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Publicado em setembro-outubro de 2010 - ano 51 - número 274 - (pp. 21-29)

“Continuo a contemplar o Teu Santo Templo” (Jn 2,5): Uma leitura de Jonas 2,1-11

Por Pe. Shigeyuki Nakanose, svd

Muita coisa me passa pela mente em relação a meus tempos de infância. Trago algumas lembranças marcantes de minha vida na ilha de Kaminoshima, em Nagasaki, Japão. Uma delas é o lugar sagrado. No caminho para a escola primária, meus olhos se voltavam para vários pontos: a montanha, as árvores, o mar, a igreja, as imagens de Buda, as casinhas do xintoísmo, religião nativa do Japão. O favorito era uma pequena imagem de Buda vestido de babador vermelho, com um sorriso amoroso e misericordioso. Ficava numa casinha sagrada do xintoísmo, ao lado de um poço. Água, Buda e deuses, tudo isso fazia parte de meu cotidiano.

Na volta da escola, meus amiguinhos e eu caminhávamos em bando e brincávamos, correndo, pulando, gritando e rindo muito. Mas, quando chegávamos àquele poço, o grupo fazia reverência ao pequeno Buda e bebia água à vontade. Água, Buda e deuses, tudo acontecia com naturalidade.

Era um ato de reverência ao sagrado, transmitido de geração em geração. Ninguém dizia, mas sentia, no corpo e na alma, o mistério da vida: os deuses estavam presentes em toda parte. Desde a infância, aprendíamos a respeitar as pessoas, a natureza, a vida e a morte. Isso é sagrado.

O tempo passou, mas essa lembrança não me saiu da mente. Desde os primeiros anos, estudei o cristianismo: orações, cantos, ensinamentos, teologia… Mas a imagem daquele poço com o sorriso de Buda e a de meus amiguinhos permanecem em mim.

Com base nessa e em outras experiências marcantes com o sagrado, leio o livro de Jonas e retomo a pergunta de sempre: onde está Deus? O livro de Jonas é um dos livros da Bíblia que questionam a visão reduzida dos judeus do século IV a.C., que acreditavam ser o Templo de Jerusalém o único lugar da presença de Deus.

Jonas representa o judeu nacionalista, que prefere ser jogado ao mar e morrer a assumir a sua missão. Na história, ele é engolido por um grande peixe e, mesmo no ventre do animal, continua com os olhos voltados para o “santo Templo”, com a certeza de que sua prece chega até esse local sagrado, pois dele é que vem a salvação.

Hoje, como no tempo de Jonas, também há pessoas com a crença de que são o único grupo abençoado por Deus e de que ele habita exclusivamente os santuários e locais estabelecidos pelo grupo. Muitas vezes, essa atitude provoca preconceitos, exclusão e até mesmo perseguições contra outros grupos. À luz do capítulo 2 do livro de Jonas, vamos refletir sobre esse problema. Iniciaremos recordando a história do Templo de Jerusalém, considerado o único lugar de encontro com Deus para os judeus nacionalistas daquele tempo.

 

1. O Templo de Jerusalém

No ano em que faleceu o rei Ozias, vi o Senhor sentado sobre um trono alto e elevado. A cauda de sua veste enchia o santuário. Acima dele, em pé, estavam serafins, cada um com seis asas: com duas cobriam a face, com duas cobriam os pés e com duas voavam. Eles clamavam uns para os outros e diziam: “Santo, santo, santo é Iahweh dos Exércitos, sua glória enche toda a terra”. Ao som de seus clamores, os gonzos das portas oscilavam, enquanto o Templo se enchia de fumaça (Is 6,1-4).

 

O Templo de Jerusalém foi construído sobre a colina de Sião, no tempo de Salomão (970-931 a.C.). Nele, havia a seguinte divisão: o hekal e o debir. No debir, o santo dos santos, ficava a arca; no hekal, a principal sala, estava o altar de incenso, o de ouro e o de bronze. Essa mesma estrutura foi encontrada em templos da região siro-fenícia. Os fenícios trabalharam como funcionários especializados na construção do Templo de Jerusalém. O nome do chefe dos escravos (em regime de corveia), Adoram, é de origem fenícia (1Rs 5,28). Mais tarde, provavelmente na reconstrução ocorrida em torno de 515 a.C., o Templo passou a ter o ulâm, um pórtico ou saguão de entrada (Ez 40,6; 44,3).

