brota da vida e da morte de Jesus, exige a prática da misericórdia, da solidariedade, da partilha e da justiça. Por isso, “cada um examine a si mesmo antes de comer desse pão e beber desse cálice, pois aquele que come e bebe sem discernir o Corpo, come e bebe a própria condenação” (1Cor 11,28-29).

A comunidade cristã de Corinto está celebrando “sem discernir o Corpo”, ou seja, não se reconhece como um só corpo ao participar da eucaristia. Os “mais fortes” da comunidade não estão reconhecendo a identificação existente entre Jesus crucificado e os irmãos “mais fracos”. Ao contrário, estão reproduzindo o modelo injusto da sociedade greco-romana.

A consequência é uma comunidade enferma e causadora de “enfermidades”: “Eis por que há entre vós tantos débeis e enfermos e muitos morreram” (1Cor 11,30). A enfermidade não é um castigo de Deus, mas consequência da falta de solidariedade com os pobres. A presença de “débeis, de enfermos e até de mortos” na comunidade reflete uma comunidade doente, que não aprendeu a ser solidária.

Na compreensão de Paulo, a ceia — a eucaristia — é uma celebração da comunhão no corpo de Cristo, que é a comunidade cristã: “Já que há um único pão, nós, embora muitos, somos um só corpo, visto que todos participamos desse único pão” (1Cor 10,17). A eucaristia alimenta e faz a comunidade, mediante a comunhão e a solidariedade, solidariedade com toda a humanidade e a natureza.

 

3. A ceia do Senhor e sua raiz judaica

Do trabalho de tuas mãos comerás

tranquilo e feliz:

tua esposa será vinha frutuosa

no coração de tua casa;

teus filhos, rebentos de oliveira

ao redor de tua mesa (Sl 128,2-3).

 

Nos momentos da refeição, os grupos humanos se encontram e confraternizam ao redor da mesa. À mesa, as famílias estreitam e aprofundam seus laços, os membros se reconciliam e, juntos, planejam seu presente e seu futuro.

Jesus vive momentos importantes com suas seguidoras e seus seguidores em torno da mesa. O mais significativo é a última ceia (cf. Mc 14,22-25; Mt 26,26-29; Lc 22,15-20). Após a morte e a ressurreição do Senhor, a ceia, celebrada numa refeição comunitária, torna-se o momento mais importante da vida social e religiosa do movimento cristão. Na ceia, as comunidades fazem memória da vida, paixão, morte e ressurreição de Jesus: “Na noite em que foi entregue, o Senhor Jesus tomou o pão e, depois de dar graças, partiu-o e disse: ‘Isto é o meu corpo, que é para vós; fazei isto em memória de mim’” (1Cor 11,23-24).

O procedimento da ceia do Senhor — abençoar e partir o pão —, sem dúvida, não é novidade, pois está vinculado aos costumes judaicos da refeição (Mc 6,41). Para os judeus, assim como para outros povos, a refeição é um momento privilegiado, abençoado, no qual os participantes partilham o pão e o vinho — alimentos essenciais do povo — com todos e se sentem em comunhão fraterna com seu Deus. Na ótica judaica, os que partilham da mesma mesa devem viver a comunhão fraterna (Sl 41,10), pois participar da mesma refeição é sinal de acolhida, familiaridade, respeito, proteção e segurança (Gn 18,1-16; 43,24-34).

Uma das refeições tradicionais de Israel, na qual as características básicas da ceia do Senhor Jesus estariam enraizadas, era a habûrah. O termo é derivado do verbo haver, em hebraico, cujo sentido é “reunir”, “ligar”, “associar” e “aliar”. Da mesma raiz temos o termo “companheiro”, “amigo”, “sócio”, “camarada”, “consórcio”, “aliado”. Assim, a denominação habûrah expressa uma refeição fraternal de amigos. Nessa refeição, todos trazem sua contribuição em alimentos, especialmente o pão e o vinho, que representam a bênção de Deus (Gn 14,18); o povo reunido agradece a Javé, criador e doador de todos os bens, e reafirma a sua fé. A habûrah é composta de três partes:

— a primeira é realizada numa antessala. Os participantes se servem individualmente de algum alimento e tomam um primeiro cálice de vinho, sobre o qual cada um pronuncia uma bênção — beraká, em hebraico;

— na segunda parte, a refeição é conjunta. O dono da casa abençoa o pão e o reparte entre os participantes; pronuncia a bênção sobre o segundo cálice e todos se servem;

— a terceira parte é o momento da ação de graças. A pessoa que fez a abertura da refeição agora pronuncia a bênção sobre o terceiro cálice e faz a ação de graças em nome de todo o grupo. Esse é considerado o cálice da bênção — eucharistein, em grego.

 

O costume de trazer alimento para ser partilhado está bem presente na ceia do Senhor. A ceia da comunidade cristã de Corinto do primeiro século é uma refeição completa, ou seja, um jantar (deipnon, em 1Cor 11,20-21). Nela, os participantes partilham os alimentos trazidos de casa, como pão e vinho. Pela partilha do alimento na refeição, as pessoas celebram e reforçam a irmandade do grupo e a comunhão com Deus. Por isso, Paulo fica indignado com os poderosos que comem o próprio alimento sem partilhar com os mais pobres, que passam fome. Não há a espiritualidade da habûrah, da refeição comunitária; a ceia deles se assemelha ao banquete patronal.

É importante destacar a bênção sobre o pão no início da refeição e a ação de graças sobre o cálice no final. A bênção e a ação de graças são a marca registrada da ceia do Cristo Jesus. Por meio delas, os cristãos reconhecem e reafirmam a presença viva do Cristo e a comunhão plena com ele e com toda a comunidade. Podemos dizer, com o povo judeu, que Deus se faz presente no meio de nós mediante a comunhão e a solidariedade: “Vede: como é bom, como é agradável habitar todos juntos, como irmãos (…), porque aí manda Javé a bênção, a vida para sempre” (Sl 133,1.3).

Outra refeição que marca a identidade do povo de Israel é a Páscoa (Pesach). Israel celebra a Páscoa como memorial dos grandes feitos de Javé em favor de seu povo: “Naquele dia tu darás a teu filho a explicação seguinte: é por causa do que Javé fez por mim, por ocasião da minha saída do Egito” (Ex 13,8). O povo de Deus recorda sua libertação da escravidão do Egito: “Eu vi, eu vi a miséria do meu povo que está no Egito. Ouvi seu grito por causa dos seus opressores; pois eu conheço as suas angústias. Por isso desci a fim de libertá-lo da mão dos egípcios” (Ex 3,7-8).

No rito da ceia pascal, há quatro momentos:

— o primeiro é o momento da espera. Enquanto o cordeiro assado não é servido, toma-se um cálice de vinho e uma mistura feita com frutas, ervas e vinagre. Cada participante pronuncia a bênção sobre o vinho e sobre o dia que termina, uma vez que a Páscoa é celebrada à noite;

— no segundo momento, o chefe da família relembra e reinterpreta o sentido da festa para as pessoas presentes, enquanto elas tomam o segundo cálice de vinho e entoam salmos;

— no terceiro momento, o anfitrião bendiz o pão. Inicia-se a refeição com a partilha do cordeiro, do pão sem fermento e das ervas amargas. Em seguida, ele faz uma oração de ação de graças sobre o terceiro cálice, considerado o cálice da bênção;

— no quarto momento, as pessoas cantam, e mais uma oração de bênção é pronunciada sobre o quarto cálice de vinho.