No período da monarquia, o Templo fazia parte de um conjunto que incluía o palácio do rei e suas dependências. Era considerado um anexo do palácio. Os reis faziam-lhe doações, como também lançavam mão de seus tesouros (1Rs 15,15.18; 2Rs 12,19; 16,8). Quando houve a divisão do reino, em torno de 931 a.C., Jeroboão I, o primeiro rei do Norte, aproveitou a existência de dois antigos santuários, um em Betel e outro em Dã, e os transformou em templos reais, colocando neles a imagem do bezerro de ouro (1Reis 12,28-33), entre 931 e 910 a.C. O objetivo era impedir a ida do povo ao Templo de Jerusalém (1Rs 12,26-33). Este, como o de Betel, era um santuário real, forte instrumento para consolidar a política centralizadora dos reis.

Com o fortalecimento da monarquia, o culto no Templo de Jerusalém se tornou o elemento essencial da religião. Isso se reflete, por exemplo, nas orações do período monárquico, como podemos ver no Salmo 63,2-3.10-12:

Ó Deus, tu és o meu Deus, eu te procuro.

Minha alma tem sede de ti,

Minha carne te deseja com ardor

Como terra árida, esgotada, sem água.

Sim, eu te contemplava no santuário,

Vendo teu poder e tua glória…

Quanto aos que me querem destruir,

Irão para as profundezas da terra;

Serão entregues à espada

e se tornarão pasto dos chacais.

Mas o rei se alegrará em Deus:

Quem por ele jura se felicitará,

Pois a boca dos mentirosos será fechada.

 

Os reis Ezequias e Josias empreenderam reformas administrativas com o objetivo de centralizar tudo em torno do Templo de Jerusalém. Eles procuraram controlar o povo em torno de um só Deus, Javé oficial, e de uma dinastia, a casa de Davi. Por volta de 622 a.C., Josias iniciou sua reforma, eliminando os outros cultos existentes no Templo; mandou

que os guardas retirassem do santuário de Javé todos os objetos de culto que tinham sido feitos para Baal, para Aserá e para todo o exército do céu; queimou-os fora de Jerusalém, nos campos do Cedron, e levou as cinzas para Betel. Destituiu os falsos sacerdotes que os reis de Judá haviam estabelecido e ofereciam sacrifícios nos lugares altos, nas cidades de Judá e nos arredores de Jerusalém, e os que ofereciam sacrifícios a Baal, ao sol, à lua, às constelações e a todo o exército do céu (2Rs 23,4b-7).

 

A reforma foi interrompida com a morte de Josias no confronto com Necao, imperador do Egito (609 a.C.). O domínio do Egito, porém, durou pouco. Em 605 a.C., Nabucodonosor, imperador da Babilônia, venceu Necao, apoderou-se da Palestina e submeteu o reino de Judá. Com as revoltas dos reis de Judá, o exército da Babilônia invadiu e saqueou a cidade de Jerusalém e o Templo duas vezes, em 597 a.C. e em 587 a.C. A classe governante e uma parte do povo pobre foram levadas para o exílio.

O Templo, conforme a teologia da época, era sinal da eleição e escolha de Javé (Dt 12,5). A ruína do Templo, em 587 a.C., abalou a fé do povo de Israel: “Eis por que nosso coração está doente, eis por que se escurecem nossos olhos: porque o monte Sião está desolado, nele passeiam os chacais!” (Lm 5,17-18). Havia grupos que continuaram se reunindo ao redor das ruínas no Templo (Jr 41,5), como possivelmente o grupo que escreveu o livro das Lamentações. Em meio à situação de destruição, a esperança ainda permanecia: “Tu, Iahweh, permaneces para sempre; teu trono subsiste de geração em geração” (Lm 5,19).

Em 539 a.C., o exército de Ciro, rei dos medos e persas, derrotou a Babilônia. No ano seguinte, os judeus exilados tiveram a permissão de voltar e receberam auxílio para reconstruir o Templo e a cidade de Jerusalém. O primeiro grupo voltou sob a liderança de Sassabassar (Esd 5,15-16). Não há outras informações sobre essa primeira expedição. O que a Bíblia registra é que houve conflitos com os habitantes da Samaria e com o povo da terra, que tentaram impedir a construção do Templo. O projeto da reconstrução foi retomado em 520 a.C., com Zorobabel, de descendência davídica, e Josué, descendente de família sacerdotal sadoquita, com o apoio dos profetas Ageu e Zacarias (Esd 5,1-2). Apesar dos protestos, o Templo foi reconstruído em 515 a.C., de acordo com os interesses do império persa.

No tempo de Neemias, em torno de 450 a.C., a província de Judá conseguiu total autonomia. Em seguida, Esdras veio com a missão de instituir a Lei. Ele adotou uma política de total fechamento ao povo da terra — grupos de judeus que haviam ficado na terra durante o exílio da Babilônia. Nesse período, afirmou a autoridade da Lei de Deus como a lei do rei. Esdras confirmou a teocracia: um Estado governado por sacerdotes e escribas, a partir do Templo, com uma postura de separação em relação aos povos vizinhos. O centro da vida política e religiosa da comunidade de Judá passou a ser o Templo e sua teologia da eleição do povo de Israel, as leis da pureza e a teologia da retribuição. É essa espiritualidade que transparece nos salmos da época.

 

— O Templo se tornou o único lugar da morada de Deus, aonde as pessoas iam para adorá-lo: “Uma coisa peço a Iahweh, a coisa que procuro; é habitar na casa de Iahweh todos os dias de minha vida, para gozar a doçura de Iahweh e meditar no seu Templo” (Sl 27,4; cf. 42,5). A oração cantada pelo povo expressava a convicção de que a morada de Javé era o Templo de Jerusalém: “Sua tenda está em Salém e sua morada em Sião” (Sl 76,3).

— O Templo era considerado lugar de proteção e repouso; Javé era o hospedeiro que acolhia o peregrino em sua morada (Sl 84). Os salmos de subida descrevem a alegria da visita ao Templo de Jerusalém, como o lugar onde reina a justiça (Sl 122,1-5).

— O Templo era visto como o centro da vida religiosa: “E agora bendizei a Iahweh, servos todos de Iahweh! Vós que servis na casa de Iahweh pelas noites, nos átrios da casa de nosso Deus. Levantai vossas mãos para o santuário e bendizei a Iahweh! Que Iahweh vos abençoe de Sião, ele que fez o céu e a terra” (Sl 134).

 

O elemento central da teologia dos teocratas era a presença de Deus no Templo, convicção propagada por toda a terra. Essa visão teológica encontra-se expressa na oração de Jonas, proclamada no capítulo 2.

 

2. A oração de Jonas

A história de Jonas, que foi engolido por um peixe e permaneceu no ventre desse animal por três dias e três noites, é muito conhecida. A ação do peixe é controlada por Javé. É ele que determina ao animal engolir e vomitar Jonas (Jn 2,1.11). Na Bíblia, os verbos engolir e vomitar são usados somente no sentido negativo (Ex 15,12; Nm 16,30.32.34; Jó 20,15.18). Uma boa ironia: nem o peixe aguentou Jonas. A narrativa não diz qual era o tipo de peixe nem como foi possível alguém sobreviver dentro dele. São questões sem respostas, pois a Escritura se preocupa com o sentido do acontecimento, e não com o fato em si.

Muito significativa é a menção de três dias e três noites nas entranhas do peixe. É uma forma de reforçar a duração do tempo (cf. Gn 7,4). Conforme a cultura da época, trata-se de expressão própria para designar o período que uma pessoa levava para chegar ao Xeol: três dias completos. Tal compreensão pode ser entendida com base em Jn 2,7b: “Eu desci (…) à terra cujos ferrolhos estavam atrás de mim para sempre”. O narrador afirma: “Orou Jonas a Iahweh, seu Deus, das entranhas do peixe” (Jn 2,2). Nesse versículo, a palavra hebraica usada para peixe é dagá, forma feminina, ao passo que, no versículo 1, o termo usado está na forma masculina: dag. Por que a mudança? Não é possível saber com precisão, mas o ventre de uma fêmea é o lugar onde se gera nova vida.