 

Na ceia do Senhor, encontramos toda a tradição da ceia pascal: Jesus é o cordeiro imolado e partilhado. Como o Deus libertador, na história do Êxodo, Jesus é movido pela compaixão para com o povo sofrido e marginalizado (Mc 6,34; Is 49,14-17) e sua vida é marcada pela prática da solidariedade, o que o leva até a morte na cruz (Mc 3,1-6; Is 42,1-9; 52,13-53,12). A ressurreição de Jesus crucificado é a vitória do amor sobre o poder da ganância, do ódio e da violência. Seu sangue derramado na cruz, como sangue do cordeiro, tinge as comunidades cristãs com o sinal da proteção (Ex 12,13). O Senhor Jesus, como cordeiro, é o sinal do novo êxodo e da nova páscoa.

Para as primeiras cristãs e os primeiros cristãos, a participação na ceia do Senhor gera comunhão no corpo e no sangue de Jesus, o cordeiro imolado: “O cálice da bênção que nós abençoamos, não é comunhão com o sangue de Cristo? O pão que partimos, não é comunhão com o corpo de Cristo?” (1Cor 10,16). Da comunhão plena na ceia com Jesus crucificado brota o compromisso com os crucificados da história e com a libertação de todos os males gerados pelo império daquele tempo: guerras, escravidão, pobreza, desigualdade social, religião opressora e tantos outros. De fato, cristãos e cristãs são vitimados pela mesma força que imolou Jesus de Nazaré, e cada um torna-se um cordeiro imolado.

Existe ainda outra característica da Páscoa judaica presente na ceia do Senhor: “Este dia será para vós um memorial, e o celebrareis como uma festa para Iahweh; nas vossas gerações a festejareis; é um decreto perpétuo” (Ex 12,14). Nunca é demais enfatizar a importância de reavivar, na memória das pessoas, a história libertadora do Senhor Jesus. Cada geração de cristãos e cristãs deve meditar e reinterpretar, em comunhão com todos(as), a vida de Jesus em meio à vida e aos conflitos do tempo presente. A memória da ceia do Senhor e das primeiras comunidades cristãs é vital para a nossa caminhada de fé. Essa memória aponta para um novo êxodo, fazendo ressurgir a força e a coragem de resistir contra as forças da morte.

 

4. Uma palavra final

Habûrah ou ceia pascal? Os estudiosos continuam pesquisando e discutindo a raiz judaica da ceia do Senhor Jesus. A primeira carta aos Coríntios dá a entender que a ceia do Senhor contém o sentido essencial da refeição do povo judeu: memória, comunhão, partilha, festa, prazer, bênção e esperança. A eucaristia não é simples ritual, mas é a vida com o corpo e sangue da gente!

A história continua. A celebração da ceia do Senhor continua. A presença maciça dos crucificados no meio de nós também continua! A miséria no Brasil atinge mais de 60 milhões de pessoas: um terço da população… Para os que não se aliam ao Deus da vida, resta apenas uma refeição farta de exclusão ou pretensa eucaristia “espiritual”, sem compromisso pessoal, comunitário e social com “o lixo do mundo e a escória do universo”.

Somos loucos por causa de Cristo, vós, porém, sois prudentes em Cristo: somos fracos, vós, porém, sois fortes; vós sois bem considerados, nós, porém, somos desprezados. Até o momento presente ainda sofremos fome, sede e nudez; somos maltratados, não temos morada certa e fatigamo-nos trabalhando com as próprias mãos. Somos amaldiçoados, e bendizemos; somos perseguidos, e suportamos; somos caluniados, e consolamos. Até o presente somos considerados como o lixo do mundo, a escória do universo (1Cor 1,10-13).

 

Essa é a palavra de Paulo para os cristãos “poderosos” e “sábios” de Corinto. Palavra de um homem que se faz um com o “lixo” e experimenta a presença do sagrado na eucaristia, do sagrado no cotidiano de sua vida.

Várias vezes, ao longo da vida, sentimos a presença do sagrado em refeições marcantes — como a refeição comunitária em memória do meu pai que citei no início. É aquele sentimento com misto de saudade, comunhão, amor, alegria, encontro… E a gente sabe que é sagrado porque os olhos mudam… o coração também… A ceia é uma espécie de espelho da comunhão que Deus põe no cotidiano das pessoas.

 


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Pe. Shigeyuki Nakanose, svd