A oração de Jonas não é um lamento, uma súplica ou um pedido de socorro, mas um salmo de ação de graças pela salvação de Javé. Jn 2,4 expressa o motivo da ação de graças: “De minha angústia clamei a Iahweh, e ele me respondeu; do seio do Xeol pedi ajuda e tu ouviste a minha voz”. O salmista faz um apelo a Javé e é atendido.

Para expressar a localização de Jonas, a narrativa em prosa usa o termo hebraico me’eh, que pode ser traduzido por entranhas ou parte interna (Jn 2,1.2), enquanto a narrativa poética usa beten xeol, seio, ventre, barriga, corpo. No Primeiro Testamento, a expressão “seio do Xeol” só aparece nesse salmo. Uma oração feita em um momento de desespero. O salmo não reflete a situação só de Jonas, mas de qualquer pessoa que, na iminência de perigo ou risco de morte, rezou a Javé e ele escutou. São palavras próprias de uma ação de graças.

O termo Xeol identifica a morada dos mortos: “Minha alma está cheia de males e minha vida está à beira do Xeol” (Sl 88,4; cf. Gn 37,35). A morada dos mortos fica abaixo da terra e de lá ninguém escapa (Nm 16,30-33; Jó 17,16). É o lugar onde Deus não está: “Com efeito, não é o Xeol que te louva, nem a morte que te glorifica, pois já não esperam em tua fidelidade aqueles que descem à cova” (Is 38,18; cf. Sl 6,6). Em contraposição, outra corrente afirma que Iahweh está em todos os lugares, até mesmo no Xeol: “Se subo aos céus, tu lá estás; se me deito no Xeol, aí te encontro” (Sl 138,9; cf. Am 9,2).

A imagem de ser jogado nas águas e engolido por elas é metáfora que expressa grande sofrimento ou ameaça à vida. Alguns salmos utilizam linguagem semelhante para descrever a experiência de quem suplica: “Salva-me, ó Deus, pois a água sobe até o meu pescoço. Afundo num lodo profundo, sem nada que me apoie; entro no mais fundo das águas, e a correnteza me arrasta. Que a correnteza das águas não me arraste, não me engula o lodo profundo, e o poço não feche sua boca sobre mim” (Sl 69,1-2.16). O verbo hebraico usado para lançar é shalak (2,5), ao passo que a narrativa em prosa utiliza outro verbo para a mesma ação, tûl (Jn 1,4.5b.15). Isso mostra que este salmo pode ter sido escrito por outro autor.

O salmista se sente rejeitado por Deus: “Fui expulso de diante de teus olhos” (Jn 2,5a). A narrativa em prosa mostra o empenho de Jonas em fugir da presença de Javé (Jn 1,3.10); porém, a narrativa poética diz o contrário. Afinal, ele fugiu ou foi banido? A contradição é mais um elemento que mostra a origem diversa desse salmo. “Eu dizia” é uma forma de descrever a interioridade do salmista, que se sente expulso da presença de Javé. Com palavras semelhantes, outro salmista canta: “‘Fui excluído para longe dos teus olhos!’ Tu, porém, ouvias minha voz suplicante, quando eu gritava a ti” (Sl 31,23). Mesmo banido dos olhos de Javé, o olhar de Jonas continua voltado para o Templo, que só aparece na narrativa poética (Jn 2,5.8). O Jonas orante e fiel, apresentado pelo capítulo 2, é muito diferente do profeta teimoso e resistente à sua missão descrito nos outros capítulos.

O autor do salmo (Jn 2,3-10) está ligado ao Templo. Sua teologia é a do Templo. Estar longe de Javé significa estar distante do Templo. Diferentemente, a teologia do autor do livro de Jonas não prende Deus no Templo de Jerusalém, mas a ação dele ocorre em todos os lugares: no mar, na natureza e em Nínive. O salmo representa a teologia das pessoas que o autor da narrativa poética quer mostrar que estão enganadas. Nas origens do povo de Israel, havia diversos locais de culto. O Deus dos patriarcas é um Deus que caminha com seu povo (Gn 26,24; 28,15.20s). É um Deus peregrino.

O salmista se sente numa verdadeira armadilha: “As águas me envolvem até o pescoço”. A vida está por um fio. Sente-se cercado pelo abismo: “As algas se entrelaçam em torno de minha cabeça” (Jn 2,6). Sua experiência foi de completa descida: “Desci até as raízes das montanhas”. Onde estão as raízes das montanhas? Em algumas passagens do Primeiro Testamento lemos: “O fogo de minha ira está ardendo e vai queimar até o mais fundo do Xeol; vai devorar a terra e seus produtos e abrasar o alicerce das montanhas” (Dt 32,22). Javé fundou a terra sobre os mares e firmou-a sobre os rios (Sl 24,2). “Deus é nosso refúgio e nossa força, socorro sempre alerta nos perigos. E por isso não tememos se a terra vacila, se as montanhas se abalam no seio do mar” (Sl 46,2-3). A descida chegou “à terra cujos ferrolhos estavam atrás de mim para sempre” (Jn 2,7). O salmista sabe que não há retorno da terra dos mortos.

Depois de tanta angústia, Jn 2,7b aponta para uma mudança importante: “Mas tu fizeste subir da fossa a minha vida, Iahweh, meu Deus”. Inicia-se o processo de subida. A palavra cova é sinônimo de sepultura e, às vezes, pode designar a realidade da morte; por exemplo: “Iahweh, tiraste a minha vida do Xeol, tu me reavivaste dentre os que descem à cova” (Sl 30,4; cf. 71,20). O salmo do livro de Jonas mostra que o salmista voltou a viver, recobrou o ânimo e tem certeza de que foi Javé que o salvou.

O salmista conta como se deu a salvação: sua vida estava quase totalmente enfraquecida, quando se lembra de Javé e reza. A oração chega até “teu santo Templo” (Jn 2,8). O Templo é considerado o principal lugar de culto a Javé, pois se acredita que ele habita no Templo de Jerusalém. Em seu cântico de ação de graças, o salmista louva o poder de Javé para salvá-lo e denuncia o vazio, a nulidade das outras divindades (Jn 2,9). Para um israelita, o culto a outras divindades é uma violação da aliança: “Abandonam o seu amor”, a sua hesed, que significa fidelidade e solidariedade. O amor de Deus é incondicional.

Em atitude de agradecimento pela salvação, o salmista canta sua ação de graças e promete oferecer sacrifícios e cumprir seus votos. O objetivo do sacrifício é manter a comunhão com a divindade. Em geral, é uma oferenda em homenagem à divindade protetora. No pós-exílio, o sacrifício era considerado o principal ato de culto a Deus. Conforme o livro do Levítico, havia diferentes tipos de sacrifícios. Entre os mais comuns, estavam o de comunhão e o de expiação pelo pecado. Os sacrifícios eram considerados meios eficazes de purificação para os fiéis se apresentarem diante de Deus. O voto fazia parte das antigas práticas cultuais de Israel. A finalidade do voto era reforçar a oração, e, quase sempre, ele era acompanhado de sacrifícios (1Sm 1,11.24; Lv 7,16-17).

A oração de Jonas é um salmo que pode ter sido rezado num ambiente comunitário. Observemos que os vv. 3a, 8a, 9a e 10b falam de Javé na terceira pessoa, o que parece ser uma resposta da comunidade. O salmista testemunha sua experiência de grande sofrimento e a salvação de Javé. O v. 11, que já é parte da narrativa em prosa, revela que a oração de Jonas foi atendida. Segundo a ordem de Javé, o peixe o vomitou em terra firme. Nos textos bíblicos, a palavra vomitar refere-se ao impuro ou indesejado que será posto para fora (cf. Lv 18,25; 20,22; Is 28,8). Seria ironia afirmar que Jonas foi indigesto até mesmo para o peixe?

Ao ler todo o livro, constata-se que a visão de Jonas representa o nacionalismo exclusivista, reforçado pela ideia de povo eleito, puro e santo, e de Jerusalém como o único lugar da manifestação de Deus. De fato, essa compreensão possibilitou manter a coesão e a identidade do judeu no exílio, mas, no tempo pós-exílico, provocou fechamento e a exclusão de outros povos e dos judeus pobres e impuros que não tinham acesso ao templo de Jerusalém. Porque, uma vez adotada e consolidada a noção de povo santo e puro, a elite governante de sacerdotes e escribas determinava quem era puro ou impuro. Uma pessoa impura, como o pobre, o doente e o estrangeiro, não podia participar do culto do Templo e, consequentemente, estava excluída da sociedade e afastada do Deus oficial do Templo de Jerusalém.

Mas é com esses impuros que o Deus da vida convive. Ele está no meio dos impuros: “Não temas, vermezinho de Jacó, e vós, pobres pessoas de Israel. Eu mesmo te ajudarei, oráculo de Iahweh” (Is 41,14). A Bíblia está cheia de gritos, orações e histórias de pobres e impuros para quem o culto do Templo não era o elemento essencial da religião.

 

3. Uma crítica à religião baseada no culto do Templo

No Antigo Israel, havia vários lugares de culto (cf. Ex 20,22-26). Os lugares altos serviam para o encontro com a divindade e para o sacrifício. Um ritual que podia ser dirigido pelo patriarca local ou por um homem de Deus. De acordo com a tradição de 1Sm 9,12b-13, lemos: “Apressa-te: ele (Samuel) veio hoje à cidade porque hoje será oferecido um sacrifício pelo povo no lugar alto. Entrando na cidade, vós o achareis, antes que suba ao lugar alto para comer. O povo não comerá antes que ele chegue, porque é ele que tem de abençoar o sacrifício; só depois os convidados comem. Subi, pois, já. Logo o achareis”.

Antes da formação do Estado, os principais santuários estavam situados em Betel, Siquém, Silo, Guilgal e Dã. Nesses centros religiosos, havia peregrinação anual, especialmente a festa da colheita, que posteriormente ficou conhecida como festa de Sucot (Tendas). A história de Ana, narrada em 1Sm 1, tem por base esse costume familiar: Elcana “anualmente subia de sua cidade para adorar e oferecer sacrifícios a Iahweh dos Exércitos em Silo” (1Sm 1,3). Cada santuário possuía suas próprias tradições; por exemplo, o santuário de Betel estava associado a Jacó (Gn 35).

O surgimento da monarquia em Israel trouxe algumas mudanças no modo de vida do povo, especialmente em relação às práticas religiosas. A arca de Javé, um símbolo da divindade no tempo das tribos, foi levada para Jerusalém no tempo de Davi (1010-970 a.C.) e conduzida ao Templo no período de Salomão (970-930 a.C.). Pouco a pouco, Jerusalém tornou-se o principal local de culto. Em torno de 930 a.C., houve a divisão do reino, com Jeroboão I. A partir de então, passou a existir o reino do Norte, Israel, e o reino do Sul, Judá. No reino do Norte, Jeroboão I estabeleceu os santuários de Betel e Dã, em oposição ao santuário de Jerusalém.

Estabelecer o santuário real era um passo importante para desenvolver uma política centralizadora dos dois reinos. Na religião oficial, Deus era, cada vez mais, confinado dentro de uma organização dos santuários dos reis. Em todo seu poder centralizador, o culto a Deus nos santuários tornou-se instrumento de manipulação e de exploração do povo em favor dos privilégios da elite dominante.

Por isso, algumas vozes proféticas, representantes da população camponesa, protestaram contra essa religião oficial:

Eu odeio, eu desprezo as vossas festas e não gosto de vossas reuniões. Porque, se me ofereceis holocaustos…, não me agradam vossas oferendas e não olho para o sacrifício de vossos animais cevados. Afastai de mim o ruído de vossos cantos, eu não posso ouvir o som de vossas harpas! Que o direito corra como a água e a justiça como o rio caudaloso! (Am 5,21-24).

Porque é amor que eu quero e não sacrifícios, conhecimento de Deus mais que holocaustos (Os 6,6).

Com que eu me apresentarei a Iahweh e me inclinarei diante do Deus do céu? Porventura me apresentarei com holocaustos ou com novilhos de um ano? Terá Iahweh prazer nos milhares de carneiros ou nas libações de torrentes de óleo? Darei eu meu primogênito pelo meu crime, o fruto de minhas entranhas pelo meu pecado? — Foi-te anunciado, ó homem, o que é bom, e o que Iahweh exige de ti: nada mais do que praticar a justiça, amar a bondade e te sujeitares a caminhar com teu Deus (Mq 6,6-8).

Ouvi, pois, isto, chefes da casa de Jacó e dirigentes da casa de Israel, vós que execrais a justiça, que torceis o que é direito, vós que edificais Sião com o sangue e Jerusalém com injustiça! Seus chefes julgam por suborno, seus sacerdotes decidem por salário e seus profetas vaticinam por dinheiro (Mq 3,9-11a).

 

Para alguns grupos camponeses, o culto não é o elemento essencial da religião, nem pode estar a serviço da hipocrisia religiosa — pois muitas pessoas acreditavam que estavam próximas de Deus simplesmente pelo fato de fazerem sacrifícios e jejuns. Os profetas de Javé têm a firme convicção de que Deus se manifesta na prática da justiça social e do amor ao próximo.

A destruição do Templo e da cidade de Jerusalém ocorre em 587 a.C. O povo é exilado. Sem o Templo, alguns grupos fazem a experiência de um Deus mais humano, que está no meio do povo (Is 41,8-20; Sf 3,14-17). Mas os grupos ligados à religião oficial continuam sonhando com a sua reconstrução (Ez 37,26-28; Ag 2). No pós-exílio, o grupo ligado a Ezequiel organiza uma sociedade governada pelos teocratas (sacerdotes e escribas), de acordo com os interesses do império persa (cf. Esd 7,26-28). O Templo é reconstruído e volta a ser poderoso instrumento de exploração do povo.

Segundo a teologia oficial dos teocratas, Deus abençoa uma pessoa pura com riqueza, saúde, vida longa e descendência, e a pessoa impura é castigada com pobreza, doença e sofrimento (Dt 28). O culto no Templo é a única forma de um impuro ser purificado diante de Deus e voltar a participar da vida social. Pobres, famintos e doentes, que não têm recursos para oferecer sacrifícios ao deus do Templo, permanecem impuros e condenados à maldição. O deus do Templo não escuta nem o grito dos pobres (Jó 24,12).

Como no tempo da monarquia, o culto do Templo se tornou ritualista e centro de exploração do povo. No livro do Terceiro Isaías (Is 56-66), ouvimos o grito de repúdio contra a teologia do Templo: “Assim diz Iahweh: ‘O céu é meu trono, e a terra o escabelo de meus pés. Que casa me haveis de fazer, que lugar para o meu repouso? Tudo isto foi minha mão que fez, tudo isto me pertence’, oráculo de Iahweh! ‘Eis para que estão voltados meus olhos, para o pobre e para o abatido, para aquele que treme diante da minha palavra’” (Is 66,1-2).

Da mesma forma que o Terceiro Isaías, o autor da narrativa de Jonas apresenta Deus agindo além das fronteiras do Templo e do território de Israel. Vemos essa convicção expressa nas orações do povo, que sintetizam a religião e a teologia dos “pobres”:

a) Deus está presente em toda parte: “Iahweh, o teu amor está no céu e tua verdade chega às nuvens; tua justiça é como as montanhas de Deus, teus julgamentos como o grande abismo. Salvas os homens e os animais. Iahweh, como é precioso, ó Deus, o teu amor! Deste modo, os filhos de Adão se abrigam à sombra de tuas asas” (Sl 36,6-8); “Iahweh firmou no céu o seu trono e sua realeza governa o universo” (Sl 103,19); “Quem é como Iahweh, nosso Deus? Ele se eleva para sentar-se, e se abaixa para olhar pelo céu e pela terra” (Sl 113,5).

b) Deus escuta os pobres: “Quanto a mim, sou pobre e indigente, mas o Senhor cuida de mim. Tu és meu auxílio e salvação; Deus meu, não demores!” (Sl 40,18); “Os pobres veem e se alegram: vós que buscais a Deus, que vosso coração viva! Porque Iahweh atende os indigentes, nunca rejeita seus cativos” (Sl 69,33-34).

c)  Deus liberta e eleva os pobres: “Meu ser exultará em Iahweh e se alegrará com sua salvação. Meus ossos todos dirão: ‘Iahweh, quem é igual a ti, para livrar o pobre do mais forte e o indigente do explorador?’” (Sl 35,9-10); “Ele ergue o fraco da poeira e tira o indigente do lixo, fazendo-o sentar-se com os nobres, ao lado dos nobres do seu povo” (Sl 113,7-8).

d) Deus não quer sacrifício nem oferta: “Quantas maravilhas realizaste, Iahweh meu Deus, quantos projetos em nosso favor: ninguém se compara a ti. Quero anunciá-los, falar deles, mas são muitos para enumerá-los. Não quiseste sacrifício nem oferta, abriste meu ouvido; não pediste holocausto nem expiação, e então eu disse: ‘Eis que venho’” (Sl 40,6-7).

 

Os pobres insistem que Deus habita em toda parte, não despreza a pobreza nem lhes oculta a face. É uma fé que nasce no fundo do coração de quem experimenta exploração, fome, escravidão: “Os pobres da terra se escondem todos juntos, passam a noite sem roupa e sem coberta contra o frio (…). O órfão é arrancado do seio materno e a criança do pobre é penhorada” (Jó 24,4.7.9). É a fé no Deus dos pobres que está na contramão da teologia dos teocratas.

O personagem Jonas, um teocrata, que desfruta dos benefícios da sociedade governada pelos teocratas, eleva sua prece a Deus a partir do Templo. Seus olhos estão voltados para o “santo Templo”, a única morada de Deus; pois é de lá que vem a salvação: “Quando minha alma desfalecia em mim, eu me lembrei de Iahweh, e minha prece chegou a ti, até o teu santo Templo” (Jn 2,8).

 

4. Retomando a vida

Certa vez, numa aula de religião, os alunos, com idade entre 5 e 7 anos, foram convidados a rezar. Ao final da oração, uma criança perguntou: “Professora, se Deus é tão grande e importante, por que não posso vê-lo? Onde ele está?” Mais rapidamente do que a professora pudesse pensar numa resposta que fizesse sentido, outro coleguinha se antecipou: “É que Deus é muito grande. Ele não cabe em nossa cabeça. Ele é como o ar: a gente não vê, mas ele está em toda parte”.

Onde está Deus? Essa pergunta vem de longe. Ele se manifesta a cada instante e em todas as realidades. Responder onde está Deus depende da formação e da experiência de cada pessoa. Hoje, não sei quais seriam as respostas de meus amiguinhos de Nagasaki a tal pergunta. O tempo passou… Muitas águas correram debaixo da ponte. Como um seguidor de Jesus de Nazaré, tenho fé no Deus da vida que se encarna no meio dos impuros: “A sogra de Simão estava de cama com febre, e eles imediatamente o mencionaram a Jesus. Aproximando-se, ele a tomou pela mão e a fez levantar-se” (Mc 1,3-31). Afinal de contas, pregamos Cristo crucificado e ressuscitado (cf. 1Cor 1,23).

A vida nos ensina que a verdadeira religião do Deus da vida é muito mais do que um conjunto de leis, dogmas e culto; é aquela que se preocupa com a prática da justiça e da solidariedade. É a certeza que cantamos em nossas comunidades: “Onde reina o Amor, fraterno Amor! Onde reina o Amor, Deus aí está”.

 

 

 

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

CARDOSO PEREIRA, Nancy. “Lições de cartografia: pequena introdução ao livro de Jonas”. Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana. Petrópolis: Vozes; São Leopoldo: Sinodal, nº 35-36, 2000, pp. 199-205.

KILPP, Nelson. Jonas. 2ª ed. Petrópolis: Vozes; São Leopoldo: Sinodal, 1994.

LIVERANI, Mario. Para além da Bíblia: história antiga de Israel. São Paulo: Paulus, Loyola, 2008.

MAGONET, Jonathan. “Book of Jonah”, in: FREEDMAN, David Noel (org.). The anchor Bible dictionary. New York: Doubleday, v. 3, 1992, pp. 936-942.

TRIBBLE, Phyllis. “The book of Jonah”, in: KECK, Leander E. (org.). The new interpreter’s Bible. Nashville: Abingdon, 1996, pp. 463-529.

 

Pe. Shigeyuki Nakanose, svd